André Lara Resende*
A extensão e a profundidade da corrupção no Brasil atual causam
perplexidade até aos mais calejados observadores. Sempre fomos
complacentes em relação às pequenas transgressões, sempre houve
corrupção, aqui como em toda parte, mas é o caso de perguntar: como foi
possível chegar a um tal nível de desonestidade institucionalizada? A
gravidade da situação paralisa a política e a economia. Ainda não está
claro como sairemos da crise e o que virá a seguir. Espera-se que o país
mude para melhor, que a exposição da corrupção na vida pública e
empresarial, com a condenação dos envolvidos, reduza a corrupção. O fim
da impunidade é fundamental para reduzir a criminalidade.
Gary Becker, da Universidade de Chicago e ganhador do Nobel em
economia, foi o primeiro a utilizar o arcabouço conceitual da
microeconomia, com agentes racionais que maximizam utilidade, para
entender o processo de tomada de decisão em questões não especificamente
econômicas. Seus trabalhos pioneiros procuravam explicar a tomada de
decisão em relação a questões como quantos anos estudar, qual o melhor
momento para se casar e quantos filhos ter. Segundo Becker, todo
comportamento humano pode ser entendido como uma avaliação de custos e
benefícios. A decisão de cometer um crime depende do que se tem a
ganhar, comparado ao custo do castigo ponderado pela probabilidade de
ser pego. Se o benefício for maior do que o custo estimado da punição,
opta-se pelo crime. Simples assim. O modelo tem enorme apelo, exatamente
por ser simples, lógico, e dar sugestões claras sobre a prevenção do
crime: deve-se aumentar a probabilidade de que o criminoso seja preso e
endurecer as penas.
Feliz ou infelizmente, as coisas não são bem assim. Os avanços da
psicologia comportamental demonstram que nossa tomada de decisão é mais
complexa, não se restringe a um cálculo de racionalidade econômica.
Bastam alguns segundos de reflexão para concluir que ao longo da vida,
mesmo durante um único dia, temos inúmeras possibilidades de ser
desonestos, com baixíssima probabilidade de ser pegos. Nem por isso
somos sistematicamente desonestos. Ao contrário, o padrão do ser humano é
ser honesto, respeitar a lei e os códigos de ética da sociedade. A
desonestidade, ao menos a desonestidade consciente e deliberada, é a
exceção.
Os trabalhos recentes de Dan Ariely, professor da Universidade de
Duke, nos EUA, chegam a resultados interessantes e até certo ponto
surpreendentes em relação à desonestidade. A partir de experiências,
muito engenhosamente formuladas, com diferentes grupos de pessoas, a
maioria delas alunos universitários americanos, Ariely conclui que a
desonestidade não é uma questão de custos e benefícios. Seus
experimentos mostram que não há relação entre o valor do que se tem a
ganhar e a desonestidade num grupo. Também não há relação entre a
probabilidade de ser pego e a desonestidade. São resultados que
contradizem frontalmente a teoria do cálculo racional como fundamento
para a opção pela honestidade ou pela desonestidade.
É claro que não se é de todo insensível aos custos e benefícios da
desonestidade. Especialmente os desonestos contumazes, aqueles que fazem
da desonestidade um meio de vida, levam em conta os riscos associados à
atividade. Mas para a maioria das pessoas, que se percebem como
honestas, não se trata de um cálculo racional. Estamos todos dispostos a
incorrer em pequenas infrações, pequenas desonestidades, desde que as
consideremos suficientemente irrelevantes, para não arranhar nossa
percepção de que somos honestos. Queremos nos perceber e ser percebidos
como pessoas honestas, mas estamos dispostos a transgredir, desde que a
transgressão nos permita manter a autoestima.
Há quem escolha não levar vantagem mesmo na ausência de punição para o comportamento incorreto.
Referências culturais contam
Os estudos mostram que as pessoas são menos desonestas quando são
lembradas das leis ou dos códigos de ética. O grau de desonestidade
depende daquilo que é percebido como flagrantemente desonesto, assim
como do grau de tolerância em relação à desonestidade. Onde as infrações
de trânsito, como estacionar em local proibido, circular pelo
acostamento, são comuns e disseminadas, quem as comete não se percebe
como desonesto. Por isso mesmo, são mais frequentes.
A propensão a agir incorretamente depende também da nossa capacidade
de racionalizar. Se formos capazes de justificar a desonestidade, somos
muito mais propensos a agir de forma inapropriada. Isso vale tanto para
atos mais corriqueiros de incorreção, como também para os mais graves.
