Perante a maior crise de refugiados do pós-guerra, países como a
Bulgária e a Hungria responderam com novos muros. Está a Europa a voltar
aos tempos em que a política externa é feita de arame farpado?
“Não há volta atrás numa Europa multicultural. Nem para uma Europa
cristã, nem para o mundo das culturas nacionais. Se fizermos um erro
agora, ele continuará para sempre.”
Foi assim que, no início de
junho, o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Órban, se referiu à crise
dos refugiados, que neste ano já levou 300 mil pessoas a atravessar o
mediterrâneo em direção ao Sul da Europa. Muitos procuram chegar a
países mais prósperos do que a Grécia ou a Itália, abrindo caminho em
direção à Alemanha, Reino Unido ou Suécia. Entre uns e outros está a
Hungria — onde nos últimos dias têm entrado mais de 2 mil refugiados por
dia.
Não terá sido em vão que Órban — um homem controverso, mas com
amplo apoio no seu país, que tem merecido as críticas da Comissão
Europeia — disse aquelas palavras. Duas semanas apenas depois dessa
ocasião, o governo húngaro anunciava a construção de um muro que vai
atravessar a totalidade da fronteira magiar com a Sérvia, a Sul. Ao
todo, serão 175 quilómetros de uma vedação de aço e arame farpado que
visa impedir uma das rotas mais usadas pelos refugiados (ou,
tecnicamente falando, candidatos ao estatuto de refugiado) que fogem da
guerra e outros conflitos localizados na Síria, Iraque, Afeganistão,
Somália, Eritreia, Sudão, etc.
“Se o permitirmos, as migrações em
massa podem consistir em milhões, dezenas de milhões ou até centena de
milhões de pessoas”, disse Orbán, já em julho, quando os trabalhos já
avançavam a toda a velocidade na fronteira com a Sérvia.
Apesar de o muro entre a Hungria e a Sérvia ser o maior desta
natureza a ser construído na Europa, houve outros que o antecederam. Os
primeiros foram construídos por Espanha, mas em enclaves no continente
africano — Ceuta (erguido em 1993, com 9 quilómetros) e Mellila (1998,
12 quilómetros).
14 anos depois, em 2012, o continente europeu
voltou a conhecer um muro — embora não tão robusto quanto aquele que
tombou em Berlim, em 1989. Trata-se de uma vedação com um total de 12,5
quilómetros, encimada por uma linha de arame farpado, junto à aldeia
helénica de Nea Vyssa. Os números mais recentes provam a ineficácia
desta estrutura: só em julho entraram 50 mil pessoas no país e em 2015 o
número total já é de 200 mil, segundo o Alto Comissariado das Nações
Unidas para os Refugiados. Ou seja, um aumento de 750% em relação ao ano
passado.
Mais recente — embora de uma dimensão reduzida — é a
vedação de 1,5 quilómetros em Calais, no Norte de França, ao longo da
entrada para o Canal da Mancha, que vai dar a Folkestone, no Sul de
Inglaterra. Esta estrutura, com pouco menos de 4 metros de altura, é
temporária e será aumentada. Ao todo, o Reino Unido irá gastar quase 31
milhões de euros em novas vedações, instalação de câmeras de vigilância,
de sistemas de detecção por raios infravermelhos e focos de luz.
Outro exemplo, com provas dadas de eficácia e, por isso, um
caso de inspiração para o governo húngaro, é aquele que separa parte da
Bulgária da Turquia. Mandado erguer pelas autoridades de Sófia, a
vedação de 30 quilómetros foi finalizada em setembro de 2014 — mas, um
mês antes, o governo búlgaro já afirmava a sua intenção de juntar outros
130 quilómetros à estrutura. Além da vedação em si, existe um sistema
de vigilância em torno da fronteira.
“A polícia tem postos onde há salas com mais de dez écrãs, com
imagens de câmeras onde dá para fazer zoom”, conta ao Observador Mathias
Fiedler, do projeto Border Monitoring Bulgaria.
“É como se fosse uma loja. Se quisermos roubar alguma coisa, o
segurança vê e vai logo atrás de ti. Mas mesmo assim não conseguiram
impedir todas as tentativas de entrada.”
Ainda assim, os números
sugerem que a estratégia do governo búlgaro funciona. Em 2013, quando o
muro ainda era só uma ideia, as autoridades conseguiram evitar que 16
736 pessoas entrassem, de acordo com números oficiais. No ano seguinte, o
número mais do que duplicou: 38 502.
Nações Unidas criticam controlo fronteiriço búlgaro
Estes números condizem com as denúncias de pushback nas
fronteiras búlgaras — isto é, quando as autoridades, em vez de acolherem
quem pede asilo, repelem aqueles que chegam. Por exemplo, em março
deste ano, dois iraquianos da minoria Yazidi morreram de hipotermia em
solo turco, depois de fugirem das autoridades búlgaras que tentavam
impedir-lhes a entrada no país. Nessa ocasião, o Alto Comissariado das
Nações Unidas para os Refugiados, dirigido por António Guterres, lançou
um comunicado
onde se afirmava “particularmente perturbado pelas histórias de
brutalidade que podem ter contribuído para a morte destas duas pessoas
que, sendo membro da comunidade perseguida Yazidi, seriam provavelmente
refugiados”.
