terça-feira, 31 de dezembro de 2019

MAFFESOLI defende a colaboração

O sociólogo Michel Maffesoli é professor emérito da Sorbonne

O sociólogo Michel Maffesoli é professor emérito da SorbonneCLAUDIO FACHEL/ARQUIVO/JC

Economia colaborativa mostra que é preciso andar contra a adversidade, diz Maffesoli

"Não sei no Brasil, mas vejo na França compartilhamento de carro, colocação, coworking, "coetc.". Isso vem do latim "cum", com", diz Michel Maffesoli. O esclarecimento é necessário para quem comece a conhecer a obra do sociólogo francês por "A Palavra do Silêncio" (trad. Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco, Palas Athena, R$ 38, 110 págs.), lançado no Brasil em setembro. Para ele, é cada vez mais difícil viver nas megalópoles, das quais São Paulo é uma expressão; há uma necessidade de andar juntos contra a adversidade.
 
No livro, o professor emérito da Sorbonne, onde fundou e dirige o Ceaq (Centro de Estudos sobre a Atualidade e o Cotidiano), defende a ideia de que uma nova espiritualidade, que revalorize o rito sobre a palavra, é necessária. Mas, embora tenha se debruçado sobre a religião ao longo de toda sua carreira, Maffesoli amplia o termo, falando das mais diversas formas de congregação - como as "tribos urbanas", termo cunhado por ele.
 
"Gosto muito de etimologia, religião vem de 'religare', religar. Sempre tentei mostrar que só era possível compreender a estrutura do 'viver juntos' compreendendo seus mitos, suas fantasias, tudo o que é seu imaginário. E a religião ocupa um lugar importante nesse imaginário." Em passagem por São Paulo para lançar "A Palavra do Silêncio", Maffesoli falou sobre as diferentes formas de espiritualidade e congregação que vê no cotidiano. 
 
O senhor vem dizendo que nosso século verá um aumento da espiritualidade. Ela seria como o senhor defende em "O Silêncio da Palavra", um nexo mais direto, menos racional?
Michel Maffesoli - Minha obsessão tem sido, ao longo dos anos, refletir sobre o fato de que estamos passando de uma época moderna a outra que, na falta de termo melhor, chamamos pós-moderna. O que chamamos de modernidade começa com o cartesianismo; prossegue com a Reforma Protestante e se funda, filosoficamente, no Iluminismo; conforma no século 19, os grandes sistemas sociais; e, no meu ponto de vista, dura até a metade do século 20. Nesses três séculos e meio, o tripé da vida social é a emergência do individualismo, a prevalência do racionalismo e a ideia de progressismo. As novas gerações não creem mais nesse tripé e privilegiam a comunidade, o que em outra época chamei "tribo"; não mais o racional, mas o emocional; não mais o progressismo, mas o presente. Para mim isso é a religiosidade juvenil. Eles não se reconhecem mais no materialismo econômico que se encontra tanto no que resta dos marxismos quanto entre os liberais. Por outro lado há, mais e mais, o apelo do qualitativo da existência, o fazer da vida uma obra de arte, dito à moda de Nietzsche. O fato de que não será mais o trabalho o valor essencial; de que coisas muito simples, os compartilhamentos, as novas formas de solidariedade, elementos de generosidade - elementos que são religiosos.
 
Parece uma perspectiva otimista.
Maffesoli - Não gosto desse adjetivo que me atribuem muitas vezes, porque é um qualificativo moral, e não sou moralista. Sou realista. Meu trabalho consiste em ver. É isso a fenomenologia, para usar um termo um pouco mais chique. Sob essa perspectiva, muito concretamente, vejo que funciona. Não sei no Brasil, mas vejo na França compartilhamento de carro, colocação, coworking, "coetc.". Isso vem do latim "cum", com. Esse é o elemento empírico. É cada vez mais difícil viver nas megalópoles, das quais São Paulo é uma expressão; há uma necessidade de andar juntos contra a adversidade.
 
O senhor também vem falando, ao longo desses anos, que a emoção vem ganhando terreno sobre um projeto racionalista. Existe uma ligação entre essa prevalência do emocional e a ascensão dos populismos?
Maffesoli - A intelligentsia - os jornalistas, os políticos, os acadêmicos - tendem a ver o copo meio vazio. É um problema das elites, desconectadas do povo, pensar que tudo vai mal. Já deu para compreender que eu gosto de ver o copo meio cheio. Tenho um livro, "Elogio da Razão Sensível", em que digo que não é o caso de separar a razão da emoção, que é uma questão de "holos", o todo. Que somos o conjunto. Não pretendo dar à emoção o lugar único, como não quero dar à razão esse lugar. A modernidade repousou sobre a ruptura. Tentei mostrar que deve haver essa sinergia.Para mim, essa perspectiva complexa, de complementaridade, é da ordem da sabedoria popular. E tenho um pouco de medo dessas elites que, agora, vão tachar o povo de populista. Lancei um livro, "La Faillite des Élites" [a falência das elites, em coautoria com Hélène Strohl, recém-publicado na França], no qual tento mostrar que há uma estigmatização da palavra "populista" porque há uma espécie de incompreensão dessa sabedoria popular que faz a ligação entre o espírito e o corpo. Escrevi alguns artigos sobre os "coletes amarelos", fui até eles ver o que estava acontecendo e vi que há uma espécie de sabedoria que não se reconhece mais no aspecto racional dos tecnocratas, dos políticos de direita ou de esquerda. Mas, ao contrário, há um retorno desse que é o fundamento mesmo da democracia, "demos" [povo].
 
O senhor já deu como exemplo desse retorno da emoção as manifestações de jovens no Brasil em 2013. Esses protestos acabaram reunindo aqueles que eram contra a política tradicional. Seguiram-se o impeachment de Dilma Rousseff e a eleição de Bolsonaro. Essa resposta emocional é desejável?
Maffesoli - É difícil falar de Bolsonaro. Não sou brasileiro.
 