Roubos, assaltos, até mesmo assassinatos, podem ser cometidos de forma
fria, por pessoas que se consideram honestas, desde que em nome de uma
causa. O caso de políticos que roubam para o partido, ou para financiar
campanhas eleitorais, nunca para o seu enriquecimento, é exemplar da
necessidade de racionalização. Os estudos mostram que, quando a
desonestidade pode beneficiar pessoas do nosso grupo, ou até mesmo
desconhecidos, a propensão à desonestidade aumenta. Uma vez encontrada a
justificativa nobre, a racionalização, é possível ser desonesto e
manter a autoestima. É o efeito Robin Hood, mas, uma vez rompida a
barreira psicológica, passa-se mais facilmente para a desonestidade
aberta. Quando passamos a nos ver como desonestos, perde-se o pudor. Se
este for o comportamento disseminado entre nossos pares, tudo se torna
ainda mais natural.
Queremos ser honestos, mas a propensão para a desonestidade está em
todos nós. Mais do que um cálculo de custos e benefícios, o que nos
restringe são os valores de nossa comunidade. Se no meio em que vivemos a
incorreção é aceitável, insuficiente para arranhar nossa percepção de
que somos honestos, somos mais propensos à desonestidade. Essa é a razão
pela qual povos diferentes se comportam de forma diferente, ainda que
diante dos mesmos incentivos e riscos em relação a um comportamento
questionável.
Uma história curiosa, triste para nós, brasileiros, ilustra bem como
há comportamentos distintos diante da certeza da impunidade. Até alguns
anos atrás, a lei dava aos diplomatas estrangeiros, lotados nas Nações
Unidas, a isenção de pagamento das multas de estacionamento na cidade de
Nova York. A cidade, porém, nunca deixou de emitir as multas. Como não
precisavam ser pagas, não havia sanção para os diplomatas que
estacionassem em locais proibidos. Um estudo mostrou que, ao longo de
cinco anos, os diplomatas suecos e canadenses não tiveram multas, os
alemães tiveram uma multa per capita, os italianos 15, e os brasileiros
30 multas por diplomata. Se serve de consolo, a média dos diplomatas
kuaitianos foi de 246 multas.
A certeza da impunidade não leva todos a ser desonestos. A referência cultural conta. Os diplomatas suecos não são menos racionais do que os brasileiros, mas optam pela correção. Optam por não levar vantagem, mesmo quando não há punição para o comportamento incorreto. Há algo na cultura de certos povos, que se poderia chamar de capital cívico, que faz a diferença. Na definição dos que cunharam o termo, capital cívico é o estoque de crenças e valores que estimulam a cooperação entre as pessoas. Os entusiastas dos mercados não se cansam de defender a importância da competição e da meritocracia, mas os que entendem do riscado sabem que na base de uma economia de mercado, antes de tudo mais, estão a confiança e a cooperação. Vale a pena ouvir o que tem a dizer a respeito Kenneth Arrow, prêmio Nobel de economia. Seus trabalhos, em parceria com Gerard Debreu, formalizaram o chamado modelo de equilíbrio geral, do qual são deduzidos os corolários de eficiência dos mercados competitivos: “Virtualmente toda transação comercial tem em si um elemento de confiança. Pode-se dizer, de forma plausível, que muito do atraso econômico no mundo deve-se à falta de confiança mútua”.
Nas sociedades em que o capital cívico é baixo, impera o que Edward
Banfield, que foi professor da Universidade de Harvard, chamou de ”
amoralidade de laços familiares” 2. Com base em sua experiência num
vilarejo do sul da Itália, Banfield procurou entender as razões do
atraso da região. Concluiu que a resposta estava na obsessão com que os
habitantes se dedicavam exclusivamente aos interesses de suas famílias.
Incapazes de cooperar, até mesmo com os vizinhos, os camponeses
restringiam-se ao cultivo de suas pequenas propriedades. Ficavam assim
impossibilitados de se beneficiar dos ganhos de produtividade da escala e
da cooperação. Esse tipo de comportamento se auto-reforça, pois onde
todos desconfiam de todos e só estão preocupados com seus próprios
interesses, a desconfiança tem razão de ser. Não se pode superestimar a
importância da confiança nas relações econômicas e sociais. A confiança
importante para o bom funcionamento da sociedade é a confiança nos
desconhecidos. É a confiança naqueles que não conhecemos pessoalmente
que permite estabelecer contatos, desenvolver os mercados e a cultura.
