segunda-feira, 30 de março de 2009

Oportunidade na crise

Juarez de Paula*
A atual crise financeira internacional pode ser caracterizada como estrutural e sistêmica. Estrutural porque atinge o modo de produção capitalista naquilo que é sua razão de ser: a reprodução ampliada do capital. Sistêmica porque afeta todos os setores da economia mundial, ainda que de forma desigual. Mais do que isso, a crise, pela sua extensão e profundidade, pode ser tomada como um sintoma inequívoco da falência do modelo civilizatório contemporâneo, caracterizado pela exclusão social das maiorias e pela completa falta de sustentabilidade ambiental. Porém, como toda crise, ela também oferece oportunidades.
A primeira das oportunidades resultantes da crise é a possibilidade de rediscutir o conceito de desenvolvimento. É preciso superar, definitivamente, a visão que confunde desenvolvimento com crescimento econômico, com progresso material supostamente ilimitado. O desenvolvimento precisa ser pensado como um fenômeno resultante de escolhas conscientes, na perspectiva da conquista da qualidade de vida para todos, no presente e no futuro.
Assim, o desenvolvimento precisa ser humano (melhorar a qualidade de vida das pessoas), social (não apenas de algumas pessoas, mas de todas as pessoas) e sustentável (das pessoas que estão vivas hoje, sem afetar as possibilidades daquelas que viverão no futuro). Além disso, o desenvolvimento precisa também ser local e solidário. Local, no sentido de que o melhor lugar do mundo tem que ser aqui e agora. Não faz sentido projetarmos nossos desejos para um tempo e um espaço futuros, que jamais são alcançados. Isso é uma forma de autoengano. Solidário, porque já é tempo de aprendermos que não é a competição, mas ao contrário, é a cooperação que produz efetivo desenvolvimento individual e coletivo.
A segunda oportunidade resultante da crise é a possibilidade de rediscutir o conceito de democracia. A questão posta pela crise é a seguinte: quem tem representatividade, legitimidade e autoridade política para tomar decisões econômicas que afetam a vida de todos? Onde estão os mecanismos de controle para evitar que uma minoria se beneficie impunemente à custa da maioria?
A crise atual certamente liquidou com quase três décadas de discurso neoliberal. Todavia, não podemos sair do absolutismo do mercado para cair na tentação do estatismo. É preciso afirmar a necessidade do controle social sobre o mercado e o Estado.
É necessário radicalizar o conceito de democracia. Precisamos ir além da ideia de representação, de alternância de poder, de eleições periódicas, de liberdade de expressão. É preciso que a democracia penetre nas instituições sociais e nos meios de comunicação. É preciso que a democracia não seja apenas um fenômeno político, mas também econômico. A tarefa democrática é descentralizar, desconcentrar e distribuir, tanto o conhecimento, quanto a riqueza e o poder. Precisamos superar, definitivamente, o padrão de organização vertical, substituindo-o pelos modelos de organização em redes distribuídas e densamente conectadas.
A terceira grande oportunidade resultante da crise é a possibilidade de rediscutir as políticas públicas. Trata-se de enfrentar a seguinte questão: que Estado, para que tipo de desenvolvimento, em benefício de quem? Por que é possível utilizar recursos públicos para salvar empresas privadas e não é possível garantir uma renda de cidadania para todos os excluídos do mercado?
Por que não é possível estabelecer condições e exigir contrapartidas sociais das empresas socorridas? Por que não reduzir a jornada de trabalho para ampliar as oportunidades de emprego? Por que não canalizar os investimentos públicos destinados à geração de ocupação e renda para atividades que resultem em benefícios coletivos, a exemplo de obras de saneamento, construção de moradias populares, recuperação de escolas e hospitais públicos, urbanização de favelas, entre outras? Por que não investir fortemente na substituição dos combustíveis fósseis por fontes de energia limpa? Por que não induzir um novo padrão de produção e consumo?
Investir em tecnologias sociais, que são soluções sustentáveis, de baixo custo, de fácil reaplicação, desenvolvidas em interação com as comunidades locais e geradoras de inclusão social, pode ser um excelente caminho para começar a sair da crise. Brasília dará uma importante contribuição nesse debate ao sediar, de 15 a 17 de abril próximo, a Conferência Internacional de Tecnologia Social, que poderá apontar alternativas inovadoras para o Brasil enfrentar a crise.
*Juarez de Paula - Sociólogo, gerente da Unidade de Desenvolvimento Territorial do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae)
http://www.correiobraziliense.com.br/impresso/ 30/03/2009

domingo, 29 de março de 2009

"Seja utópico: exiga o que é realista".

Robert Pollin*


O capitalismo neoliberal – cujas características definidoras foram a ganância de Wall Street e a dominação dos grandes negócios sobre as políticas dos governos – está morto. Mas o que vem a seguir?

Solidariedade, igualdade e liberdade têm sido sempre princípios fundamentais que animam a esquerda. É desde esses princípios que a esquerda construiu suas diversas perspectivas de uma verdadeira, democrática, igualitária ordem social – i.e., o único tipo de sociedade que merece ser chamada de “socialista”. Dado o colapso do neoliberalismo, a esquerda não deveria agora avançar em vista de um socialismo com carga total?

Apesar de o socialismo ser desejável como uma visão de longo prazo de uma sociedade justa, é irrealista na minha opinião que ele venha a tomar forma hoje. O problema é que, neste estágio da história, nós não sabemos com o quê uma economia socialista pareceria, nem sabemos como nos mover da atual desintegração do neoliberalismo para algo aproximadamente socialista. O socialismo deveria ser visto como uma série de desafios e questões, à medida que pressionamos por uma agenda social para além da crise dos dias que correm. Esse tipo de coisa não deveria ser visto como um pacote óbvio de respostas prontas.

Isso se torna claro ao considerarmos o colapso do sistema financeiro. No curto prazo não há mais alternativas viáveis para que o governo assuma o controle dos bancos em falência. Mas a nacionalização dos bancos, por si só, nem é uma panacéia nem um avanço em direção ao socialismo. O fato de que o ex-presidente do Federal Reserve, Alan Greenspan agora apóia a nacionalização deveria ao menos refrear esse tipo de entusiasmo da esquerda. No longo prazo, um sistema financeiro nacionalizado apresenta problemas desencorajadores.

Realisticamente, um sistema como esse vai inevitavelmente fracassar e escândalos ligados ao “capitalismo amigo” - acordos privilegiados com negociantes não-financeiros. Além disso, empresas financeiras individuais, assim como todas as entidades de negócios, exigem micro-gerenciamento. O governo teria de criar um sistema de incentivos para os diretores dos bancos publicamente apropriados que iriam substituir pelo muito francamente vantajoso motivo que orienta os gerentes dos bancos privados. Se os gerentes dos bancos nacionalizados não estiverem comprometidos com a maximização dos lucros como sua performance deveria ser avaliada?
Resolver uma questão como essa exigiria anos de experimentação e ajustes finos. Nesse período, os pagadores de impostos iriam arcar com falências inevitáveis. Isso, por sua vez, poderia ser precisamente a coisa – talvez a única – que mudaria o alvo do ultraje público com o colapso do sistema financeiro de Wall Street para o interior das estruturas de governo.
Nessa conjuntura histórica é portanto preferível lutar por um novo marco regulatório do regime financeiro, com os bens dos principais bancos privados tomados como meios de promoção da estabilidade financeira e da canalização do crédito para áreas prioritárias, como as da moradia de baixo custo e economia e da economia verde.
Erguer a economia verde levanta preocupações similares. Precisamos parar com o consumo de combustíveis fósseis e interromper o aquecimento global nos próximos vinte a a trinta anos. Esse é um projeto sólido, e não será realizado se contar inteiramente com o setor público ou com o setor de organizações não-lucrativas da comunidade, ainda que valha a pena fazer assim. Antes, suas forças propulsoras principais serão os grandes incentivos governamentais aos negócios privados para lucrarem com investimentos em energia limpa, e para os mesmos interesses privados enfrentarem custos significativos ao produzir e vender combustíveis fósseis. O programa de estímulos de Obama é um grande passo inicial na direção correta, ao misturar investimentos públicos de larga escala – na casa dos 80 bilhões de dólares ao longo de dois anos – com incentivos ainda maiores a empresas privadas.
Um dos slogans mais estimulantes que emergiram do levante de 1968 na França foi “Seja Realista, Exija o Impossível”. Eu estou mais inclinado a adotar essa imagem no espelho como um guia para se movimentar em direção ao presente. Quer dizer, “Seja Utópico, Exija o que é Realista”.
*Robert Pollin, professor de Política Econômica na Universidade de Massachussetts-Amrest, publicado na revista The Nation e traduzida pela Carta Maior, 28-03-2009.

