Julie Lythcott-Haims |
Entrevista com Julie Lythcott-Haims
Stephanie Sachs Feder
A ex-reitora de Stanford diz que o overparenting, a obsessão dos pais de guiar e proteger seus filhos,
criou uma geração de “adultos-crianças” despreparados para o mundo
No
início dos anos 2000, então reitora da Universidade de Stanford [Estados
Unidos], Julie Lythcott-Haims
começou a notar algo curioso no comportamento de seus alunos. Estudantes de 20
e poucos anos, que em breve estariam formados e trabalhando nas melhores
empresas, compareciam à sua sala invariavelmente acompanhados do pai ou da mãe.
E, quando ela lhes perguntava o que queriam de seu futuro, olhavam para os pais
em busca de uma resposta.
Foi
a partir dessa experiência – e da sua própria , como mãe – que ela passou a
estudar o overparenting, expressão americana para o hábito de proteger excessivamente os filhos. O fenômeno surgiu
quando a geração do pós-guerra, tratada com rigidez pelos pais, mas
influenciada pela contracultura dos anos 60 de 70, decidiu criar suas crianças
de forma diferente – menos rigor e mais amor, menos cobranças e mais
compreensão.
Os
exageros na aplicação da fórmula, argumenta ela, ajudaram a produzir uma
geração de adultos incapazes de decidir
por conta própria e com dificuldades de
se adequar ao mercado de trabalho.
Julie
Lythcott-Haims deu a seguinte entrevista a VEJA, por telefone.
A
senhora afirma que esta é a primeira geração de “adultos-crianças” da história.
Como eles são?
Julie Lythcott-Haims: Trata-se de pessoas que não
se sentem capazes de tomar as próprias decisões nem de lidar com contratempos e
decepções. Ao primeiro sinal de problemas, pegam o telefone ou teclam para os
pais para pedir orientação. Ora, um adulto é, por definição, alguém capaz de
refletir e descobrir como lidar com determinada situação.
Mas
adultos também pedem orientações e conselhos. A diferença é a frequência com
que os adultos-crianças fazem isso?
Julie: A diferença é que fazem isso
ao primeiro sinal de que algo não deu certo. A atitude de um adulto é refletir
sobre uma questão, chegar a algum diagnóstico e aí, talvez, entrar em contato
com alguém em quem confie e dizer: “Estou com dificuldade para resolver essa
situação. O que você acha?”. Dessa forma o pensamento e a estratégia do
indivíduo passam a ser parte de algo que ele elaborou. Essencialmente, um
adulto coloca questões a si mesmo antes de colocá-las a seus pais.
Como
pensam esses “adultos-crianças”?
Julie: Eles têm pouco confiança em
si mesmos. “Sou incapaz de fazer isso sozinho” é o pensamento recorrente –
afinal, durante toda a vida, alguém sempre fez tudo por eles. Na psicologia,
isso se chama “desamparo aprendido”,
algo que vem da falta de conexão entre
esforço e resultado. Nesses meus treze anos como orientadora em Stanford,
vi muitos alunos que padecem desse mal – a ponto de não saberem sequer pedir
orientações na rua.
E
isso vale também para situações profissionais?
Julie: Sim, sobretudo para
situações profissionais. Numa empresa, as coisas não orbitam em torno do
empregado e suas necessidades – o empregado não é o centro do mundo. O que se
espera dele é que contribua para o crescimento da empresa e dos colegas – seja
útil, ajude antes que lhe peçam, antecipe o que precisa ser feito. Ocorre que
os pais desses “adultos-crianças” sempre determinaram o que eles tinham de
fazer, e isso os impediu de desenvolver esse tipo de habilidade – pensar por si
próprios e planejar o próximo passo. As
consequências de uma vida excessivamente gerenciada pelos pais se refletem de
maneira muito acentuada no trabalho.
Mas
as próprias empresas não se adaptaram a esses “adultos-crianças”, de certa
forma?
Julie: Sim, o exemplo perfeito aqui
são as startups [1] do Vale do Silício, que oferecem infinitos mimos a
seus empregados. Eles trabalham muito duro, mas todo o ambiente é voltado para
satisfazer a suas necessidades, incluindo a de diversão. A comida é preparada
por chefs ótimos, as roupas de todo são lavadas lá. Eu me pergunto: por que
tantos adultos dessa geração vão para a “terra das startups” e o mundo da tecnologia? Porque o local de trabalho foi
adaptado para ser uma extensão da casa da infância deles. Mas o que acontece se
alguém começa sua vida profissional num lugar assim e depois vai para um lugar
tradicional? Certamente ficará muito desapontado. E talvez não consiga se
adaptar.