Ele está bastante presente no noticiário, mesmo na França.
Maffesoli - Bom, vou ter que falar [ri]. O que me impressiona, no mundo todo, é que haja tal distanciamento entre as elites e o povo que cause a emergência dessas figuras - além de Bolsonaro, Salvini, na Itália, Trump, nos Estados Unidos, Boris Johnson, na Inglaterra. Meu presidente é um homem inteligente. Não, é instruído. Tem essa capacidade de dominar as ferramentas econômicas e diplomáticas, mas nenhum contato com o povo. Esse é para mim o perigo. Como disse num artigo, esses democratas não são demófilos [amigos do povo]. Digo aos meus amigos brasileiros que têm de se questionar; por que vocês têm essa coisa terrível [ri], por que na França temos o que temos? É preciso ter a humildade de aceitar que não é "culpa do povo".
 
Em seu livro, o senhor critica o protestantismo, em que a palavra supera o rito e a liturgia. Mais de 30% dos brasileiros são evangélicos. Onde entram essas designações religiosas no quadro do retorno à espiritualidade?
Maffesoli - O protestantismo foi a marca da modernidade e esse protestantismo é uma forma muito racionalista de disfarçar o ateísmo. Costumo dizer que o Brasil é o laboratório da pós-modernidade, e também nisso o é. Vemos aqui um afluxo dessas denominações, por motivos individuais, como sair de vícios, mas também por um sentido de comunidade nada desprezível. Do meu ponto de vista, porém, é um combate de retaguarda. Acho muito mais interessante, no quadro brasileiro, o papel que têm o candomblé ou a umbanda. Tenho amigos da minha idade no Brasil, marxistas, que se tornaram pais de santo!
 
O culto do natural, do ancestral, o retorno ao campo seriam movimentos sociais que denotam uma busca por religação espiritual?
Maffesoli - Quanto a esse retorno à "mãe terra" e outras manifestações, falo de uma "invaginação do sentido", por oposição à modernidade, em que prevaleceu o falo espermático. O sentido só se compreendia pela projeção fálica. Um dos meus livros, "Matrimonium", tinha como subtítulo "Pequeno Tratado de Ecosofia". Com "ecosofia" --"oikos", casa, "sofia", sabedoria-- faço a oposição da ecologia política. É a sabedoria da casa comum. Não se trata do homem mestre e possuidor da natureza de Descartes. É uma religiosidade ambiental que atinge uma enormidade de pessoas. As novas gerações, que vão garantir o futuro da sociedade, têm uma sensibilidade para esse tema.
 
Isso nos leva à ativista Greta Thunberg, para alguns uma figura messiânica. Essas figuras são necessárias hoje?
Maffesoli - Pessoalmente não gosto dela, acho desagradável, agressiva. Mas o que ela representa é interessante. Cada época tem sua figura emblemática, é Durkheim quem diz. A figura emblemática moderna é o adulto sério, racional, produtor e reprodutor. O grande burguês. Uma das minhas hipóteses acerca da pós-modernidade repousa na figura de Dionísio, a criança eterna. É interessante que ela seja uma representação dessa criança.
 
O seu livro fala da necessidade do silêncio. Mas cada vez mais as pessoas dizem tudo o que pensam. Quando nos manifestamos nas redes sociais, buscamos uma tribo ou tentamos nos individualizar?
Maffesoli - Auguste Comte - ele era de Montpellier, como eu, hoje é pouco lido, mas o li bastante-- definia a sociedade e a sociologia por uma fórmula em latim, "reductio ad unum", redução a um - a unidade do Estado, da identidade. Quando cunhei o termo "tribo" era uma uma provocação para mostrar como havíamos explodido essa unidade e que, de certa forma, já não prevaleceria o indivíduo, mas a pessoa plural. "Persona" significa "máscara", se sou uma "pessoa plural" tenho máscaras. Nas redes sociais, vivem-se essas máscaras. Então, de certa forma, no nível das redes sociais, que é para mim o nível do tribalismo pós-moderno, o que se dá é a aplicação do que diz Arthur Rimbaud: "Eu é um outro". Não é ou isso ou aquilo, é isso e aquilo. Não deixa de ter uma dimensão religiosa, no sentido de "religare", de estar em relação com o outro.
 
No livro, o senhor diz que só existimos pelo olhar do outro. Essa comunhão na alteridade encontra expressão em frases como "Eu sou Charlie" e suas variações. A palavra substitui o ato?
Maffesoli - Acho que, nesse "eu sou isso, sou aquilo" o que importa não é o "isso" ou o "aquilo", mas o "eu sou". A modernidade tem como uma de suas marcas o encerramento em si mesmo. Todos conhecem o "penso, logo existo" de Descartes, mas poucos sabem o que completa a frase--"na fortaleza da minha mente". A fortaleza da mente foi a grande ideia do indivíduo moderno. Quando digo "eu sou Charlie", "sou isso", "sou aquilo", é essa explosão de si no outro. Para o bem e para o mal. Na guerra santa islâmica também há a explosão de si no outro. Não estamos mais encerrados numa identidade pessoal. É o outro que me cria e, de novo, há nisso uma dimensão religiosa. Estamos passando da era do eu para a do nós. Voltando à sua questão sobre as denominações protestantes, para mim elas são o fim. Elas encerram. Que os políticos, como seu presidente, saibam se valer delas, é outra coisa.
 
Esse nós, porém, não é coeso.
Maffesoli - Poderíamos terminar dizendo que estamos num momento em que há uma diferença entre a sociedade oficial e a sociedade oficiosa. A oficial é representada por pessoas da minha idade, acadêmicos, políticos, jornalistas, a intelligentsia, os que têm poder de dizer e fazer. Ela continua nos velhos caminhos modernos - individualismo, racionalismo, progressismo. Quando olhamos as práticas juvenis da sociedade oficiosa - e, quando digo juvenis não me restrinjo às novas gerações, como disse antes, há esse mito da criança eterna -, essa sociedade está em desacordo com a oficial. Na França, um eleito, do presidente a um deputado, representa 12% da população. Muita gente não se inscreve para votar, 60% da população ficam de fora, a partir daí é que vem a divisão. Essa sociedade oficial é endogâmica. E há algo diferente em gestação, que para mim é o retorno do povo. A primavera do povo. E que vem sendo chamado de populismo - uma maneira de estigmatizar o fato de que esse povo já não se reconhece porque não é mais representado. Retomando Hannah Arendt, ela dizia que, para que haja representação política, primeiro deve haver representação filosófica. Que eu tenha coisas a dizer que lhe agradem, que eu convença você e você me dê sua voz. Agora há essa espécie de secessão entre oficial e oficioso. Já deve ter dado para entender, o que me interessa é o oficioso. - Folhapress 
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Fonte:  https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/cadernos/empresas_e_negocios/2019/12/718178-economia-colaborativa-mostra-que-e-preciso-andar-contra-a-adversidade-diz-maffesoli.html