Em março, o governo búlgaro deixou de dar uma
pensão
mensal de 33 euros aos
refugiados que se encontram no país.
Fiedler, que está em permanente contacto com refugiados e as
autoridades, comenta que histórias como esta contribuíram para a
formação de uma ideia entre os refugiados: “‘Não vamos passar pela
Bulgária, eles matam-nos'”.
Por outro lado, a opinião pública
búlgara não é das mais favoráveis à entrada de estrangeiros no país. Nas
eleições legislativas de 2014, 17,5% dos votos foram distribuídos entre
três partidos de extrema-direita xenófoba. Uma deputada de uma destas
forças políticas, o Ataka, Magdalena Tacheva, referiu-se aos refugiados
que chegam ao país como “assassinos em série”, “selvagens”,
“fundamentalistas islâmicos que fogem à justiça” e “canibais”.
E
segundo uma sondagem de novembro de 2014, 83% dos inquiridos responderam
que a entrada de refugiados na Bulgária é um risco para a segurança
nacional — uma posição que pode ter sido influenciada pelo facto de, no
verão de 2012, um atentado do Hezbollah ter morto sete turistas
israelitas na estância balnear de Burgas, no mar Negro.
Ao mesmo
tempo, o governo conservador de centro-direita, liderado pelo
primeiro-ministro Boiko Borisov, cortou em março a pensão mensal de 33
euros a que cada refugiado tinha direito — o salário mínimo da Bulgária,
atualmente nos 184 euros, é o mais baixo da Europa.
Muro húngaro é “caro e muito pouco inteligente”
Não é muito diferente a receção dada aos refugiados e outros
estrangeiros na Hungria, onde o governo fez questão de afixar cartazes a
dizer “Se vem para a Hungria, tem de respeitar as leis” e “Se vem para a
Hungria, não tire os empregos aos húngaros”. Além disso, o governo
húngaro aprovou uma série de medidas que dificultam os pedidos de asilo.
Uma delas foi a redução, para um prazo de somente oito dias, para um
refugiado recorrer em tribunal caso lhe seja negado o estatuto. Outra,
foi a inclusão da Sérvia como um “país de origem segura” — o que, para
efeitos práticos, retira a obrigatoriedade das autoridades húngaras de
receberem as pessoas que lhes chegam a partir do país vizinho. Por cima
disso, atravessar a fronteira da Hungria ilegalmente passou a ser punido
com quatro anos de prisão.
E, claro, o muro, que, se tudo correr de acordo com o que foi planeado, estará concluído esta segunda-feira.
"Se vem para a Hungria, não tire
os empregos aos húngaros."
Para Juliá Iván, do Comité de Helsínquia da Hungria, uma ONG
internacional pela defesa dos Direitos Humanos, a construção do muro de
175 quilómetros de arame farpado ao longo da fronteira com a Sérvia é
uma medida “cara e muito pouco inteligente”, conta ao Observador por
telefone.
“Estas pessoas [os refugiados] estão à procura de
proteção e deixá-los fora do território europeu não é uma solução. A
História mostra-nos isso. E os números também. O número de refugiados
está a subir, porque eles entram na mesma e como podem. Através das
linhas de comboio, ou então cortam as vedações, passam por baixo delas,
passam por cima… E além disso vão para outras fronteiras, como na
Roménia ou na Croácia.”
Esta hipótese foi colocada por um
jornalista da BBC ao porta-voz do governo húngaro Zoltan Kovacs, a quem
referiu a determinação de refugiados em entraram na Hungria através da
fronteira com a Roménia (443 quilómetros) ou com a Croácia (329
quilómetros). “Se necessário, também construiremos barreiras nesses
sítios”, respondeu-lhe o responsável.
Para
já, enquanto o muro com a fronteira na Sérvia é construído, Iván faz
notar que o resultado é, para já, precisamente o contrário que o governo
de Órban desejaria. “É muito estranho, até irónico, como estas coisas
funcionam. Em junho, antes de o governo falar do muro, tinham entrado
entre 800 a mil pessoas vindas da Sérvia. Só ontem, foram 2 500!”
“Quem gostaria de encontrar um afegão na sua casa?”
O resultado do aumento de entradas de refugiados, aliado com a
dificuldade de obter o estatuto de refugiado, pode ser visto, por
exemplo, no centro de Budapeste, mais propriamente na estação de
comboios de Keleti. É à volta deste edifício do século XIX que se juntam
muitas das caras da maior crise de refugiados do século XXI. “É a
primeira vez que vemos uma população de refugiados urbana”, explica
Iván. “A maior parte deambula pelas ruas, alguns têm tendas, outros nem
isso. Ficam pela estação ou pelos parques e praças em volta. As pessoas
passam por eles e ficam desagradados, muitas vezes. E a empresa
ferroviária trata-os de uma maneira muito desumana. Não os deixam entrar
na estação de qualquer maneira, não podem ir para as zonas de espera,
não podem ir à casa de banho… Nada.”
