Leonardo Boff*
Eduardo Hoornaert é um conhecido historiador
da Igreja e da história do Brasil na perspectiva das vítimas. É belga e
vive no Brasil praticamente toda a sua vida, trabalhando e pesquisando
no Nordeste. Interessa-se especialmente pela cultura popular e por sua
sabedoria. Publicamos aqui este texto que nos ajuda a refletir e nos
tornar críticos face às pressões político-ideológicas dominantes no
atual momento. LBoff
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No momento pipocam por toda parte explicações da situação atual no
Brasil, principalmente na Internet, mas também na rádio, na TV e nos
jornais. Enumero algumas:
– O Brasil está em crise. Nos grandes meios
de comunicação, essa afirmação é hoje um postulado. Mas não se explica o
que se entende por ‘crise’. Em 1939, quando eu tinha 9 anos, o país em
que nasci estava em ‘crise’: as pessoas estocavam alimentos e todos
sentiam que a guerra se aproximava. Isso era crise. Neste momento, no
Brasil, os preços aumentam, o consumo diminui, mas será que isso é
crise? O fato de alguns deixarem de viajar a Orlando com a família
porque o dólar está alto é sinal de crise? É o que se diz na TV. Minha
impressão é que os grandes meios de comunicação têm interesse em falar
em ‘crise’.
– Vivemos numa democracia. O termo
‘democracia’ virou uma palavra sagrada, intocável. Mas o que dizer de um
país de 200 milhões de habitantes, em cima dos quais os porta-vozes de
uma só família, os filhos de um bem-sucedido jornalista do Rio de
Janeiro que criou uma rede de meios de comunicação, pronunciam a cada
dia oráculos que passam por verdades eternas, praticamente nunca
contestadas? Isso é democracia? Há muitos outros exemplos que mostram
que a palavra ‘democracia’ não corresponde ao que está efetivamente
acontecendo.
– A economia é uma ciência. A indicação, pela
presidenta Dilma, de Joaquim Levy como ministro da Economia, é
interpretada por muitos como escolha de alguém formado em ‘ciência
econômica’. Dá se a impressão que Levy domina uma ciência que o comum
dos mortais não consegue entender, mas que deve ter seus segredos. Faz
aproximadamente 250 anos, desde Adam Smith (1776), que os economistas
procuram erguer suas ‘artes’ ao patamar de ciência. A história desmente
essa pretensão e apresenta muitos casos em que a economia provou ser,
não uma ciência, mas uma ‘arte de fazer’.
– O Brasil está dividido entre inteligentes e ignorantes.
Essa é uma análise extremamente grosseira, mas hoje vejo que ela é
adotada por quem se autoproclama ‘filósofo’, ‘analista político’,
‘jornalista qualificado’. No final do ano passado, os ignorantes
colocaram Dilma no poder, mas ‘depois de ver como ela governa’,
compreendem que os inteligentes têm razão. Daí os números extremamente
baixos da popularidade da presidenta. Mas, como se sabe de que modo
Dilma governa? Isso passa necessariamente pela mediação dos grandes
meios de comunicação, e assim voltamos ao acima exposto acerca da
concentração da comunicação pública no Brasil nas mãos de um número
extremamente reduzido de pessoas.
– O ciclo PT passou. Alguém disse isso e
muitos o repetem. A explicação tem uma aura de verdade inconteste que
dispensa análise empírica. Como foi dito por uma pessoa inteligente,
deve ser verdade. Se você duvidar, é petista ignorante.
– Lula é populista. Essa frase também tem
ares de inteligência. Mas o que se entende por ‘populista’? Assisti
recentemente a um programa na televisão, em que se disse que populista é
quem simpatiza os governos ‘populistas’ de Venezuela, Bolívia e Ecuador
(as repúblicas bolivarianas). Isso, disse o interlocutor, não tem
futuro, pois esses governos não têm dinheiro. Melhor aliar-se aos
Estados Unidos e à Europa, onde há dinheiro. Então entendi o que é
populista: é o contrário de dinheirista.