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Presidente perdeu para “A Pirralha”


José de Souza Martins*  
 
Jair Messias não teve a capa da “Time” como Greta Thunberg, mas tem a primeira página do “Diário Oficial da União”

Pirralha com maiúscula, porque ela mesma assumiu como batismo de fogo a classificação descabida e preconceituosa que lhe foi aplicada pelo presidente do Brasil. Como reação descabida por ter ela manifestado horror e indignação contra o assassinato de dois índios guajajara no Maranhão. E por ter compreendido que não se trata de um acaso, mas de um descaso, de um desinteresse do Estado brasileiro pela sorte dos nativos.

Na sequência, a adolescente sueca Greta Thunberg foi escolhida “Pessoa do Ano” pela “Time” e teve seu retrato na capa da famosa revista, que milhões leem, por sua luta justa e necessária em defesa de um mundo limpo, que seja, de fato, patrimônio da humanidade. E não usurpação

praticada pela lucrativa economia de emporcalhamento da Terra. Justa homenagem, porque ela infunde esperança e o ânimo da resistência em milhões de jovens e estudantes do mundo inteiro, por sua coragem de interpelar os poderes e os poderosos.

Jair Messias não teve a capa da “Time”, mas tem a primeira página da Secção do Executivo do “Diário Oficial da União”. Não é a mesma coisa, pois é publicação que ninguém lê. Mas é o consolo que pode ter. Seu desdém pelas lutas sociais, pelo direito à diferença, pela liberdade de opinião, pelas questões humanitárias, nestes poucos meses de Presidência, tornou-se emblemático.

Aparentemente, ele quer falar apenas para a minoria obscurantista de seus iguais, os não esclarecidos, os condenados à solidão antissocial e antipolítica do autoritarismo e da intolerância.

O presidente brasileiro saiu em desvantagem, perdeu para uma adolescente. Ela fala a língua do mundo. Ele acabou sendo vítima do efeito bumerangue da falta de clareza e de consciência política nas decisões que toma, cujo sentido não é decidido por ele, o que nenhum político pode ignorar.

Não adianta socorrer-se dos explicadores oficiais do vocabulário presidencial para corrigir esses descuidos. O que o presidente diz não tem o sentido que ele quer que tenha, mas o sentido que pode ter, o da compreensão ditada pela circunstância social e política. Em boa parte, o sentido que o povo, a Pirralha incluída, sabe que tem.

O assassinato de dois índios guajajara, no Maranhão, indica que 519 anos depois da descoberta do Brasil ainda se mata índios no país com base na mesma dúvida que foi severa e criticamente analisada pelo padre Manoel da Nóbrega, no século XVI - se os índios tinham alma ou não, se eram gente ou não. Ou em termos do discurso político oficial, de hoje e da “política indigenista” atual, se são homens da caverna ou não.

Maior se tornam o problema e a apreensão decorrente quando as próprias autoridades do país minimizam as vítimas, satanizam quem as defende e desdenham a gravidade da violência descabida.

Não se trata de tomar ou não providências administrativas e providências policiais, se elas são implicitamente negadas nas falas e nos discursos e sobretudo nos clamorosos silêncios do Estado brasileiro, o silêncio da cumplicidade tácita.

O governante não é obrigado a gostar de índio nem de preto, de pirralho, de quem professa ideias de que discorda porque não as tem. Mas o mandato de nenhum governante tem legitimidade se quem governa não tem apreço por gente.

Do mesmo modo que ninguém é obrigado a gostar do governante tosco e preconceituoso, como mostram os significativos números das estatísticas de opinião política e eleitoral destes dias. Mas não pode deixar de respeitar as instituições e o contrato social que nas leis nos rege e o pacto da unidade na diferença que é próprio da sociedade brasileira.

Hoje, os índios são 900 mil pessoas, de 305 diferentes povos indígenas. Desde a violência genocida dos anos 70, multiplicaram-se nove vezes. Uma verdadeira insurreição demográfica. Já estão chegando ao Congresso Nacional.

São falantes de 274 línguas nativas. Uma delas, a língua tupi ou língua geral, que o general Couto de Magalhães, seu estudioso, batizou com o nome de nheengatu, língua bonita. Ela influiu significativamente na formação do que é propriamente a língua brasileira.

É a língua que falamos no dia a dia, no sotaque, na sonoridade, no vocabulário, na mansidão da pronúncia, nos significados propriamente brasileiros de nossa fala. Em nossa linguagem peculiarmente dupla, no dito e no não dito, na coisa e na sobrecoisa. Uma língua, de vários modos, diferente da língua mãe, a que se fala em Portugal.

O antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro, em um de seus livros, sublinha que o branco do contato com o índio é o pior tipo de branco, o mais desprovido de valores relativos à condição humana e ao seu semelhante. Cuja mentalidade pode estar perto do poder. Há exceções, e muitas, mas não suficientes.
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*José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador emérito do CNPq, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de "Desavessos" (Criarte).
— Foto: Carvall

Para Eduardo Giannetti, há sinais de riscos à democracia


Giannetti: incertezas sobre estabilidade democrática podem ser obstáculo para transição a crescimento sustentado — Foto: Claudio Belli/Valor
 Giannetti: incertezas sobre estabilidade democrática podem ser obstáculo para transição a crescimento sustentado — Foto: Claudio Belli/Valor 

Na visão do economista e escritor, há declarações e comportamentos autoritários “que revelam claro descompromisso com a ordem democrática”, embora ainda no plano simbólico

Por Sergio Lamucci — De São Paulo

20/12/2019

O economista e escritor Eduardo Giannetti vê sinais de riscos à democracia no Brasil governado por Jair Bolsonaro. “Há muitas declarações, há muitos comportamentos autoritários que revelam um claro descompromisso com a ordem democrática, mas ainda muito no plano simbólico”, diz ele, para quem um risco institucional pode se concretizar “quando e se houver algum tipo de conflito mais sério entre os Poderes da República”. Na visão de Giannetti, incertezas quanto à estabilidade da ordem democrática podem ser um obstáculo para a transição da retomada cíclica, que enfim parece se firmar, ao crescimento sustentado.