"Às vezes [os refugiados] entram para dentro de
estaleiros para dormir lá ou para mudarem de roupas. E de vez em quando o
dono chega e eles estão lá dentro. Quem é que gostaria de encontrar um
afegão ou uma família africana assim, na sua casa?"
Mas não é só nas grandes cidades que esta postura perante os
refugiados se verifica. Nas aldeias, sobretudo naquelas que estão junto à
fronteira, este é um sentimento preponderante. Em Ásotthalom, uma
localidade de 4 mil pessoas no Sul do país, há milícias de populares
armados que auxiliam as autoridades na patrulha da fronteira onde, não
tarda muito, haverá um muro de 4 metros de altura. O autarca
local, László Toroczkai, pertence ao Jobbik, o partido de
extrema-direita muitas vezes rotulado de nazi, foi eleito com mais de
70% dos votos.
“Às vezes [os refugiados] entram para dentro de
estaleiros para dormir lá ou para mudarem de roupas. E de vez em quando o
dono chega e eles estão lá dentro. Quem é que gostaria de encontrar um
afegão ou uma família africana assim, na sua casa?”, disse numa
entrevista recente ao Irish Times.
Um dos êxitos mais recentes deste edil de 37 anos foi ter conseguido
reunir mais de 14 mil euros em donativos para que fosse comprado um novo
jipe para a patrulha da fronteira. Até agora, esta era assegurada por
um velhinho Lada Niva — um jipe russo, ainda dos tempos em que “o muro”
era a Cortina de Ferro.
Mais um tijolo no muro?
“Ainda agora derrubámos os muros na Europa, não devíamos estar a
erguê-los de novo”, disse Natasha Bertaud, uma porta-voz da Comissão
Europeia, depois do anúncio da construção do muro húngaro. Não foi por
acaso que Bertaud evocou os murros entretanto derrubados — a Hungria,
tal como a Bulgária, era um dos países por trás da Cortina de Ferro. É
uma memória ainda fresca para quem viveu esses tempos, em que a Europa
(e, de certa forma, o mundo) estava dividido em dois: União Europeia e
União Soviética, Ocidente e Leste.
A Cortina de Ferro (termo
cunhado por Winston Churchill no discurso em 1946) era, sobretudo,
simbólica — uma linha imaginária de quase 7 mil quilómetros, ao longo da
qual, de forma localizada, havia vedações, controlos de fronteira
apertados e até um muro bastante concreto, em Berlim. Em 1991, com a
queda da União Soviética, desapareceu a dicotomia até aí prevalecente —
dando lugar à União Europeia dos 28 e à livre circulação no espaço
Schengen, do qual a Hungria faz parte e no qual a Bulgária pretende
entrar.
69 anos depois do “Discurso da Cortina de Ferro” de
Churchill e outros 24 desde o fim da União Soviética, a Europa torna a
construir novos muros. Mas será que pode haver algum tipo de comparação
entre um tempo e outro?
Juliá Iván, do Comité de Helsínquia
húngaro, fala em “ligações” entre os muros de hoje com os de outrora,
mas com uma ressalva. “Os tempos são outros. Nesses tempos havia uma
ordem para atirar contra quem passasse a fronteira e isso hoje não
acontece”, explica, para depois contrapor com algo que lhe parece
incontornável: o simbolismo. “É pelo simbolismo que as coisas começam e
isso é inegável. A maneira como vemos o discurso público em torno dos
refugiados, a maneira como eles são representados… Como se fosse uma
ameaça à nossa paz, à nossa estabilidade europeia, quando a única coisa
que eles procuram é um sítio pacífico onde possam retomar as suas vidas.
25 anos depois, estes muros representam o regresso a uma retórica de
confronto.”
"Antigamente, o objetivo do muro era não deixar que as
pessoas saíssem. Hoje, servem para que outros não entrem."
Para Dimitar Bechev, diretor do Instituto de Estudos Europeus da
Universidade de Sófia, o paralelismo faz “algum sentido” mas, ainda
assim, não é o mais acertado. “Os muros de hoje não são como os de
outrora, até porque não são tão militarizados como no passado.” Além
disso, explica, os propósitos destas novas barreiras não são os mesmos:
“Antigamente, o objetivo do muro era não deixar que as pessoas saíssem.
Hoje, servem para que outros não entrem.”
Para o académico, a
solução para a crise dos refugiados — a maior na Europa desde o fim da
Segunda Guerra Mundial — terá de passar por um equilíbrio entre
“solidariedade e interdependência” dos estados-membros. Iniciativas como
a da Alemanha, que conta receber um total de 800 mil sírios em 2015,
podem ser um pontapé de saída para uma solução. O olhar é, por isso,
“para o futuro e não para o passado”, explica Bechev. Para uma política
que passe pela diplomacia em vez de uma que assenta em muros de arame
farpado. Até porque, acredita, “muros e vedações não ajudam, são
puramente simbólicos e ineficazes, é algo que os países da periferia
europeia fazem com o intuito de conseguir algo a curto prazo.”
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REPORTAGEM POR
Urge humanizar o humano! O que aprendemos com a segunda guerra e o Muro de Berlim?
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