Pensamento domingueiro

“Escrevo, sem pensar,
tudo o que meu inconsciente grita.
Penso depois: não só para corrigir,
mas para justificar
o que escrevi.”
Mário de Andrade, escritor

sábado, 28 de março de 2009

Laicidade não é laicismo

Dom Eugenio Sales*

No aeroporto de Roma, a 28 de novembro de 2006, por ocasião de sua viagem à Turquia, falando aos jornalistas, o papa Bento XVI assim se expressou sobre o tema laicismo e laicidade: "O laicismo, ou seja, uma ideia que separa totalmente a vida pública de qualquer valor das tradições, é um caminho cego, sem saída. Devemos voltar a definir o sentido de uma laicidade que realça e preserva a verdadeira diferença e autonomia entre as esferas, mas, também, a sua coexistência, a responsabilidade comum".

Recordo que, no discurso ao corpo diplomático acreditado junto à Santa Sé, o papa João Paulo II, a 12 de janeiro de 2004, afirmou: "Evoca-se com frequência o princípio da laicidade, em si mesma legítima, quando é compreendida como distinção entre a comunidade política e as religiões (cf. Gaudium et spes, 76). Todavia, distinção não quer dizer ignorância! Laicidade não é laicismo! Ela não é senão o respeito por todos os credos por parte do Estado, que assegura o livre exercício das atividades espirituais, culturais e caritativas das comunidades dos crentes (...). Um diálogo sadio entre o Estado e as Igrejas que não são concorrentes, mas parceiros, pode, sem dúvida, favorecer o desenvolvimento integral da pessoa humana e a harmonia da sociedade".

Já em 11 de fevereiro de 2005, o santo padre João Paulo II escrevendo ao presidente da Conferência Episcopal Francesa teve as seguintes palavras: "O princípio do laicismo, ao qual o vosso país está muito ligado, se for bem entendido, faz também parte da doutrina social da Igreja. Ele recorda a necessidade de uma justa separação dos poderes (cf. Compêndio da doutrina social da Igreja, nº 571-572), que faz eco ao convite feito por Cristo aos discípulos: ‘Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus’ (Lc 20, 25). Por seu lado, a não-confessionalidade do Estado, que é uma não-ingerência do poder civil na vida da Igreja e das diferentes religiões, assim como na esfera do espiritual, permite que todos os componentes da sociedade trabalhem juntos ao serviço de todos e da comunidade nacional. De igual modo, como recorda o Concílio Vaticano II, a Igreja não tem por vocação a gestão do que é temporal, pois, ‘em razão da sua missão e competência, não pode confundir-se de modo algum com a comunidade política nem está ligada a nenhum sistema político’ (Constituição Gaudium et spes nº 76; cf. nº 42). Mas, ao mesmo tempo, é fundamental que todos trabalhem pelo interesse geral e pelo bem comum. É neste sentido que o Concílio diz: ‘No terreno que lhe é próprio, a comunidade política e a Igreja são independentes e autônomas. Mas ambas, embora a títulos diferentes, estão ao serviço da vocação pessoal e social dos mesmos homens. Exercerão tanto mais eficazmente este serviço para o bem de todos quanto mais cultivarem entre si uma sã cooperação’".
O cardeal Tarcísio Bertone, atual secretário de Estado da Santa Sé, recentemente pronunciou uma conferência na sede da Conferência Episcopal Espanhola, por ocasião do 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Eis alguns tópicos: a liberdade religiosa, afirmou, "é o sustento das demais liberdades, sua razão de ser, pois transpassa o horizonte que tenta limitá-la a uma parcela íntima, a uma mera liberdade de culto ou a uma educação inspirada em valores cristãos, para solicitar ao âmbito civil e social liberdade para que as confissões religiosas possam exercer sua missão. O Estado democrático não é neutro com respeito à própria liberdade religiosa, mas que, como respeita as demais liberdades públicas, há de reconhecê-la e criar as condições para seu efetivo e pleno exercício por parte de todos os cidadãos".
Citando Bento XVI, o cardeal Bertone acrescentou que "não é expressão de laicidade, mas sua degeneração em laicismo, a hostilidade contra qualquer forma de relevância política e cultural da religião; em particular, contra a presença de todo símbolo religioso nas instituições públicas. (...) Tampouco é sinal de sã laicidade negar à comunidade cristã, e a quem a representa legitimamente, o direito de pronunciar-se sobre os problemas morais que hoje interpelam a consciência de todos os seres humanos, em particular dos legisladores e juristas", acrescentou.
Declarou, ainda, que quando a Igreja se pronuncia sobre um tema, "não se trata de ingerência indevida", mas "da afirmação e defesa dos grandes valores que dão sentido à vida da pessoa e salvaguardam sua dignidade. (...) Em resumo, trata-se de mostrar que, sem Deus, o homem está perdido, que excluir a religião da vida social, em particular a marginalização do cristianismo, afeta as próprias bases da convivência humana, pois antes de ser de ordem social e política, estas bases são de ordem moral", advertiu. O cardeal Bertone alertou que a Igreja "não reivindica o posto do Estado", mas respeita "a justa autonomia das realidades temporais", e "pede a mesma atitude com respeito a sua missão no mundo".
O cardeal Marc Ouellet, arcebispo de Québec, também tratou do assunto. Esta crise, segundo o purpurado, também está "mantida por uma retórica anticatólica cheia de clichês, que infelizmente se encontra com muita frequência nos meios de comunicação. Isso favorece uma verdadeira cultura do desprezo e da vergonha para com nossa herança religiosa e destrói a alma de Québec". Para o cardeal Ouellet, "chegou a hora de frear o fundamentalismo laicista imposto com fundos públicos".
A proibição dos sinais religiosos nos espaços públicos, segundo o cardeal, "equivale a promover a ausência de credo como o único valor que tem direito de afirmação", e isso se faz "para satisfazer a uma minoria laicista radical que é a única que se lamenta".
"Os crentes e os não-crentes levam consigo seu credo a todos os espaços que frequentam. Estão chamados a viverem juntos, a aceitar-se e a respeitar-se mutuamente". Devemos apoiar a legítima laicidade e não o laicismo.
*Arcebispo emérito do RJ
Jornal do Brasil - Sábado, 28 de Março de 2009 - 00:00
http://jbonline.terra.com.br/leiajb/noticias/2009/03/28/sociedadeaberta/laicidade_nao_e_laicismo.asp

Europa quer atrair estudantes brasileiros


O programa "Study in Europe", mantido pela Comissão Européia, focará este ano o Brasil. Ele será destaque na 10º edição da Expobelta, feira de educação internacional, que acontece em São Paulo entre os dias 27 e 29 de março, e no dia 31, em Belo Horizonte. O evento reunirá representantes de instituições de ensino de 30 países.

Criado em 2007, o programa tem o objetivo de incentivar estudantes estrangeiros a realizarem cursos em universidades do "velho continente". O consultor sênior do programa, Mark Rogerson, estará no país esta semana para participar da Expobelta. Antes da viagem, concedeu entrevista ao Valor, de Londres. A seguir leia trechos dela:

Valor: Como funciona o programa "Study in Europe"?
Mark Rogerson: Trata-se de um projeto da Comissão Européia para tornar mais viável o acesso de estudantes estrangeiros ao ensino europeu. O coração do programa é o nosso website (www.study-in-europe.org). É onde os interessados podem começar sua busca. Ele reúne informações sobre 32 países, quais as bolsas de estudo e empréstimos disponíveis e dá orientações de como obter o visto em cada lugar. É uma forma que encontramos para dar visibilidade ao que existe na região.

Valor: Po que o Brasil foi escolhido como alvo da divulgação do programa este ano?
Rogerson: Escolhemos o Brasil porque ele é um dos BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China). É um país que se tornou muito importante economicamente nos últimos anos. No ano passado, nosso foco de divulgação foi a Rússia.