Entre os sinais de riscos à democracia, ele cita exemplos como as ameaças do presidente de perseguir a imprensa independente, usando o poder do Estado; os elogios de Bolsonaro à repressão e à tortura durante o regime militar, como no episódio envolvendo o pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz; e a atuação do general Eduardo Villas Bôas, assessor especial do Gabinete de Segurança Institucional GSI), tentando “constranger e intimidar” o Supremo Tribunal Federal (STF) às vésperas da votação sobre a prisão em segunda instância - sem citar o julgamento, Villas Bôas falou, num tuíte, sobre o risco de “convulsão social”.

Giannetti avalia que a economia está no “limiar de uma recuperação cíclica”, adiada desde o fim da recessão. Agora, há sinais mais sólidos de retomada na “construção civil, crédito, demanda de modo geral”. Há também um cenário fiscal melhor e uma aparente trégua de choques de natureza política e institucional. Para transitar ao crescimento sustentado, porém, o país precisa de dois fatores fundamentais, segundo ele. “Primeiro, é clareza em relação à constituição econômica. Qual é o sistema tributário que vai valer, qual é o regime trabalhista que vai valer, qual é o marco regulatório para o investimento em infraestrutura”, diz Giannetti. “A outra coisa é uma garantia quanto à estabilidade do ordenamento jurídico-político brasileiro, na democracia e no estado de direito, que não está bem parado.”

Para ele, se houver problemas com a ordem política e institucional, pode haver instabilidade social, com momentos de muita conturbação. Num cenário de insatisfação desse tipo, os agentes econômicos não se sentem seguros para tomar decisões de longo prazo.

Na entrevista, Giannetti diz ver como fundamental que os grupos que se constituíram em oposição à ditadura e se revezaram no poder a partir da redemocratização cooperem, para que não prevaleça outra vez o que ocorreu em 2018. “Se voltar a polarizar, a chance de permanência do atual governo aumenta enormemente.” Autor de livros como “Auto-Engano”, “O Valor do Amanhã” e “Trópicos Utópicos”, Giannetti trabalha numa nova obra, sobre ética, que deve se chamar “O Anel de Giges.”

Valor: O ano termina com a expectativa de recuperação mais firme da economia. A retomada cíclica vai enfim ganhar força?
Eduardo Giannetti: Acho que estamos no limiar de uma recuperação cíclica, que vem sendo postergada desde o fim da recessão. Tivemos o mesmo enredo no Brasil três anos seguidos. O ano começa com as perspectivas mais otimistas, com as pessoas falando em crescimento de 2%, até um pouco mais, 2,5%, 3%, mas, à medida que o ano vai passando, as expectativas são revistas para baixo e o ano termina com crescimento muito próximo de 1%. Tendo a crer que 2020 será diferente.

Valor: O que parece diferente desta vez?
Giannetti: Há indicadores muito sólidos mostrando uma recuperação - construção civil, crédito, demanda de um modo geral. O governo conseguiu criar um mínimo de ancoragem fiscal e a sucessão de choques, de incerteza política e institucional, aparentemente deu trégua. E há um movimento natural do ciclo econômico. Estivemos na UTI em 2015 e 2016, com os sinais vitais da economia em queda livre. Depois entramos numa convalescença que se prolongou enormemente, num padrão muito diferente das outras recessões. E estamos agora transitando da convalescença para a normalidade - a recuperação cíclica. Mas não vamos confundir com o crescimento sustentado. Isso é outra etapa, e não está nada claro ainda se o Brasil está preparado para enfrentá-la.

Valor: Por que tanta demora para a retomada?
Giannetti: A variável mais relevante é a queda do investimento. Houve recuo de mais de 30% da formação bruta de capital fixo durante a recessão. Aí você tem dois componentes. O primeiro é o setor púbico, que naturalmente perdeu a capacidade de investir, por causa da crise fiscal. Houve também retração muito profunda do investimento privado. Não é difícil explicar que o setor público tenha perdido a capacidade de investir, depois da extravagância fiscal que o Brasil viveu durante o governo Dilma. Dada a rigidez do orçamento, o ajuste teria que vir pelo gasto discricionário, onde está o investimento. No setor privado, a explicação é mais complexa. Primeiro, houve recessão muito profunda, que gera grande capacidade ociosa.

Valor: O que mais influenciou?
Giannetti: Houve uma sucessão de choques de incerteza política. Houve o impeachment da [ex-presidente] Dilma Rousseff. Houve o escândalo do vazamento da conversa do [ex-presidente] Michel Temer com Joesley Batista, da JBS, no momento em que se ia votar a reforma da Previdência. Depois houve a greve dos caminhoneiros. Na eleição presidencial, houve um momento em que, dos dois candidatos que lideravam as pesquisas, um estava preso [Luiz Inácio Lula da Silva] e o outro [Jair Bolsonaro] estava na UTI. Acrescento um elemento de incerteza institucional na economia. Se você está contemplando um projeto de investimento e não tem certeza sobre as regras do jogo econômico que vão prevalecer, fica muito difícil fazer um cálculo de retorno. Uma mudança no sistema tributário pode tornar o que parecia ser um investimento altamente rentável num investimento que não se paga. Foi feita uma reforma trabalhista no governo Temer, mas criou-se uma indefinição porque as medidas que iam ser vetadas pelo Executivo acabaram não sendo. As instâncias da Justiça do Trabalho aparentemente votam cada uma como bem entende. Isso gera insegurança. Além disso, o marco regulatório da infraestrutura está muito instável.