Título do livro em inglês: "Como criar um adulto: liberte-se da armadilha da overparenting e prepare seu filho para o sucesso" (Sem edição no Brasil por enquanto) |
A
senhora fala em três tipos de pecado dos pais: o “superdirecionamento”, a
“superproteção” e a “superajuda”. Pode explicá-los?
Julie: Os pais superprotetores são
aqueles que acreditam que qualquer coisa
pode machucar seus filhos e, por isso, preferem que eles estejam sempre dentro
do seu campo de visão. Tomam sempre o partido das crianças contra quem quer que
seja – o juiz do jogo de futebol ou o professor que as criticou – e costumam dizer
que todo esforço dos filhos é “perfeito”. Os que pecam pelo
“superdirecionamento” são os que definem o que seus filhos devem estudar, como
devem brincar, que atividades devem praticar e em que nível, que faculdades
valem a pena, que curso é melhor fazer, que carreira precisam seguir. Eles não só resolvem os problemas dos
filhos como moldam seus sonhos. O tenista Andre Agassi é um exemplo típico
dessa criação.
Por
quê?
Julie: Eu o cito apenas porque ele
mesmo já disse: “Meus pais direcionaram demais minha vida”. E isso fica claro
quando se lê a autobiografia do esportista. O pai de Agassi era tão convencido
de que o filho deveria ser jogador de tênis que transformou isso na missão de
sua vida. Mas o garoto não amava o esporte. Então, o que temos? Uma estrela do
tênis, mas um tanto infeliz. Isso é comum quando as pessoas seguem trajetória
profissional forçada pelos pais – ou, simplesmente, para agradar-lhes.
E
como se caracterizam os pais da categoria que a senhora chama de “superajuda”?
Julie: São os que acompanham as
crianças em todas as atividades, no esporte ou na escola, e agem como seu concierge [2],
até quando já são quase adultos. A mãe de uma estudante do 2º ano de Stanford,
por exemplo, ligava todo dia para acordá-la, e ainda tinha na própria agenda
todos os deveres e provas dela, para evitar que a filha perdesse os
compromissos.
Como
os pais podem saber se caíram na armadilha de confundir amor demais com cuidado
excessivo?
Julie: Em primeiro lugar, eles têm
de aceitar o fato de que seu trabalho,
como pais, é sair desse cargo algum dia. E que o objetivo é criar aquela pequena pessoa para que ela seja capaz de se
cuidar. Não se trata de largar os filhos no meio da floresta para que se
virem. Mas, no século XXI, cuidar de si próprio significa escrever seu
currículo sozinho, fazer uma entrevista de trabalho, arrumar um emprego. E ter
as habilidades necessárias para manter-se empregado, ser capaz de trabalhar
duro e em equipe, ganhar um salário, pagar suas contas, ser gentil com os
demais, descobrir como ir de um lugar a outro, cozinhar... E tudo isso sem ter
de, a toda hora, perguntar à mamãe ou ao papai como se faz. Imaginar que algo
pode fazer com que você um dia não esteja mais aqui para ajudar seu filho é um
bom exercício: “E se alguma coisa acontecer comigo?”. Nenhum de nós quer
imaginar isso, mas é nosso dever como pais mamíferos prepara nossa cria para
esse triste dia.
E
no dia a dia?
Julie: Não há dúvida de que os pais
devem dar tanto amor quanto puderem aos filhos. As crianças querem ter certeza
de que são amadas e valorizadas. Mas não é cruel pedir que os filhos auxiliem
nos afazeres domésticos, por exemplo. Isso vai ajudá-los a se desenvolver. O
objetivo deve ser dar oportunidades para que desenvolvam sua independência. Eu
me lembro da primeira vez que pedi ao meu filho que fosse ao supermercado para
comprar algo que eu tinha esquecido. Ele não queria ir. Falei que precisava da
ajuda dele, que o percurso não era longo, que ele já tinha ido mais longe com
os amigos. Ele foi e, quando voltou, estava orgulhoso de si mesmo. Foi uma
conquista para ele e para mim. Pode parecer algo menor, mas para as crianças
sempre há uma primeira vez. O papel dos pais é encontrar as oportunidades de
oferecer a elas a chance de aprender.
E
como descobrir o limite a partir do qual dar independência a um filho pode
expô-lo a riscos?