Valor: A crise econômica não está afugentando os estudantes estrangeiros da Europa?
Rogerson: Se a crise econômica fará o estudante repensar se deve estudar fora do seu país, eu não sei. Acredito que o ensino superior é um compromisso de três, quatro anos, minha intuição diz que os alunos vão pensar além da crise. Eles vão ponderar que precisarão estar qualificados para quando as coisas começarem a melhorar.

Valor: O custo para os brasileiros estudar fora subiu por conta da mudança na taxa de câmbio. Este não seria um empecilho imediato?
Rogerson: Eu acredito que existem mais coisas para se pensar sobre o custo de se estudar na Europa. Existem muitos países onde o custo de vida é mais baixo. A Europa oferece qualidade e diversidade. Muitas instituições de ensino têm um preço mais acessível do que as escolas americanas, por exemplo. Para se ter uma ideia aproximada, um curso de especialização sai entre ? 2 mil e ? 6 mil por semestre. Mas existem inúmeras opções, cujo preço varia conforme o país, a escola.

Valor: Que tipo de estudante vocês estão buscando?
Rogerson: Principalmente, os que procuram cursos técnicos e universitários. Não procuramos interessados em cursos de MBA, porque eles acontecem nas escolas de negócios.

Valor: O objetivo de sua visita é também divulgar o programa Erasmus Mundus. Como ele funciona?
Rogerson: O Erasmus Mundus é um programa de bolsas que divulgamos. Ele cria mobilidade e cooperação na área de educação superior, que permite ao aluno estudar em diversos países, seguindo o mesmo currículo. A Comissão Européia tem investimentos previstos de aproximadamente ? 950 milhões até 2013 neste programa.

Valor: Quantos brasileiros estudam na Europa e quais são os destinos preferidos?
Rogerson: No ano passado, tivemos 12 mil brasileiros estudando na Europa, basicamente no Reino Unido, França, Alemanha, Espanha e Portugal. Eu acho que os estudantes devem escolher o país que lhes agrada. Nossa missão é mostrar todas as possibilidades existentes, outros países e culturas. Se você quer fazer um curso acadêmico pode realizá-lo em mais de um país. Esta proximidade entre culturas diversas é um dos pontos fortes de se estudar na Europa.

LIVRO - A Arte da Vida

Zygmunt Bauman


"Quando você pergunta a si mesmo se é feliz, você deixa de sê-lo... Os antigos provavelmente suspeitavam disso, razão pela qual sugeriam que, sem trabalho duro, a vida não ofereceria nada que a tornasse valiosa. Dois milênios depois, a sugestão não parece ter perdido a atualidade." Essas são as frases finais do livro do escritor e professor polonês Zygmunt Bauman que faz importantes provocações sobre temas como projeto de vida, felicidade, amor, alegria, sofrimento, ambiguidades, dilemas, etc.

Autor prolífico na linha do questionamento do que tem chamado de "mal-estar da pós-modernidade", ganha ainda mais importância diante da atual crise mundial que se alastra nos seus efeitos sobre todas as áreas e segmentos da sociedade globalizada.

Para ele - e o livro foi escrito em 2008 -, a estratégia de tornar as pessoas mais felizes, aumentando sua renda, aparentemente não funciona. Além do crescimento da violência, da criminalidade, da corrupção, do tráfico de drogas, "cresce também uma incômoda e desconfortável sensação de incerteza difícil de suportar, e com a qual é ainda mais difícil conviver de forma permanente. Uma incerteza difusa e 'ambiente', ubíqua, mas aparentemente desarraigada, indefinida e, por isso mesmo ainda mais perturbadora e exasperante".

Bauman faz uma análise das formas como a busca da felicidade têm sido substituídas, ou desviadas, ao longo do tempo. E numa das primeiras abordagens formula uma severa análise do comportamento consumista que foi criado, e estimulado, na sociedade moderna.

Segundo ele, o sonho da felicidade - representado pela visão de uma vida plena e satisfatória - foi desviado no mundo atual para o atendimento, permanente, das necessidades de consumo - ou seja, o de possuir - e transfere a insatisfação para que ela seja infinita e sempre possa ser atendida, apenas, pelo mercado e seus agentes.

"Um dos efeitos mais seminais de se igualar a felicidade à compra de mercadorias, que se espera que gerem felicidade, é afastar a probabilidade de a busca da felicidade algum dia chegar ao fim. Essa busca nunca vai terminar - seu desfecho equivaleria ao fim da felicidade como tal", conclui.
Mas, afinal o que é essa tal de felicidade? A pesquisa do autor passa por vários pensadores, filósofos, sociólogos. E ensina que, quando se trata de felicidade, não se pode ao mesmo tempo ser definitivo e consistente. Quanto mais se é definitivo, menor a chance de permanecer consistente, segundo Bauman.

O autor incita o leitor a resgatar o "faça você mesmo". Não apenas como uma forma de hobby. Mas no sentido de viver as emoções de elaborar uma gostosa refeição em vez de ir a um restaurante sofisticado, por exemplo, de cultivar amores, amizades, a introspecção, as reflexões, etc.

Referindo-se de forma constante sobre a vida como uma obra de arte, o autor reforça a necessidade de o ser humano apropriar-se do seu projeto de vida. "Vontade e escolha deixam suas marcas na forma da vida, a despeito de toda e qualquer tentativa de negar sua presença, e/ou de ocultar seu poder, atribuindo o papel causal à pressão esmagadora das forças externas que impõem um 'eu devo' onde deveria estar um 'eu quero', e assim reduzem a escala das escolhas plausíveis", escreve.

Bauman foge do estilo típico do gênero auto-ajuda e não penetra em uma seara nova, mas a leitura de sua obra é para fazer pensar e agir. Não fornece soluções. Apenas provoca. O que a torna indispensável.
" A Arte da Vida" - Zygmunt Bauman - Trad.: Carlos Alberto Medeiros. Zahar, 184 págs.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Nos EUA, o avanço das favelas