Em pesquisas sobre valores e atitudes em diferentes países costuma-se
perguntar aos entrevistados se a maioria das pessoas merece confiança
ou se, ao contrário, é preciso tomar cuidado ao se relacionar com elas.
Mais uma vez o Brasil fica mal na fita. Enquanto na Suécia quase 70% dos
entrevistados respondem que os outros são dignos de confiança, no
Brasil, menos de 10% consideram que as pessoas são confiáveis. É sempre
possível argumentar que os brasileiros confiam menos nos outros porque a
Justiça é falha, há menos possibilidade de ser punido e, logo, todos
são efetivamente mais propensos a ser desonestos. Haveria assim uma
lógica no fato de por aqui se confiar menos nos outros, estaríamos de
volta à racionalidade do modelo de Gary Becker.
Acontece que a confiança nos outros, o grau de confiança básica,
difusa numa sociedade, não é simples consequência do bom funcionamento
da Justiça. Há, com certeza, correlação entre as duas coisas, mas o
sentido da causalidade não é claro. Assim como a Justiça eficiente
contribui para a confiança, mais confiança leva ao melhor funcionamento
da Justiça. A confiança e a propensão a cooperar não decorrem
exclusivamente dos mecanismos legais de prevenção e punição da
desonestidade. São traços culturais, forjados ao longo da história,
reforçados pela experiência de cooperação bem-sucedida. Constituem um
ativo de longo prazo, que não se adquire da noite para o dia. Como todo
traço cultural, são preconceitos, tanto positivos quanto negativos, que
não são facilmente revistos. Um exemplo da longa inércia a ser vencida
para a acumulação do capital cívico, da persistência das feridas na
confiança entre membros de uma sociedade, para o qual Luigi Zingales
chama atenção1, é o fato de que, até hoje, mais de um século e meio
depois do fim do tráfico de escravos, há significativas diferenças entre
as etnias na África. Aquelas que tiveram pessoas capturadas e
traficadas como escravos, muitas vezes por membros de suas próprias
tribos, até hoje desconfiam de tudo e todos.
Mais do que cálculos de custos e benefícios, são os
valores da comunidade que restringem, ou não, nossa propensão
às
práticas desonestas
“A construção do capital cívico é um longo percurso. A confiança e a
capacidade de colaborar, assim urdidas lentamente no decorrer da
história, podem ser muito rapidamente destruídas. Uma vez perdidas, é
preciso recomeçar do zero, refazer toda a longa história de acumulação
de capital cívico, de confiança e de cooperação. Não é fácil, pois a
desconfiança leva à desconfiança, e termina por justificar a falta de
confiança. É um círculo vicioso duro de ser rompido. A melhor forma de
fazer evoluir o capital cívico é não permitir que se deteriore.
A forma como a população avalia o Estado e suas instituições é uma
boa aproximação do capital cívico. Onde o capital cívico é alto, o
Estado é visto como um aliado confiável. Onde o capital cívico é baixo, o
Estado é percebido como um criador de dificuldades para todos e de
vantagens para seus ocupantes. Mais uma vez, o processo é do tipo que se
auto-reforça.
Se o Estado é percebido como ocupado por desonestos pautados por seus
próprios interesses, os bem intencionados evitam a vida pública, o que
termina por dar razão à desconfiança. Dada a visibilidade dos políticos e
a necessidade de se lidar cotidianamente com as autoridades, o Estado
corrupto é um poderoso fator de erosão do capital cívico. Nada mais
corrosivo da confiança e do espírito público do que a exposição diária a
um Estado ineficiente e patrimonialista.
Assim como o mau Estado destrói o capital cívico, as boas
instituições são imprescindíveis para sua preservação. Os estudos de
Ariely sugerem que o grau de desonestidade de uma comunidade tem
características parecidas com a de uma infecção. A desonestidade pega e
se alastra. Basta que uma única pessoa se comporte de forma
flagrantemente desonesta para que o grau de desonestidade de um grupo de
alunos universitários, submetidos às suas engenhosas experiências,
aumente significativamente.