Julie: É difícil, mas é preciso
deixar que as crianças vivam para que virem adultas. Não podemos segurá-las em
nossos braços a vida inteira, cobri-las com plástico-bolha e mandá-las para o
mundo inteiramente protegidas de tudo. Temos de fortalecer seu caráter, sua
determinação, seu senso de “eu me machuquei, mas estou bem”. Pode soar cruel,
mas é bom que as crianças se machuquem na infância, e não falo apenas no
sentido físico. Porque é o único modo de se tornarem resistentes e capazes de
lidar com as questões quando crescerem. É um equilíbrio sensível. Não á um
manual que descreva cada passo. Mas é preciso que os filhos se tornem
resistentes, preparados também para as coisas mais difíceis que estão por vir.
No
Brasil, existe a “geração canguru”, composta de adultos de 25 a 34 anos que
ainda moram na casa dos pais. Isso tem a ver com essa superproteção?
Julie: Não conhecia esse termo, é
maravilhoso. Em tese, não há nada de errado no fato de filhos nessa idade
morarem com os pais se não tiverem dinheiro para morar sozinhos em um lugar desejável,
por exemplo. O que está errado é se os filhos, nessa idade, não se comportarem
como adultos – não ganharem um salário, não contribuírem financeiramente para a
casa. Resumindo, se moram lá e se comportam como se tivessem 11 anos, sem
levantar um dedo para ajudar, sem gatar seu dinheiro nem sequer para ajudar no
supermercado.
Há
também os “nem-nem”, que nem estudam nem trabalham.
Julie: Não estudar e não trabalhar
é um desastre. Não somente para aquela pessoas e sua família, mas para o país
em que elas vivem. São pessoas que não vão contribuir para a sociedade, não vão
pagar impostos, não serão cidadãos úteis. É um conceito assustador.
Como
os “adultos-crianças” vão criar os próprios filhos?
Julie: Não faço ideia, porque a
geração do milênio foi a primeira a ser superprotegida em massa. Os primeiros
grupos de crianças que tinham a agenda toda feita pelos pais são os dos
nascidos em torno de 1980. Logo, eles agora têm 35 anos. Muitos já têm filhos,
mas ainda não sabemos como seus filhos estão se virando no mundo. Realmente
espero que essa geração empurre o pêndulo de volta para a outra direção, para
criar adultos competentes, confiantes e corajosos.
Bob
Dylan escreveu que “não há sucesso como o fracasso”. Até que ponto concorda com
isso?
Julie: O que todos os tipos de pais
que protegem em excesso têm em comum é o medo do fracasso. Eles têm medo de
que, se seus filhos passarem por um fracasso, a vida deles seja arruinada. E
eles estão errados. Para aprender, é necessário tentar, fracassar, aprender com
isso. E aí tentar de novo, fracassar de novo e aprender de novo, até finalmente
ser bem-sucedido. São os pequenos fracassos da infância que desenvolvem as
habilidades, as competências e a confiança dos adultos. O fracasso é talvez o
melhor professor da vida, e ficamos mais fortes quando somos desafiados.
N
O T A S
[ 1 ] –
Startup:
é uma empresa com um histórico operacional limitado. Essas empresas, geralmente
recém-criadas, estão em fase de desenvolvimento e pesquisa de mercados. O termo
tornou-se popular internacionalmente durante a bolha da internet, quando um
grande número de empresas ponto com foram fundadas. Para saber mais e melhor
sobre este assunto, recomendo acessar aqui e aqui.
[ 2 ] –
Concierge é um termo originário do francês que
significa “porteiro”. Em hotéis, o concierge é um profissional que tem um
balcão na entrada do hotel (conciergerie,
em francês, ou conciergeria), responsável por assistir os hóspedes em qualquer
pedido que estes tenham, dos mais extravagantes ao mais simples como chamar um
táxi, dar informações sobre o próprio hotel e seus serviços ou sobre a cidade e
seus pontos turísticos, venda de passeios na região, locação de carros,
reservas e indicações de restaurantes, ligar para farmácia, floricultura ou
tabacaria. Desempenha um papel de ajuda a todos integrantes do hotel, fazendo
tarefas quando solicitadas (Fonte: Wikipédia).
Fonte: Revista VEJA – Edição 2437 – Ano 48 – nº
31 – 5 de agosto de 2015 – Pgs. 15, 18-19. Edição impressa.
ISSO É A PURA REALIDADE........
ResponderExcluir