Jesse McKinley *
Como gerente operacional de um centro para a população desabrigada, Paul Stack manteve contato com pessoas em dificuldades. O que nunca tinha visto antes eram pessoas vivendo em barracas, num terreno perto da rodovia que leva ao centro.
"Eles apareceram por aqui há uns 18 meses", disse Stack. "Um dia tudo estava vazio. No dia seguinte, as pessoas estavam vivendo ali".
Como uma dezena de outras cidades pelo país, Fresno, na Califórnia, está às voltas com um funesto"déjà vu": a chegada das Hooverville modernas, os acampamentos ilegais formados por pessoas sem ter onde morar, uma reminiscência, em escala menor, das favelas que proliferaram na época da Depressão.
Durante coletiva de imprensa na terça-feira, o presidente Barack Obama foi questionado diretamente sobre essas cidades-acampamento, e respondeu dizendo que não "se pode aceitar que crianças e famílias vivam sem um teto num país tão rico como o nosso".
Embora os acampamentos e pessoas que vivem na rua já façam parte da paisagem de grandes cidades como Los Angeles e Nova York, essas novas áreas que abrigam sem-teto estão crescendo, deixando de ser pequenos enclaves, à medida que mais pessoas perdem seus empregos e a sua casa - em locais tão diversos como Nashville, no Tennessee, Olympia, em Washington, ou St.Petersburg, na Flórida.
Os sem-teto de Seattle, infelizes com seu acampamento de 100 pessoas, o apelidaram de Nickelville, numa referencia ao prefeito Greg Nickels.
Uma outra área de barracos em Sacramento, Califórnia, levou o governador Arnold Schwarzenegger a anunciar um plano para transferir os sem-teto para uma área vizinha destinada a um parque de diversão. Isso depois que uma visita ao local do programa de televisão "The Oprah Winfrey Show" provocou uma explosão de notícias na mídia, a ponto de algumas pessoas se queixarem de que estavam muito expostas e pedir para ser deixadas em paz.
O problema em Fresno é diferente, já que é crônico e totalmente distante dos refletores no plano nacional. A indigência nessa região há muito tempo é alimentada pelos altos e baixos da mão de obra de subsistência e sazonal no setor agrícola. Mas a recessão produziu agora centenas de novos sem-teto - desde aqueles que pegam carona até motoristas de caminhão e eletricistas.
"São pessoas que trabalhavam recebendo um salário mínimo ou mais, que conseguiam ter uma habitação de acordo com sua renda", disse Michael Stoops, diretor executivo da Coalizão Nacional para os sem-teto, com sede em Washington.
Mas o grande aumento dos sem-teto em Fresno, cidade de 500 mil habitantes, foi uma surpresa. Funcionários da prefeitura dizem que há três grandes acampamentos perto do centro da cidade e assentamentos menores ao longo de duas rodovias. São cerca de 2 mil pessoas vivendo ali, de acordo com Gregory Barfield, encarregado da política e prevenção da cidade, que diz que o uso de drogas, a prostituição e a violência são muito comuns nessas áreas.
"Tudo isso faz parte dessa economia clandestina", disse ele. "É o que ocorre quando uma pessoa está tentando sobreviver", concluiu.
Segundo Barfield, a cidade pretende fazer uma "triagem" nos acampamentos nas próximas semanas, para determinar quantas pessoas precisam de serviços e uma habitação permanente. "Estamos tratando esses locais como área de desastre."
Barfield assumiu o cargo em janeiro, depois que o condado e a cidade aprovaram um plano de dez anos para solucionar o problema dos sem-teto.
Uma ação coletiva aberta em nome dos desabrigados contra a cidade e o Departamento de Transportes da Califórnia foi concluída com um acordo de US$ 2,35 milhões, em 2008, o que rendeu algum dinheiro para 350 moradores que tiveram seus pertences jogados no lixo pela prefeitura.
Os crescentes acampamento levaram a cidade a colocar banheiros públicos e guardas de segurança próximos de uma área conhecida como New Jack City, nome de um filme "noir" de 1991, sobre drogas. Mas o nome só atraiu mais sem-teto. "Foi um convite para eles chegarem", disse Paul Stack.
Numa noite destas, ninguém parecia entusiasmado por viver em New Jack City, uma área imunda com suas barracas assoladas pelo vento e chuva, num terreno onde o lixo é despejado. Diversos moradores, cautelosos, sentavam-se em sofás estragados, enquanto dois pit bulls, acorrentados a uma cerca, rosnavam.
Ao norte de New Jack City está um acampamento menos lúgubre. Às vezes é chamado Taco Flats ou Little Tijuana, por causa do grande número de moradores latinos, já que muitos deles chegaram a Fresno atraídos pelas promessas de emprego na agricultura, o que já não existe mais com a economia em crise e três anos de seca.
Guillermo Flores, 32 anos, disse que procurou trabalho no campo e em restaurantes de fast-food, mas nada conseguiu. Nos últimos oito meses, coletou latas na rua para reciclagem, conseguindo ganhar de cinco a dez dólares por dia, e vive num barraco de três cômodos, que ele construiu e do qual se orgulha, com porta, lençóis limpos na cama e uma vasilha repleta de maçãs frescas na sua cozinha. "Construí este barraco porque precisava", diz ele, enquanto cozinha. "O único problema aqui são as aranhas."

*Jesse McKinley é jornalista e chefe da sucursal do ?The New York Times? em San Francisco, Califórnia
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20090327/not_imp345593,0.php
The New York Times, tradução do Estadão, 27 de março de 2009.

Anfiguri

Vinicius de Moraes

Aquilo que eu ouso
Não é o que quero
Eu quero o repouso
Do que não espero.


Não quero o que tenho
Pelo que custou
Não sei de onde venho
Sei para onde vou.


Homem, sou a fera
Poeta, sou um louco
Amante, sou pai.


Vida, quem me dera…
Amor, dura pouco…
Poesia, ai!…

A Fonte: Livro de sonetos, Vinicius de Moraes, Companhia das Letras, 2009.
http://www.correiobraziliense.com.br/impresso/ 27/03/2009

quinta-feira, 26 de março de 2009

A crença é necessária

Jordan Grafman
Novos estudos mostram
que o cérebro é
“programado” para acreditar em Deus
– e que isso nos
ajuda
a viver
mais e melhor

Jordan Grafman - “A crença é necessária”
O neurocientista diz que o pensamento religioso nasceu junto com o cérebro humano

ÉPOCA – O senhor diria que a religião é um produto acidental de nosso processo evolutivo? Jordan Grafman – Eu não diria acidental. Existe uma tendência para nós pensarmos de certa maneira, e essa maneira, de alguma forma, envolve a necessidade de ter um sistema de crenças. E esse sistema guia nosso comportamento social. Acredito que estamos constantemente criando novos tipos de sistema de crença e é muito provável que os primeiros tenham sido baseados em autoridades religiosas.

ÉPOCA – Somos biologicamente predispostos à religião?
Grafman – Eu diria que somos predispostos biologicamente a ter crenças, e a religiosa é uma delas, mas não a única. Classificaria a religião como uma forma primitiva de crença porque se baseia muito no que é desconhecido. Algumas das regras éticas vieram por meio da religião, mas só se estabeleceram porque ajudaram a ordenar a sociedade. Então, muitas regras tiveram sentido. A religião nasceu claramente de nossa necessidade de entender o que estávamos vendo.
A crença religiosa surgiu no cérebro antes de outras crenças, segundo pesquisas

ÉPOCA – Seu estudo comparou as áreas do cérebro envolvidas nas crenças religiosas e nas crenças políticas. Do ponto de vista neurológico, quais as diferenças entre o pensamento religioso e o político?
Grafman – Ainda não temos uma resposta definitiva a essa pergunta, mas há fortes indicações de que as crenças políticas estão sempre ligadas ao “aqui e agora”, a nossa vida, enquanto as crenças religiosas não necessariamente. Há diferenças em comportamento e também nas áreas do cérebro ativadas. No caso das crenças políticas, usamos as estruturas do cérebro que surgiram por último na evolução humana, enquanto no caso das crenças religiosas usamos áreas anteriores no desenvolvimento da espécie. Nossa hipótese é que a crença religiosa seja a primeira forma de sistema de crenças, que surgiu antes das outras. Nossos estudos mostram que as duas usam partes parecidas do cérebro, mas também que a religião veio antes da política.
Reportagem de Leticia Sorg na revista ÉPOCA, março/2009

quarta-feira, 25 de março de 2009

Cara de um, focinho de outro

Por Deonísio da Silva


A revista Superinteressante (edição 263, março/2009) deu capa aos cachorros, assunto que está ladeado de outros igualmente importantes: "A era dos cornos", em que chama a atenção para novos aspectos da infidelidade, vindos da inclusão do Viagra, do MSN, do celular. E avisa: "Nunca foi tão fácil ser infiel". Logo abaixo da foto do cachorro – os cornos estão ao alto – a revista destaca ainda os seguintes temas: lavagem cerebral, as castas da Índia, se não existisse escola, como sobreviver a um ataque nuclear e todos os fins do mundo.

A matéria sobre os cachorros – muito bem redigida, aliás – é assinada por Alexandre Versignassi, Bruno Garattoni, Emiliano Urbim, Karin Hueck e Larissa Santana, com design de Adriano Sambugaro. Abre comprovando que os cachorros são tratados como filhos. Os termos são os mesmos: creche, criança, pais. A criança é o cachorro. Os pais são os seus donos. "Sim, tratamos nossos cachorros como se eles fossem nossos filhos", diz o texto, logo no primeiro parágrafo, delimitando tema e problemas do contexto. E continua, recorrendo à ciência, informando que os cachorros despertam tanto amor e carinho quanto um bebê. Mas conhecidas afinidades entre homem e cachorro estão alterando os dois.

A chave para que cachorros e crianças sejam tratados da mesma forma, segundo o texto, está num hormônio chamado ocitonina, liberado, por exemplo, nas parturientes, que desperta a sensação de apego por outras pessoas. Pesquisas feitas pelo professor japonês Takefumi Kikusui, da Universidade de Azabu, indicam que o amor que sentimos por crianças e cachorros é o mesmo. Vejam bem, não é que é semelhante, é o mesmo! E o professor não é nenhum Prêmio Ignóbil, criado para satirizar pesquisas ridículas.

Adoram que se lhes diga o que fazer

A reportagem é ilustrada com exemplos concretos. A bilionária americana Leona Helmsley deixou US$ 12 milhões para sua cadelinha Trouble. O site marryyourpet (case com seu cachorro) oferece cerimônias e certidões de casamento. Carolyn, casada há cinco anos com Oliver, nome de seu cãozinho, diz que ele é seu "salvador".