– Temos de combater o terrorismo. Divulgado
aos quatro ventos pelo presidente americano Bush na manhã do dia 11 de
novembro de 2001 (data do ataque às torres gêmeas em Nova Iorque) depois
de receber um telefonema de seu conselheiro Kissinger que falou em ‘war
on terror’ (guerra contra o terror), o terrorismo é um dos termos que
caracterizam as sociedades em que vivemos. A civilização está sendo
ameaçada por terroristas, assim como no passado esteve ameaçada por
comunistas. Mas, se um drone americano mata pessoas inocentes no
Afeganistão, isso é terrorismo? Não, ninguém diz isso. Matar inocentes
no Afeganistão é combater o terrorismo, assim como apoiar golpes
militares na América Latina, nos anos 1960-70, era combater o comunismo.
Dias passados, a Câmara Federal aprovou uma lei que de certa forma
aplica ao Brasil o pacote antiterrorista fabricado nos Estados Unidos.
Essa lei parte da ideia que o terrorismo pode estender seus tentáculos
sobre o país, o que deve ser evitado a qualquer custo. Temos de ficar de
sobreaviso, pois a conspiração terrorista pode eclodir onde menos se
espera. Quem não concordar com ideias divulgadas pelos grandes meios de
comunicação, por exemplo, é potencialmente ‘terrorista’.
A lista de frases que hoje pretendem explicar o Brasil não se esgota
com esses poucos exemplos. Mas as que apresentei brevemente acima bastam
para que enxerguemos a saída diante do poder avassalador dessas e de
outras frases que costumamos ouvir diariamente nos grandes meios de
comunicação. Penso que, mais que nunca, é preciso usar o cérebro. A
coisa mais preciosa que a natureza pode nos oferecer é um cérebro que
funcione bem, ou seja, que nos faça pensar de forma independente. O
cultivo de uma inteligência independente constitui a tarefa mais
importante da vida.
Como o cérebro está diretamente ligado aos órgãos de observação
(visão, audição) e trabalha os dados provenientes desses órgãos, tudo
depende da capacidade de elaborar corretamente o que nos vem por meio da
observação. Quando assistimos à TV, por exemplo, o cérebro não fica
totalmente passivo mas interage com as imagens e as palavras.
Diante do bombardeio diário de imagens e mensagens, um cérebro sadio
se posiciona de forma independente. Isso se chama reflexão. Esse cérebro
forma um ‘critério’, ou seja, um pensamento crítico acerca do que
ouvimos e vimos na tela. O critério correto é resultado de uma luta
permanente pelo domínio sobre nossa própria mente. Arriscamos ‘perder a
cabeça’ quando não reagimos diante da maré montante de palavras e
imagens diariamente despejadas sobre nós. Pois se trata realmente de uma
maré, que ameaça inundar tudo, se não construímos um dique seguro para
conter seu avanço. Esse dique é nossa inteligência. Se não preservamos
nossa inteligência independente, corremos o perigo de virar um rebanho
empurrado por um louco.
A marcha do dia 16 de agosto. Para terminar,
umas palavras acerca da marcha do dia 16 de agosto, em grande parte
preparada pelo movimento ‘Vem Pra Rua’ (VPR), que se articula de forma
bem organizada por meio da Internet. Há quem pensa que essa marcha
apresenta uma alternativa para o Brasil. Mas é preciso saber que o
movimento VPR se articula em torno de um núcleo duro de apenas cinco
pessoas, um verdadeiro ‘comando’ muito bem organizado, com disciplina e
sem crítica interna (como acaba de revelar o Jornal ‘Valor’). Se alguma
mensagem corre pela Internet que não esteja de acordo com o que esse
núcleo decide, ela é eliminada do circuito organizado pela VPR.
Estamos diante de um movimento que não tem nada de novo, a não ser a
técnica de comunicação e o charme de pessoas bem-sucedidas na vida, que
têm entre 40 e 50 anos e participam do dito núcleo central u colaboram
com ele. Esse núcleo duro decide atacar Dilma e Lula (talvez Renan Calheiros), mas não Eduardo Cunha.
Você participa da marcha, grita palavras de ordem e pensa agir com
liberdade, mas na realidade está enquadrado dentro de um movimento que
‘outros’ (Globo, Veja, etc.) já começaram a interpretar antes mesmo que
aconteça a marcha do dia 16 de agosto. É essa interpretação
‘pré-fabricada’ que constitui a ração a ser digerida pelo grande público
a partir do dia 16 de agosto.
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* Teólogo. Filósofo. Escritor.
Fonte: https://leonardoboff.wordpress.com/2015/08/15/os-explicadores-do-brasil/
Imagem da Internet
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