Bolsonaro com os filhos Flávio, Eduardo e Carlos: para Eduardo Giannetti, fonte de maior preocupação é o componente 
“familiar-astrológico” do governo — Foto: Roberto Jayme/Ascom/TSE

Valor: Continua instável?
Giannetti: Completamente. Houve dois episódios graves muito recentes: um, a destruição dos postos de pedágio da Via Amarela, liderada pelo prefeito do Rio, Marcelo Crivella. Aquela é uma cena de horror econômico. Um investidor que vê aquilo e acredita em investir no Rio em infraestrutura é porque ele está fora da realidade. Outro episódio é que Goiás quer reestatizar o setor de energia elétrica, que foi concedido para a Enel. É preciso dar ao investidor privado a confiança de que o investimento dele será avaliado pelo mérito, e não por mudanças arbitrárias no ambiente econômico que não têm nada a ver com a qualidade da escolha feita.

Valor: O consumo das famílias tem boas perspectivas, e a expectativa para o investimento parece ter melhorado. O que ajuda nesse quadro?
Giannetti: A grande e bem-vinda novidade brasileira é o juro baixo. Existe uma massa de poupança financeira, que vivia da Bolsa CDI, e que agora está meio desesperada, procurando alternativas para obter uma rentabilidade razoável. O que vai definir a economia agora é saber se essa massa de poupança vai aceitar essa nova realidade e vai procurar investimentos de criação de capacidade, de infraestrutura, de aumento da capacidade produtiva, que levam ao crescimento sustentável. Nós temos hoje muita capacidade não utilizada, física, e temos 4 milhões de pessoas com ensino superior, qualificadas, que estão desempregadas. Há uma margem para um crescimento no curto prazo que é simplesmente voltar à velocidade de cruzeiro, usando fatores de produção já existentes. Isso nós vamos assistir, se tudo correr bem, em 2020. No fim de 2020, vamos começar a sentir se esse movimento da poupança financeira se orientando para a economia real dará sequência para o crescimento sustentado ou se teremos inflação e o Banco Central vai ter que aumentar os juros - e aí nós voltamos para trás. É a grande incógnita para 2020.

Valor: É possível crescer 2% a 2,5% em 2020?
Giannetti: Não há dificuldade nenhuma em crescer 2,5%, até 3% no ano que vem. É só usar recursos que já estão dados na sociedade. Essa parte do enredo é muito dada, é muito tranquila. A parte difícil do enredo é quando a economia estiver na vizinhança do pleno emprego e passar a depender de novos investimentos para poder se expandir. Se esses novos investimentos não se materializam, com a demanda crescendo, você gera pressão inflacionária e déficit em conta corrente.

Valor: Os juros estão no nível mais baixo da história. É uma queda estrutural, fruto de medidas como reforma da Previdência e do teto de gastos, ou mais o resultado de uma economia que não cresce, com grande ociosidade?
Giannetti: Não acho que essas duas hipóteses sejam excludentes. A recessão ajudou muito a manter uma inflação abaixo até do centro da meta, mas também o esforço de contenção fiscal desde o governo Temer para cá permitiu reverter o caminho explosivo de crescimento da dívida pública em relação ao PIB, que era muito preocupante. Mas o teste da permanência desse novo quadro virá ao longo de 2020, quando nós voltarmos para a vizinhança do pleno emprego, do [uso] dos fatores de produção.

Valor: Alguns analistas acham que, como a ociosidade é alta, isso ocorrerá apenas em 2022.
Giannetti: Depende aí da rapidez e da intensidade com que essa demanda volta. Eu tendo a crer que ao longo de 2020, na virada de 2020 para 2021, já vai estar claro se nós estamos num ambiente de círculo virtuoso em que a massa de poupança financeira assume os riscos naturais de investimento na economia real ou se nós estamos caminhando para pressões inflacionárias e déficits externos. Entrando agora num ponto que não é estritamente econômico. Incertezas quanto à estabilidade da ordem democrática no Brasil podem ser o grande complicador nesse cenário, dentro do capítulo dos riscos das incertezas políticas e institucionais. Declarações sobre o AI-5, a iminência de protestos que podem levar a retrocesso político, são a última coisa que o Brasil precisa.

Valor: O sr. vê riscos à democracia no Brasil?
Giannetti: Eu vejo riscos. Os sinais não faltam. Até sobram. Há muitas declarações, há muitos comportamentos autoritários que revelam um claro descompromisso com a ordem democrática, mas ainda muito no plano simbólico. O momento em que isso pode se tornar uma realidade é quando e se houver algum tipo de conflito mais sério entre os Poderes da República. Se houver - e espero que isso não ocorra - uma decisão de um poder soberano que não é respeitada por outro poder soberano, aí nós vamos estar saindo do simbólico para uma situação muito concreta de risco institucional. Pode ser uma decisão do STF que não é respeitada, que não é acolhida, pelo Executivo ou pelo Legislativo. Há várias possibilidades.

Valor: Quais os sinais de riscos à democracia?
Giannetti: Quando o presidente ameaça perseguir a imprensa independente, usando o poder de Estado. Quando elogia a repressão e a tortura durante o regime militar, como no episódio envolvendo o pai do presidente da OAB [Felipe Santa Cruz]. Quando reage ao aumento dos incêndios na Amazônia questionando o trabalho do Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais], demitindo o seu presidente [Ricardo Galvão] e acusando as ONGs que atuam na região. Quando o general Villas Bôas tenta constranger e intimidar o STF às vésperas da votação da prisão em segunda instância.

Valor: As instituições estão funcionando?
Giannetti: Estão funcionando, mas há nuvens e ameaças. Há um enorme descrédito na população brasileira em relação à política, em relação à Justiça, em relação à lisura das regras da vida pública. E não é só no Brasil - veja o que ocorreu no Chile, o que ocorreu na Bolívia, o que está ocorrendo na Colômbia. E não é apenas na América do Sul. É uma coisa séria.