Este é um exagero, mas ilustra até onde vai a substituição de pessoas por cachorros, sobretudo em casais que demoram a ter filhos ou outros que, tendo envelhecido, ficaram sozinhos. Quando a solidão aumenta, o cachorro produz emocionalmente duas substituições: a dos filhos e a do cônjuge que partiu, por separação ou por morte.

Outras pesquisas, estas feitas nos EUA, dão conta de que 34% das mulheres e 23% dos homens americanos consideram o cachorro o par ideal, se este fosse humano.

O biólogo húngaro Ádám Miklósi, da Universidade de Eötvös, especialista em inteligência canina, afirma que, ao contrário de lobos, macacos e gatos, igualmente submetidos à experiência, os cachorros imitam naturalmente as ações humanas e podem ser treinados para milhares de tarefas diferentes com poucas instruções, pois na verdade eles adoram ter alguém que lhes diga o que fazer.

Buldogue tornou-se gordo e enrugado

Os primeiros entendimentos entre o cachorro e o homem datam da Era Glacial, há 15 mil anos, quando o homem deixou de ser nômade, fixou-se em alguns lugares, ensejando o surgimento das primeiras vilas. Os restos de comida passaram a atrair ratos, baratas e... lobos. Estes dividiram-se entre aqueles que fugiam do homem e aqueles que a ele se apegaram, vivendo perto das casas. Foi quando este tipo de lobo mudou, tornando-se cachorro!

De todo modo, o cachorro, na companhia do homem, teve que trabalhar para ganhar a vida. Passou a conduzir e a guardar rebanhos, a guardar casas, puxar trenós etc. Hoje, o cachorro, como tantos homens, está desempregado!

No final do século 19, a partir da Inglaterra, as novas funções dos cachorros mudaram, levando os homens às combinações genéticas que resultaram em dezenas e centenas de novas raças. A International Encyclopedia of Dogs, ainda sem tradução para o português, estima que as 20 raças existentes em 1800, já eram 40 em 1873 e chegaram a 70 na Primeira Guerra Mundial. Hoje, existem cerca de 400 raças.

Depois de tantas experiências e misturas, os problemas não demoraram a aparecer. O buldogue, originalmente atlético, tornou-se gordo e enrugado. Motivo? Alguém achou que ele ficaria mais bonito assim.

Etimologia dá luz adicional

De resto, influenciados pelo homem, os cachorros passaram a ser vitimados pelos males do dono. Foram morar em apartamentos, não fazem mais exercícios, comem demais, tornam-se obesos pela vida sedentária e alimentação excessiva.

Em vez de caminhar – as caminhadas foram reduzidas para uma ou duas vezes por dia – o cachorro imobilizou-se na companhia do dono. E vieram as doenças e distúrbios psicológicos causados pelo novo tipo de vida. Nos EUA, tais males vêm sendo combatidos com remédios. Há seis anos, 25% dos cachorros tomavam algum tipo de remédio. Hoje, são 77%.

No limite, o homem resolve seus problemas com o cachorro mediante soluções drásticas. Nos EUA, aplica-se anualmente a pena de morte a 1.500.000 cachorros que se atreveram a morder alguém. Mas quem o criou feroz? No caso, é executada a vítima das manipulações. Os autores continuam impunes. Também nisso o homem imita o homem, não o cão. O cachorro não maltrata a mão que o apedreja. Para ele, os versos de Augusto dos Anjos soam inverossímeis:
"O Homem, que, nesta terra miserável,/
Mora entre feras, sente inevitável/
Necessidade de também ser fera".
Ao contrário, vivendo com o Homem, o cachorro sentiu necessidade de também ser Homem...

A etimologia pode dar uma luz adicional a tão bela matéria. A palavra cachorro veio do latim cattulus, diminutivo de cattus, gato selvagem, depois também domesticado. O homem apega-se a qualquer filhote, sobretudo de mamíferos e, em português de hoje, passou a chamar de gatinho todo e qualquer filhote, fixando-se a denominação para o cão, filhote ou não.
http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=530FDS001 - 23/03/2009

Espiritualidade, empresas e pessoas

Patrícia Bispo

Quando o assunto espiritualidade surge no mundo organizacional, muitos gestores ainda acreditam que esse tema esteja relacionado diretamente a práticas religiosas e que, caso o estimulem, poderão surgir sérios conflitos no ambiente de trabalho. No entanto, a prática da espiritualidade nas empresas assume um papel diferenciado: estimular a harmonia entre as pessoas. Para falar sobre o assunto, o RH.com.br conversou com o consultor e escritor Cesar Romão, que tem se destacado por desenvolver um trabalho voltado para o desenvolvimento humano, onde defende que as empresas e as pessoas não devem ser vistas apenas como fonte de lucro. Em uma de suas obras "Sonhando e Realizando", ele apresenta uma visão futurista de conceitos empresariais. Confira!

RH - Existe um conceito para espiritualidade no ambiente de trabalho?
Cesar Romão - Espiritualidade no ambiente de trabalho consiste num processo de aprendizado constante mediante as adversidades e as diferenças entre as pessoas, assim como sempre visa o benefício de todos os envolvidos no processo organizacional. Não é a lei do ganha, é a lei do dividir para somar.

RH - A espiritualidade no trabalho está relacionada à religião?
Romão - Esta é uma confusão e tanto que se faz no mercado. Muitas empresas não executam processos de espiritualidade pelo fato de acharem que estarão cultuando uma religião na organização e isso poderá criar desavenças. Religião é nossa a escolha, é a aproximação com o Deus que escolhemos dentro de nossa formação e crença. A espiritualidade é nossa conduta no caminho do bem e da prosperidade com ética, auxiliando-se uns aos outros independente de sua crença. A causa é mais valiosa, o relacionamento harmônico é o caminho.

RH - Quem poderia ser considerada uma pessoa espiritualista?
Romão - Seria aquela pessoa que não toma decisões por impulso, mas que confia em sua equipe. Não faz julgamentos, não procura quem cometeu o erro, trata de consertar logo a situação, torce pelo sucesso das pessoas, é uma barreira dizimadora de notícias ruins, confia em seus instintos e na sua própria intuição.

RH - Que contibuições as pessoas espiritualistas trazem para o ambiente organizacional?
Romão - Elas trazem principalmente a harmonia. Hoje o ambiente organizacional é repleto de disputas, de corridas pela vaidade e pelo reconhecimento. Basta apenas se entrar num conjunto de "baias" dos executivos de uma empresa e logo se pode sentir o nervosismo do andamento de trabalho. O medo parece tomar conta das pessoas. A harmonia é o principal benefício que essas pessoas trazem, pois com harmonia consegue-se transformar esforço em resultado positivo.

RH - De que forma as empresas podem estimular a espiritualidade entre os colaboradores?Romão - Infelizmente, ainda existe uma resistência grande em relação à espiritualidade no ambiente organizacional. No entanto, quando as empresas vivenciam uma experiência como essa, não mais desistem dela. A espiritualidade torna-se parte dos planos estratégicos. Dar liberdade de expressão para idéias e pensamentos, ou mesmo ter muito respeito até pelos erros, é uma boa forma de estimular a espiritualidade. O Exército Brasileiro tem um processo muito interessante com seus oficiais. Ali não há discriminação de qualquer religião, todos estão lá em função de uma causa, nossa bandeira e nossa pátria. Assim deve ser nas organizações, a causa tem de ser maior do que as diferenças.

RH - Esses processos são difíceis de serem implantados?
Romão - A visão tem que partir do alto da pirâmide organizacional e fincar alicerces nas bases envolvidas. É uma questão da aceitação da cultura, como toda organização é movida por resultados, quando esse processo resultar em benefícios, tudo tem mais chance de obter uma boa aceitação.

RH - Qual seria o papel do profissional de RH nesse contexto?
Romão - O profissional de RH tem que estar preparado com o máximo de informações possíveis sobre espiritualidade no trabalho, assim como acreditar no projeto e não apenas implantá-lo como uma nova maneira de tentar justificar verbas de treinamento ou de oferecer lucro aos acionistas. O principal é: o RH tem de dar o exemplo. A palavra convence, mas somente o exemplo arrasta e, assim, pessoas são tocadas pelos exemplos e adquirem mais respeito por ações que são justificadas.