Se uma única pessoa, um desconhecido, é capaz de aumentar a
desonestidade dos demais num grupo de universitários, fica claro que a
desonestidade dos governantes tem grande impacto sobre o grau de
desonestidade do país. Existe um “efeito demonstração” da desonestidade,
sua capacidade de se alastrar e de infeccionar a sociedade como um
todo. Esta é a razão pela qual é importante reduzir a frequência dos
pequenos atos de transgressão, das pequenas desonestidades aparentemente
inofensivas. A política de “tolerância zero” em relação ao pequenos
delitos, adotada pela polícia de Nova York, contribuiu para a dramática
redução da criminalidade na cidade. Pequenas infrações podem parecer
inócuas, mas contribuem para criar o ambiente propício às mais graves.
Anos atrás, quando eu ocupava um cargo público, um político com quem
eu tinha relações próximas queixou-se comigo da corrupção de pessoas
ligadas à sua área. Sugeri que ele fizesse uma denúncia pública.
Disse-me que jamais faria isso, porque o impacto para o descrédito da
política seria gravíssimo. Intuitivamente, ele estava dando expressão ao
efeito demonstração. É evidente que o argumento era falacioso, uma
racionalização para não se sentir compactuando com a corrupção sem
incorrer nos custos de denunciar seus pares. A concordar com ele, para
evitar a contaminação da sociedade, toda sujeira deveria ser empurrada
para debaixo do tapete. Isso não significa que não haja uma contradição a
ser resolvida: para reduzir a desonestidade, não se pode esconder a
corrupção, mas sua divulgação, através do efeito demonstração, contribui
para o aumento da desonestidade.
A impressão de que a desonestidade impera ajuda a racionalização do comportamento desonesto. Se todos são, ninguém é
A condenação dos envolvidos na operação Lava-Jato deverá reduzir a
percepção de impunidade. De acordo com o modelo de racionalidade da
desonestidade, haverá menos pessoas decididas a correr o risco. Para os
que já cruzaram a barreira, não há dúvida: pensarão duas vezes antes de
retomar as práticas a que estavam habituados. Mas, para a grande maioria
da população, para os que prezam a honestidade, que não se baseiam num
cálculo racional de custos e benefícios, o efeito demonstração terá um
impacto negativo. A impressão de que o governo, os políticos e os
empresários são desonestos aumenta a tolerância com a desonestidade no
dia a dia. Nas inúmeras pequenas oportunidades em que é possível
transgredir sem ser punido haverá maior propensão à desonestidade. A
impressão de que a desonestidade impera ajuda na racionalização do
comportamento desonesto. Se todos são, ninguém é. Por isso é importante
ir até o fim, não deixar a impressão de que só alguns foram punidos, que
os mais espertos, como sempre, escaparam.
Infelizmente, ainda assim, não é inequívoco que o capital cívico do
país sairá fortalecido da crise. É sempre possível que o impacto
negativo do efeito demonstração domine o impacto positivo do fim da
impunidade. Essa possibilidade é reforçada por mais um interessante
resultado dos estudos de Ariely. Quanto mais cansados, desanimados e
deprimidos estamos, mais propensos somos a ser desonestos. A honestidade
aumenta a autoestima e a baixa autoestima aumenta a desonestidade. A
recessão econômica e a depressão psicológica contribuem para o aumento
da desonestidade.
Para que o país saia melhor de tão grave e deprimente surto de
desonestidade, para que não passe à infecção generalizada, é importante
condenar e punir os culpados. Sem dúvida, mas não basta. É preciso, o
quanto antes, sair da crise, expurgar da vida pública os envolvidos,
recuperar a economia e dar início a uma nova era. O que exigirá, antes
de mais nada, novas e exemplares lideranças, ainda longe de estar
evidentes.
(1) L. Zingales, P. Sapienza, L. Zingales, “Civic Capital as the
Missing Link”, NBER working paper 15845. Março de 2010. Citado em L.
Zingales, “Capitalism for the People: Recapturing the Lost Genius of
American Prosperity”, Basic Books, 2012.
(2) E. Banfield, “The Moral Basis of a Backward Society”, The Free Press, 1958
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* André Lara Resende é economista, publicado no Jornal Valor Econômico, 31/7/2015
Artigo profundo e lúcido sobre o impacto da confiança nas relações sociais!
ResponderExcluirO que nos faz honestos é a gratidão do sentimento de isenção de desabono, sob o olhar do outro, o que nos provoca a confiança de que podemos nos deleitar no conforto da sensação de dignidade espelhada, mutuamente...
ResponderExcluirO que nos faz honestos é a gratidão do sentimento de isenção de desabono, sob o olhar do outro, o que nos invoca a confiança de que podemos nos deleitar no conforto da sensação de dignidade espelhada, mutuamente...
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