Valor: Voltando para a ua preocupação com a situação do investimento, como isso pode afetar a recuperação do Brasil?
Giannetti: Duas coisas seriam importantes para o Brasil transitar da recuperação cíclica para o crescimento sustentado. Primeiro, é clareza em relação à constituição econômica. Qual é o sistema tributário que vai valer, qual é o regime trabalhista que vai valer, qual é o marco regulatório para o investimento em infraestrutura. A outra coisa é uma garantia quanto à estabilidade do ordenamento jurídico-político brasileiro, na democracia e no estado de direito, que não está bem parado.

Valor: Há quem acredite que, se a economia estiver crescendo, é indiferente para os investidores se há riscos para a democracia ou não.
Giannetti: Não. Vai ter instabilidade social se houver isso. Vai ter momentos de muita conturbação. Eu gosto de olhar as coisas na linha do tempo. O Brasil tem vivido ondas bem definidas de insatisfação, de classe média principalmente, com o estado das coisas. A primeira grande manifestação disso foi junho de 2013, uma surpresa que deixou o status quo político brasileiro e o governo da época completamente nas cordas. Foi uma enorme perplexidade, porque não se imaginava que havia tanta insatisfação latente em grupos que aparentemente estariam melhorando de vida, numa época em que havia ainda um sentimento de prosperidade.

Valor: Quais foram os outros?
Giannetti: Depois você teve uma outra onda que quase mudou o status quo político brasileiro, deflagrada pela morte do Eduardo Campos e que quase levou a Marina Silva a vencer 2014. Marina, durante algum tempo, catalisou esse sentimento de que precisava renovar a política brasileira de modo muito radical. Ela foi violentamente atacada, aquilo gerou enormes feridas na vida brasileira, mas foi uma segunda onda. Depois houve a onda do impeachment da Dilma, que também levou a grandes manifestações e muita insatisfação e foi uma terceira onda. Em seguida, uma quarta onda, que foi a greve dos caminhoneiros. Começou como um movimento localizado, mas de repente grande parte da sociedade estava apoiando a greve. A quinta foi a vitória de Bolsonaro. Um total outsider, desconhecido, que não participou da campanha, mas que conseguiu galvanizar um sentimento de que precisava mudar. E mudar radicalmente. A pergunta que eu faço é - será que essas ondas acabaram?

“Liberalismo não é gestão prudente e equilíbrio fiscal. É uma visão de mundo, 
da qual igualdade de oportunidades é um elemento central”

Valor: Pode ocorrer algo parecido com o que ocorreu no Chile e em outros países da região?
Giannetti: Se começar a brincar demais com a ordem política, institucional... Eu não vou fazer uma profecia, não é o meu estilo, mas eu tendo a crer que essas ondas não acabaram. Elas podem ter outros movimentos dessa contundência, que geram de novo, aí voltando para o cenário econômico, uma situação em que os agentes não se sentem seguros para tomar decisões de longo prazo. Vivem no curtíssimo prazo, simplesmente mantendo alguma posição que tem.

Valor: Qual o seu balanço de um ano de governo Bolsonaro?
Giannetti: Eu vejo o governo Bolsonaro com três componentes. Há um componente militar, de orientação geopolítica. Há um componente econômico, de orientação neoliberal. E há um componente que eu chamo familiar-astrológico. O que realmente me preocupa é esse componente, porque ele domina segmentos e setores muito importantes das políticas públicas no Brasil. Em educação, em meio ambiente, em direitos humanos, em relações exteriores e cultura. Seria uma visão muito tacanha do pensamento liberal imaginar que eles se atêm simplemente à gestão da macroeconomia e do lado fiscal. As coisas não são compartimentadas e segmentadas assim na realidade. Sem formação de capital humano adequada, não há prosperidade e não há mercados funcionando com a eficiência que eles podem ter. Se você não fizer bem as relações exteriores, você não amplia as oportunidades de comércio internacional. Se você prejudica demais a gestão ambiental, como está ocorrendo, é um fator de incerteza.

Valor: Quais os riscos nessa área?
Giannetti: Pode-se caminhar até para a situação de boicote de produtos brasileiros, para constrangimentos de comércio internacional e para situações que no limite minam a própria condição de sustentabilidade do agronegócio no Brasil. Eu duvido que o Centro-Oeste brasileiro sobreviva à derrubada da floresta amazônica. O regime pluviométrico gerado pela Amazônia é vital para manter produtivo e fértil o Centro-Oeste brasileiro. Não dá para segmentar e compartimentar. O que me desagrada profundamente no governo Bolsonaro é essa orientação pesadamente obscurantista e ideológica desse segmento que eu chamo familiar-astrológico.

Valor: É uma referência à influência dos filhos do presidente e de Olavo de Carvalho, não?
Giannetti: Exato. David Hume dizia que os erros em religião são perigosos e, em filosofia, apenas ridículos; mas neste caso é difícil dizer onde termina o ridículo e começa o perigo.

Valor: O ex-presidente do BC Arminio Fraga tem dito que, sem combater a desigualdade, não se vai destravar a economia. O sr. concorda?
Giannetti: Esse é um aspecto muito bem lembrado pelo Arminio. Converge com o que eu estava falando. Liberalismo não é gestão prudente e equilíbrio fiscal. É uma visão de mundo, da qual, por exemplo, igualdade de oportunidades é um elemento central, e não se está buscando isso. Nós estamos vivendo um enorme retrocesso nas políticas sociais no Brasil.

Valor: Na educação, vários especialistas criticam o ministro Abraham Weintraub por uma gestão preocupada com questões ideológicas, que não dá a devida importância para a educação básica. Como o sr. avalia a área?
Giannetti: Felizmente a educação depende muito dos Estados e municípios, então o estrago em alguma medida é limitado. Mas eu não vejo o mínimo de discernimento e de clareza em relação à prioridade que deveria ter o ensino fundamental de qualidade. Já uma agenda que eu gosto é a agenda do pacto federativo.