RH - Existe alguma relação entre espiritualidade e motivação?
Romão - A espiritualidade é um processo de transformação íntima em nossas emoções, em nossa maneira de ser, de pensar e de agir dentro da ética e do bem, pois só o bem sempre encontra um caminho. Motivação é um sentimento confiante que podemos criar nas pessoas por um determinado tempo com a finalidade de conduzi-las a realizar objetivos e metas. Ninguém consegue ficar motivado durante muito tempo, pois motivação precisa de manutenção. Porém, a espiritualidade pode ser um processo para ser aplicado na sua existência em horas boas e nas adversidades.

RH - As empresas estão sabendo valorizar a espiritualidade?
Romão - Ainda não, pois muitos paradoxos ainda precisam ser vencidos. Imagine que quando faço palestra sobre espiritualidade nas empresas, antes da palestra começar, muitas pessoas vêm ao pé do palco perguntar se sou um pastor. É importante iniciar um movimento de informação sobre o assunto, pautas de discusão, divulgação de exemplos em ação sobre o assunto. É necessário despertar a consciência das pessoas sobre a possibilidade de se vencer sem uma disputa interna, alertar que para no pódio somente existe o primeiro lugar, mas um pódio onde todos cabem no primeiro lugar. Veja, por exemplo, as empresas que valorizam o funcionario do mês. Pergunto: será que só ele foi legal no mês? E os outros? Não pode haver um funcionário do mês, tem de haver uma equipe ou um time do mês, mas um time onde todos possam jogar e ganhar.

terça-feira, 24 de março de 2009

Individualismo

Christoph Wulf – Poderíamos colocar-nos ainda outra questão. Não há também algo como uma mundialização do individualismo? Não estamos assistindo – em vários países, mas sobretudo na Europa - a uma tendência de crescimento do individualismo? Não estamos descobrindo o limite desse desenvolvimento? Gostaria de explicar isso com relação ao nosso contexto: todos estamos obrigados a desenvolver nossa própria biografia. Somos obrigados a escolher, a decidir sobre a maneira segundo a qual desejamos conduzir nossa vida: com que companheiros, em que contexto. E resulta, de fato, que as tradições têm peso menor – que os indivíduos têm peso menor – que os indivíduos tem a liberdade de conduzir sua vida, de fazer dela uma aventura, uma experiência eventualmente – , uma espécie de dinâmica que faz, por exemplo, que as doenças psíquicas aumentem. Nós temos uma ambivalência muito clara do processo de individualização. E creio que isso está correlacionado ao fenômeno da mundialização. É, de certa maneira, o recuo sobre a menor unidade, que podemos interpretar como um movimento oposto. Creio também que aí há exigências exorbitantes; em razão do desenvolvimento da sociedade mundial, há riscos, situações perigosas, como você dizia há pouco. O assassinato do primeiro ministro israelense representa um risco para todos os homens que vivem em outros países ou em outras regiões, mas todos esses fenômenos estão relacionados à vida individual, e é necessário assumir posição em relação a eles. É necessário constantemente tomar decisões, fazer escolhas. É preciso afirmar-se de uma forma nova na própria vida, o que talvez em outras épocas não tenha sido tão necessário, e é aí que vejo a ambivalência das chances de sucesso ou insucesso desse processo.

Edgar Morin – Sim, parece que, efetivamente, a nossa civilização permitiu o desenvolvimento do individualismo, ou seja, a autonomia pessoal e a eventual assunção de responsabilidade, e isso é uma de suas grandes conquistas; mas há um lado crescente de sobra porque esse individualismo se desenvolveu na degradação de todas as antigas solidariedades, que eram as da grande família, e também da pequena família que é hoje tão frágil, das solidariedades de quarteirões, das solidariedades de trabalho. Existe, portanto, esse contraponto do individualismo que é a atomização. O individuo é atomizado, tem uma carência, muita solidão, e por conseguinte, muita infelicidade. Assim sendo, o verdadeiro problema é a relação entre a individualidade e a comunidade: a solidariedade. Nós não temos conseguido produzir novas solidariedades. E creio que é em todos os níveis que devemos criá-las. Nas ruas de uma grande cidade, se alguém cai, ninguém para, porque pensamos que á polícia ou o hospital que devem se encarregar disso. Muito bem. Mas retorno a esta ideia mundial: se nós nos sentimos partícipes do destino comum, nos tornaremos solidários com os outros. E não podemos estabelecer o sentimento de solidariedade por decreto, ele deve ser vivido. E nos chegamos a esta ideia: como viver este duplo imperativo, aparentemente contraditório, e contudo inseparável, de mais comunidade e de mais liberdade? Como sentir-nos responsáveis pelos outros no nosso mundo fragmentado no qual a responsabilidade se perde, já que ninguém vê o todo> Ninguém se sente responsável pelo destino comum. E é a recuperação desse destino comum que é importante para restaurar retroativamente a solidariedade e a responsabilidade. Nós reencontramos o problema da dupla face da mundialização e da retração identitária. De um lado, a perniciosa mundialização que homogeneíza tudo e o perigoso retraimento que se fecha com violência sobre a identidade tradicional...
(Do livro: Planeta - A aventura desconhecida. Edgar Morin e Christoph Wulf, Ed. Unesp, SP, pp.53/57)

UM QUE FALA E UM QUE OUVE

CLÁUDIO MORENO

Os antigos garantem que um conselho firme e sincero de um amigo, de um filósofo ou de um oráculo pode ser decisivo nos momentos mais difíceis. Alguém que nos diga a coisa certa na hora certa pode nos devolver a calma e a confiança que estamos a ponto de perder, ou evitar o pequeno deslize que nos levaria ao desastre. Uns poucos, por conta própria, conseguem fazer os dois papéis ao mesmo tempo, conselheiro e aconselhado, mas esses são muito raros e dignos de admiração.
Pois vejam Ulisses: quando ele voltou para casa, vinte anos depois de ter partido para a guerra de Troia, um perigo ainda maior o esperava dentro de seu próprio palácio: tomando-o por morto, dezenas de chefes guerreiros se apresentaram para disputar o seu lugar no trono de Ítaca e no leito de Penélope. Aqui começa a segunda parte da Odisseia: praticamente sozinho, contando apenas com a ajuda de Telêmaco, seu filho, e de mais alguns servidores leais, ele precisa travar uma batalha sangrenta para se livrar deste pequeno exército invasor. Sua única vantagem é a surpresa, e Atena, sua deusa protetora, transforma-o temporariamente num velho e alquebrado mendigo, a fim de que ele possa se aproximar do palácio sem ser reconhecido.
Ali o desmando é geral. Ignorando as sagradas leis da hospitalidade, todos maltratam o recém-chegado. Os criados tentam enxotá-lo e os pretendentes o insultam, atingindo-o com ossos e com restos de comida. Eles humilham e ameaçam Telêmaco, que tenta defendê-lo, mas o jovem os convence a deixar que o velho durma no palácio. Nunca em sua vida Ulisses lutou tanto para controlar sua ira, mas sabe que o menor gesto pode traí-lo e acarretar sua morte e a de seu filho. À noite, deitado em velhos pelegos que estenderam no vestíbulo, ouve o riso debochado das criadas de Penélope que vão dormir com os pretendentes, seus verdadeiros senhores. Por um segundo, o sangue sobe-lhe à cabeça e pensa em matar todas elas, o que poria tudo a perder. Atena não está ali para acalmá-lo, mas ele consegue dar ouvidos a sua voz interior: “Aguenta, amigo. Já passaste por coisa muito pior do que essa”. Ele se controla e aguarda o dia seguinte, quando então, no momento certo, seu plano acaba lhe trazendo a vitória.
Esta voz de si para si mesmo é a marca dos destemidos. Que o diga Turenne, o grande marechal de Luís 14: apesar de ser veterano de muitas guerras, sempre sentia medo no início de cada batalha. De longe, seus homens ouviam-no gritar, enquanto mergulhava no aceso do combate: “Tu tremes, carcaça? Pois tremerias ainda mais, se soubesses para onde estou te levando!”. Confesso que eu morro de inveja.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Aprender a olhar

Tony Saad*

Outro dia, voltando de uma viagem curta, tive como companheiros (no outro lado do corredor do ônibus) um pai e seu filho, que devia ter uns seis anos. Em dado momento, ao ver seu pai quieto, olhar fixo, absorto na paisagem, o menino perguntou: Pai, o que é que tu tá vendo lá fora?. Ao que o homem respondeu, olhar ainda fixo nas coisas: Nada, filho, só estou olhando. Olha também. Acho que testemunhei, ali, uma bela lição.
Olhar – simplesmente olhar – é, talvez, o mais frequente modo de se aprender. O olhar é a ferramenta que nos permite perceber o mundo à volta, desde um minúsculo grão de areia (você já experimentou olhar para um único grão com atenção?) até as estrelas mais distantes. Pelo olhar, um bebê consegue captar alterações de humor em seus pais, através do olhar, pautamos nosso julgamento das pessoas com quem nos relacionamos, e julgamos até aquelas com quem nunca temos contato direto. É justamente porque possuímos o poder de olhar – e ver –, que se inventou a fotografia, o cinema, o desenho, a pintura, a mímica, a moda, a escrita, a luz artificial, e até este jornal. Olhar é uma considerável parte de nosso viver, de nosso vivenciar-o-mundo. Ou seja, olhar é aprender.
Mas o olhar também pode ser um elemento de distração, um sentido que, por ser tão presente em nosso dia-a-dia, nos tira o foco de coisas que perceberíamos se não estivéssemos recebendo o massacrante input visual que o mundo nos impõe a todo momento. É fato notório que pessoas que não veem têm os outros sentidos mais apurados. Mecanismo de compensação ou não, é fato que o olhar também pode ser responsável por deixarmos de aprender.
Talvez não baste apenas olhar; talvez seja preciso aprender a olhar. Talvez precisemos resgatar o olhar daqueles que têm a maravilhosa capacidade do espanto diante do banal. Talvez, para aprender mais, para apreender mais o mundo, seja necessário fazer como aqueles que moldaram o olhar ocidental, que deram base e rumo ao pensamento de grande parte da humanidade: os gregos. O olhar, para eles, era o início de todo pensamento, a janela pela qual passava o mundo a ser olhado e pensado. Para eles, olhar era, sim, aprender.
O educador Rubem Alves é um dos poucos pensadores a dar valor ao olhar na educação. Diz ele que educar é ensinar a ver. É lastimável que, entre os milhares de livros sobre educação e formação de pessoas, não encontremos livros sobre a importância do olhar. A educação se divide em duas partes: a educação das habilidades e a educação das sensibilidades. Sem a educação das sensibilidades, todas as habilidades são tolas e sem sentido. Rubem Alves tem razão quando diz que as palavras só têm sentido se nos ajudam a ver melhor o mundo. É isso mesmo: aprendemos as palavras para melhorar os olhos. O conhecimento nos dá meios para viver; a sabedoria nos dá razões para viver. O mundo está aí – basta saber olhar.

É preciso excomungar Jesus

Frédéric Lenoir*

A Igreja católica atravessa uma crise de uma amplitude inédita em muitas décadas. Essa crise é muito mais profunda, já que sua credibilidade é colocada em questão em todos os âmbitos: por nós, católicos, pelas pessoas de cultura católica e pelos fiéis praticantes.
A Igreja não é vítima de uma agressão externa. As causas dos seus males atuais não surgiram por causa de "inimigos da fé" ou de anticlericais. Dois graves escândalos, que se referem à responsabilidade da sua hierarquia, expuseram brutalmente as suas contradições: a revogação da excomunhão de quatro bispos integralistas, dentre os quais um que fez declarações negacionistas, e a excomunhão, quase concomitante, por parte do arcebispo de Recife, de uma mãe e de uma equipe médica que praticou um aborto em uma menina de nove anos, grávida de gêmeos, vítima de estupros, cuja vida estava em perigo.
A isso, acrescentam-se as afirmações de Bento XVI no avião que o levou à África, continente atingido em grande parte pela pandemia da Aids: "Não se pode resolver o problema da Aids com a distribuição de preservativos. Pelo contrário, a sua utilização agrava o problema".
O primeiro caso escandalizou sobretudo pelas declarações negacionistas odiosas de dom Williamson e pelo tríplice erro do Vaticano, que não informou o Papa das palavras conhecidas desde novembro de 2008; que promulgou o decreto no dia 24 de janeiro, quando tais declarações estavam na primeira página de todos os jornais do mundo desde o dia 22 de janeiro; e, enfim, pela lentidão da condenação dessas palavras.
Mas essa revogação de excomunhão "sem condições", preâmbulo de um processo de reintegração na Igreja, também perturbou profundamente muitos católicos ligados ao Concílio Vaticano II (1962-1965) e aos seus valores de liberdade religiosa e de diálogo com as outras religiões, constantemente negados pelos integralistas. Na carta aos bispos publicada no dia 12 de março, o Papa reconhece os erros na gestão do caso Williamson e tenta justificar-se sobre a revogação da excomunhão utilizando o argumento da misericórdia: "Quem anuncia Deus como Amor levado 'até ao extremo' deve dar testemunho do amor: dedicar-se com amor àqueles que sofrem".
Pode-se entender que, em nome da mensagem evangélica, o Papa quer perdoar e dar uma nova chance às ovelhas perdidas que ainda dizem palavras extremistas e intolerantes há anos. Mas então por que a Igreja continua proibindo a comunhão aos divorciados que casam de novo? Por que condena com tal dureza as pessoas próximas de uma menina estuprada que salvaram sua vida fazendo-a abortar? A misericórdia deve ser aplicada só aos integralistas? E como é possível considerar o estupro de uma menina menos grave do que um aborto, que, além do mais, foi realizado em favor da vida?
O escândalo é tal que diversos bispos franceses decidiram intervir para condenar uma decisão iníqua que contradiz não apenas a moral comum, mas também a mensagem evangélica. Basta citar o episódio em que Jesus se recusa a condenar uma mulher adúltera, que, segundo a lei, deve ser apedrejada, e grita aos ultralegalistas da época: "Quem não tem pecado que atire a primeira pedra" (João 8). Ele mesmo transgrediu mais vezes a lei religiosa. Dostoievski havia imaginado que, se Jesus voltasse à Espanha de Torquemada, seria condenado ao fogo por ter pregado a liberdade de consciência. Pergunta-se se, na Igreja de Bento XVI, ele não seria excomungado por ter pregado a superação da lei com o amor.
Ninguém pede que a Igreja renuncie afirmar as próprias convicções. Mas o que não se entende é a maneira teórica e às vezes brutal utilizada pela hierarquia para reafirmar a norma, enquanto existem apenas situações concretas, singulares e complexas. Como destacada dom Yves Patenôtre, bispo da Mission de France, a decisão de excomunhão pronunciada pelo arcebispo de Recife, confirmada por Roma, "despreza a prática tradicional da Igreja católica que é a de escutar as pessoas em dificuldade, acompanhá-las e, em matéria de moral, levar em conta o 'mal menor'". Pode-se dizer a mesma coisa sobre a luta contra a Aids. O uso do preservativo não é, sem dúvida, a solução ideal, mas, de fato, é a melhor defesa contra a difusão da epidemia para todos aqueles que se cansam de viver a abstinência e a fidelidade pregadas pela Igreja. Os padres africanos sabem disso.
A história da Igreja é marcada por essa tensão permanente entre fidelidade à mensagem de compaixão com relação a toda pessoa pelo seu fundador e a atitude dos dirigentes que acabam, muitas vezes, perdendo de vista essa mensagem e privilegiando o interesse da instituição – que se tornou um fim em si mesmo – ou fechando-se em um legalismo meticuloso, absurdo e desumanizador.
O pontificado de João Paulo II foi caracterizado por uma marca de profunda ambiguidade: intransigente e tradicionalista no plano moral e doutrinal, foi também um homem de diálogo e de coração, que multiplicou os gestos fortes com relação aos humildes e às outras religiões. Bento XVI é o herdeiro do seu predecessor apenas na vertente conservadora. E na Igreja de hoje não há mais nem um Abbé Pierre [1] nem uma Soeur Emmanuelle [2], aqueles "fiéis confiáveis", capazes de lançar um grito de protesto contra as decisões dogmáticas desumanizadoras, desenvolvendo portanto um papel catártico e servindo como preciosos mediadores entre os fiéis e as instituições.
Um cisma silencioso ameaça a Igreja à esquerda, muito mais grave do que o dos tradicionalistas. Bento XVI pretendia "reevangelizar" a Europa. Conseguirá, talvez, reconquistar um punhado de integralistas, causando a perda de numerosos fiéis ligados aos valores evangélicos e de indivíduos em busca de sentido, aos quais parece que Roma não sabe oferecer outra coisa a não ser dogmas e normas.