Valor: Por quê?
Giannetti: Eu falo há muito tempo em “Menos Brasília, mais Brasil”, é a minha fórmula [Paulo Guedes tem falado em “Mais Brasil, menos Brasília”]. Em 1988, foi feita uma opção pelo Estado federativo. As funções típicas de setor público foram transferidas do governo central para Estados e municípios. Há um sistema em que os recursos convergem para Brasília para depois retornarem para os Estados e municípios. Daí que 80%, 85% dos municípios praticamente não arrecadam. Vivem de mesada. Isso é uma receita para malversação e para má utilização de recursos públicos. O município não tem saneamento, mal tem um posto de saúde, o ensino é precário, e ele gasta uma proporção relevante dos recursos com máquina pública, com políticos e com agregados. O que não dá para entender é que nós temos uma carga tributária de 33% do PIB. É um terço da renda nacional. O déficit nominal [que inclui gastos com juros] é de 6% do PIB. Com isso, 39% de todo o valor criado pelo trabalho dos brasileiros transita pelo setor público. Metade dos domicílios não tem coleta de esgoto. O ensino fundamental é deplorável. Saúde pública é muito deficiente, mas é menos ruim relativamente do que a educação. Para mim, o que está por trás dessas ondas de insatisfação que se repetem, com diferentes configurações, é um sentimento de que a sociedade transfere uma quantidade elevada de recursos para o setor público e não recebe como contrapartida minimamente resultados que justifiquem o tamanho do dreno feito.

Valor: O sr. disse que há um descaso com políticas sociais. O governo não mexeu no Bolsa Família e vai pagar uma 13ª parcela neste ano. O que falta à área?
Giannetti: Política social não é apenas transferência de renda extramercado. É política de gênero, é política de igualdade étnica.

Valor: Nas relações exteriores, como o sr. vê o alinhamento aos EUA. Faz sentido?
Giannetti: O Brasil está fazendo o papel de bobo da corte. Porque na hora de os americanos concretamente mostrarem algum tipo de afinidade e aliança, eles fazem exatamente o contrário. Foi assim no caso da OCDE e no caso agora das tarifas de importação [o anúncio de Trump de que iria sobretaxar as importações de aço e alumínio do Brasil e da Argentina].

“Eu não vejo o mínimo de discernimento e de clareza em relação à prioridade que deveria ter o ensino fundamental de qualidade”

Valor: Eu gostaria de falar um pouco sobre a eleição de 2018. Houve uma polarização, e o centro murchou. O que ocorreu?
Giannetti: Três grupos se constituíram na oposição democrática ao regime militar. Trabalharam juntos, de modo muito cooperativo. A partir da redemocratização, cada um desses grupos foi testado no governo. Primeiro, o PMDB, com Sarney, depois o PSDB, com Fernando Henrique Cardoso, e por fim o PT, com Lula e Dilma. Quase como num experimento de laboratório. Duas coisas chamam a atenção. A primeira é que cada um desses grupos preferiu governar como o que há de mais sinistro na política brasileira a trabalhar junto, especialmente PT e PSDB. Esse quadro é que abriu o flanco para o desastre político de 2018. Essa incapacidade da oposição democrática, uma vez no poder, conseguir se articular e cooperar em nome do que une uma visão de Brasil melhor - redução da desigualdade, ensino público fundamental de qualidade, políticas ambientais afinadas ao século XXI. Esse foi o pano de fundo do descontentamento que resultou na vitória de um outsider, demagogo, e completamente despreparado para o cargo. Não tem outra palavra.

Valor: Bolsonaro é o fim de um ciclo?
Giannetti: Ele é o fim desse ciclo da redemocratização. A grande questão é saber se as forças democráticas que se constituíram na origem da oposição ao regime militar, diante de uma ameaça dessa magnitude, serão capazes de se entrosar, de se compor e de cooperar ou vão seguir fragmentadas, com disputas fratricidas, permitindo a continuação desse caminho que se abriu. Se voltar a polarizar, a chance de permanência do atual governo aumenta enormemente.

Valor: Seria um grupo de centro ou o PT faria parte também dessa articulação?
Giannetti: É um grupo que tenha genuíno compromisso com algumas bandeiras fundamentais do campo democrático progressista. Um absoluto respeito pela democracia, um compromisso com a redução da desigualdade obscena que existe no Brasil e algum tipo de preocupação com esse ativo estratégico brasileiro que é o meio ambiente. E um quarto ponto, que é o compromisso com a estabilidade macroeconômica. A aventura da Dilma também é um fator que está muito por trás do que ocorreu de desastroso na política a partir do impeachment. Isso vai exigir desprendimento de líderes que tem que colocar a sua vaidade de lado. Grande parte dessa incapacidade de trabalhar junto, durante as chances repetidas que tiveram da redemocratização até a vitória de Bolsonaro em 2018, foi a vaidade. É o momento em que esses líderes das forças democráticas que se constituíram no período da ditadura considerarem a possibilidade de voltar a ter o que nós tivemos na época da ditadura - uma frente democrática coesa, como foi naquela época. Eu incluo o PMDB, o PSDB, o PT, as forças que constituíram em nome da democracia em oposição ao regime militar e que foram testadas sequencialmente nas eleições.

Valor: O sr. acha que isso é provável ou o Brasil vai repetir em 2022 o que ocorreu em 2018?
Giannetti: Eu adoraria ver Fernando Henrique Cardoso, Lula, Ciro Gomes e Marina sentarem e, em nome de uma ameaça grave na área política, na área social e na área ambiental, juntarem as forças para constituir um polo democrático progressista. Mas eu estou sonhando acordado.

Valor: Há uma expectativa de alguns grupos de que Luciano Huck possa romper a polarização. Como o sr. vê essa possibilidade?
Giannetti: Acho muito cedo ainda. Huck não se constituiu propriamente como liderança política ate agora. É uma promessa. Vejo que tem procurado pessoas qualificadas, reconheço que tem trabalhado nessa direção, mas não é parte daquele movimento que procurei retratar. Os que são parte desse movimento são os quatro que eu nomeei, e acho que são eles que têm que liderar uma articulação do campo democrático progressista.

Valor: E o candidato para 2022, pode ser alguém da velha política?
Giannetti: Preferencialmente não. O eleitorado está cansado da velha política, e algumas dessas figuras, e eu vou dizer isso sem juízo de valor, são altamente divisivas na sociedade brasileira. É o caso do Lula. Independentemente do que cada um possa sentir ou não, a figura dele hoje divide o Brasil. Eu vejo com clareza que o campo democrático progressista que se constituiu em oposição ao regime militar tem que se unir, para que não prevaleça outra vez o que ocorreu em 2018. Se nós caminharmos de novo para a polarização raivosa, a probabilidade de continuar essa situação em que nós entramos é enorme. Tudo o que eles querem é a polarização raivosa. Aliás, eles trabalham para isso. Para o governo Bolsonaro, é o cenário ideal: ou somos nós ou voltam Lula e o PT.

Valor: O sr. passou grande parte do ano em Tiradentes, escrevendo um livo. Do que ele trata?
Giannetti: Eu penso nesse livro há mais de 30 anos. É um livro sobre ética, que muito provavelmente vai se chamar “O Anel de Giges”. De onde sai essa figura? Na “República” de Platão, Glauco, o irmão de Platão, conta uma fábula, sobre um pastor humilde, chamado Giges, no reino da Lídia. Um dia, há um terremoto, abre-se uma fenda na terra, e o pastor encontra um cavalo imenso de bronze, dentro do qual tem um cadáver com um anel no dedo. Ele entra no buraco, retira esse anel e volta para a superfície. Aí ele vai a uma assembleia de pastores e começa a brincar com o anel no dedo. Quando gira o engaste para dentro, os outros pastores começam a falar dele como se ele não estivesse lá. Ele percebe que adquiriu o poder da invisibilidade. Giges se faz eleger representante na assembleia dos pastores para ir à capital. Usando o poder do anel ele seduz a rainha e, com a cumplicidade dela, assassina o rei e se torna o novo rei da Lídia. Glauco então coloca isso como um desafio a Sócrates. Se eu sou inimputável e nenhuma lei me alcança, nenhuma condenação moral me atinge, porque eu não sou visível, por que eu vou ter algum tipo de compromisso com o que é certo, com o que é direito, com o que é justo? Sócrates passa o resto da “República” tentando oferecer uma resposta de que a melhor vida que um ser humano pode ter é a vida ética, independentemente de qualquer vantagem ou qualquer reputação.

Valor: E qual é a sua abordagem do tema?
Giannetti: Eu descobri que eu posso contar a história da ética com o experimento mental que é o anel de Giges. Como é que um kantiano usa o anel de Giges, como é que um cristão usa o anel de Giges. E tudo isso caminha para duas coisas que me interessam no final fazer - colocar o anel no dedo do leitor e no meu dedo.

Valor: O que o levou a escrever o livro agora?
Giannetti: Toda a revelação que apareceu da vida pública brasileira a partir das investigações da Lava-Jato me levou a pensar mais intensamente nessa questão da impunidade, de quem cada um é no fundo. Nós ainda estamos meio no Antigo Regime. A elite aristocrática do Antigo Regime tem uma sensação de impunidade. A lei é para os outros. O anel de Giges permite explorar essa situação de um modo que leva as pessoas a se perguntar - quem eu seria com o anel de Giges? E ai de quem me disser que não muda um milímetro o seu comportamento.

Valor: Ao comentar a insatisfação de parcelas da população na América do Sul, o sr. disse que o fenômeno não se limita à região. A democracia representativa está em crise?
Giannetti: Eu tendo a crer que sim. Mas não há no cenário nenhuma alternativa, nenhuma proposta de aprimoramento que possa constituir uma alternativa superior. Para os países maduros, democráticos e de alta renda per capita, há outros fatores além dos que existem nos ambientes de economia emergente como a brasileira. A crise da democracia que gerou um [Donald] Trump tem fatores de muito longo prazo e muito profundos por trás disso. Acho que há quatro vetores muito fortes de mudança.

Valor: Quais são eles?
Giannetti: Entraram centenas de milhões de trabalhadores asiáticos no mercado global de trabalho. São pessoas que vêm de um nível de renda extremamente baixo e que aceitam trabalhar por muito menos do que os trabalhadores dos países de alta renda, e são muito produtivos. Isso naturalmente leva a uma perda de renda dos trabalhadores das democracias ocidentais. O segundo fator foi a crise de 2008 e 2009, que mostrou uma assimetria injustificável no tratamento conferido ao sistema financeiro. Enquanto os bancos estavam ganhando fortunas, ai de quem ousasse dizer que aquilo deveria ser socializado em alguma medida. No momento em que eles perderam, foi rapidamente socializado e a conta foi jogada para a sociedade e para as gerações futuras na forma de dívida.

Valor: Quais as outras duas?
Giannetti: A terceira fonte de medo e instabilidade é a tecnologia. Os empregos tradicionais, os setores muito estabelecidos da economia, estão todos eles contestados pela revolução digital. E o quarto fator, que para mim é o mais intrigante. Eu não acho que existiriam fenômenos políticos como Trump e Bolsonaro se não fossem as novas mídias digitais. Eu não consigo nem sequer concebê-los. A gente não entende como essas novas mídias digitais estão alterando a dinâmica do processo político, porque não dá para imaginar esse tipo de populismo de direita, nacionalista, ou demagógico, na ausência dessas tecnologias de comunicação. É um momento em que as instituição não estão acompanhando as mudanças na própria realidade. A coisa mais impactante que eu vi sobre a crise do mundo ocidental democrático saiu na “The Economist”, e não me sai da cabeça. A probabilidade de um jovem do sexo masculino de 15 anos morrer antes dos 50 anos hoje é maior nos EUA do que em Bangladesh. Os demógrafos criaram uma categoria que é a morte por desespero, causada por opioides, suicídio e doenças do fígado. Angus Deaton, vencedor do Nobel, tem feito estudos muito importantes com a mulher, Anne Case, mostrando em detalhe a evolução da taxa de mortalidade dos brancos de meia idade nos EUA. É uma coisa que não ocorreu na Europa.

Valor: E na América Latina, há um elemento comum aos protestos? É a desigualdade?
Gianetti: Acho que é também a desigualdade, mas é o ressentimento e a insatisfação com a vida tal como ela está. E é agravado por um quadro de precariedade material, de corrupção, de uma percepção de falta de horizonte, de ter aquilo em que se realizar, aquilo em que se realizar, aquilo em que encontrar alguma plenitude. E essas novas tecnologias afetam tudo isso de maneiras que a gente não sabe muito bem quais são.