Notas:
1. Henri Antoine Groués, mais conhecido como Abbé Pierre (1912-2007) foi um sacerdote capuchinho francês. Morreu aos 94 anos. Revoltado ao ver que num país rico como a França pessoas morriam de frio na rua, Abbé Pierre, em 1954, pediu apoio nas rádios para salvar os mais pobres de uma morte certa. O seu trabalho de assistência iniciou-se durante a Segunda Guerra Mundial. Recebeu numerosas honrarias, distinções e condecorações militares pelo combate em prol da França. Com a paz, foi eleito deputado da Assembléia Nacional Francesa, que abandonou por protesto contra uma lei eleitoral que ele julgava injusta, em 1951. A partir daí dedicou-se ao Movimento Emaús, que está hoje presente em mais de 40 países.
2. Soeur Emmanuelle (cujo nome de batismo era Madeleine Cinquin) (1908-2008) foi uma irmã belga, que dedicou a vida a ajudar os mais pobres, sobretudo no Cairo. Tendo estudado na Universidade Sorbonne de Paris, Irmã Emmanuelle foi professora de Filosofia e Letras em Istambul, Tunísia, Cairo e Alexandria. Em 1971, quando tinha 63 anos, decidiu compartilhar a sua vida com os pobres do Cairo, no Egito, motivo pelo qual era chamada de "irmãzinha dos mendigos". Em 1993, deixou o Egito, aos 85 anos, e regressou à França, estabelecendo-se na comunidade da Congregação de Nossa Senhora do Sion, para a qual havia entrado aos 20 anos, dedicando seu tempo à oração e à meditação, sem jamais deixar de ajudar os sem-teto e os imigrantes ilegais.
*Filósofo e escritor francês. O artigo é do jornal Le Monde, 19-03-2009, tradução de Moisés Sbardelotto e publicado no IHU/Unisinos em 23/03/2009.

Economia rasa e economia profunda

Leonardo Boff*

Existe uma economia profunda? Embora não dominante, penso que existe e estimo que deva existir. Nos inícios dos anos 70 do século passado o filósofo norueguês, recentemente falecido, Arne Naes introduziu uma distinção, hoje amplamente acolhida nos meios ambientalistas, entre ecologia rasa e ecologia profunda. A rasa seria aquela que separa o ser humano da natureza e o coloca fora e acima dela, pressupondo que as coisas só possuem sentido quando úteis a ele. A profunda vê o entrelaçamento homem-natureza, afirma o valor intrínseco de cada ser e se dá conta de que uma teia de relações envolve a todos, formando a comunidade de vida. Há um Todo orgânico e cheio de propósito, e o ser humano é capaz de identificar o fio condutor que liga e religa tudo e o chama de Fonte Originária de todo o ser, base de valores infinitos (veneração, amor, justiça) que enchem de sentido a vida humana. A profunda ajuda a rasa a se autolimitar e a não ser destrutiva.
Apliquemos estas reflexões ao campo da economia. A economia rasa seria aquela que se centra somente nela mesma, nos capitais, nos mercados, nos investimentos, nos lucros, numa palavra, no PIB, sem preocupação com a delapidação da natureza, com a ruptura da autorregulação da Terra e com o crescente fosso entre ricos e pobres. São externalidades, fatores que não entram no cálculo econômico.
Sua lógica é a de um sistema fechado, como se a economia fosse tudo numa sociedade. Efetivamente, como foi amplamente denunciado pela escola de Frankfurt, particularmente por Polaniy, no capitalismo avançado, a economia absorveu todas as instâncias sociais (política, ética, estética, ciência), transformando tudo em mercadoria e, por isso, em oportunidade de ganho. Estabeleceu-se como o eixo articulador do todo social. Isso teve como consequência o excesso insano da vontade de enriquecer a todo custo e nos conduziu ao caos socioeconômico atual. É a loucura da racionalidade econômica rasa.
Que seria a economia profunda? Seria a volta ao sentido originário de economia como técnica e arte de atender às necessidades da casa, hoje, da Casa Comum, a Terra viva, respeitando seus ciclos e sua capacidade suporte. Ela se inseriria no todo que constitui uma sociedade. Nesta haveria uma base que, em última instância, asseguraria a vida material: a economia. Haveria uma forma de organização, de distribuição do poder e leis que permitiram a todos viverem juntos sem demasiados conflitos. Haveria um conjunto de valores morais, éticos e ideais que dariam sentido à vida social e humanizariam as relações sempre tensas entre as diferenças. E, por fim, haveria um horizonte de sentido maior que ancoraria a história numa instância mais alta e desenharia o quadro final do universo: a espiritualidade.
Assim teríamos, idealmente, uma sociedade que poderíamos considerar verdadeiramente humana, porque teria uma visão integradora da complexidade humana.
Aqui emergeria a economia profunda, aquela que sabe seu lugar no conjunto da estruturação social e responderia à questão: como produzir o suficiente e decente conservando o capital natural e em harmonia com a comunidade de vida?
O economista profundo pensaria assim face à crise atual : como podemos resolver os problemas da humanidade, e não como salvar o sistema econômico em crise?
A mudança da pergunta envolve a mudança da resposta. E esta somente virá se houver uma quebra do paradigma antigo – a ditadura da economia – e recolocarmos a economia no seu devido lugar no conjunto da sociedade. Esse seria um novo paradigma, sustentável a longo prazo. Então, a economia seria parte da política, que seria parte da ética, que seria parte da espiritualidade. A economia rasa seria incorporada na profunda. E diferente seria o futuro.
*Teólogo e escritor

Cultura das armas contra o humanismo

Dalmo Dallari*

As tragédias decorrentes do uso de armas, ceifando vidas e enlutando famílias, continuam a ocorrer em ritmo crescente, ao mesmo tempo em que o comércio de armas é cada vez mais próspero e já foi identificado, nos Estados Unidos, como um dos grandes beneficiários da crise econômico-financeira, pois o medo do aumento da criminalidade provocou uma explosão na venda de armas. A multiplicação de tragédias armadas vem acontecendo em países ricos, e os autores das violências armadas são jovens da classe média superior, alunos ou ex-alunos de universidades e colégios de alto nível, ficando evidente que tais violências não decorrem da marginalização social, de frustrações resultantes da pobreza ou da impossibilidade de acesso à educação. Exatamente por isso é necessária uma reflexão, que sirva de alerta para que não se instalem ou não ganhem força no Brasil as mesmas causas que estão provocando aquelas violências. É preciso identificar as causas mais prováveis, o que deverá ser feito a partir dos fatos mais expressivos, como o que ocorreu na Alemanha há poucos dias.
No dia 11 de março, em Winnenden, cidade bem desenvolvida, com bons estabelecimentos de ensino e população de 25 mil habitantes, um jovem de 17 anos da idade, mascarado e com uniforme de combate, invadiu uma escola profissional, na qual se tinha diplomado em 2008. E ali, às 9h da manhã, entrou em três salas de aula portando uma pistola e atirou na cabeça de nove alunos e três professores, matando-os. Impedido de continuar atirando, fugiu do local e na saída matou mais uma pessoa, sequestrou um motorista e, perseguido por carros da polícia, foi encurralado no pátio de uma concessionária de automóveis. Saiu do carro atirando e matou mais duas pessoas, sendo ferido numa troca de tiros e, afinal, cometendo suicídio. E aqui vêm alguns pormenores expressivos. Segundo o noticiário, o assassino era filho de um empresário bem-sucedido e, embora reservado, não demonstrava pendor para a violência, sabendo-se apenas que ele tinha uma coleção de filmes de horror. Um dado de grande relevância é que seu pai é membro de um clube de tiro e tinha em casa 15 armas, uma das quais foi utilizada pelo jovem para os assassinatos. Além disso, o próprio assassino era atirador registrado e sabia atirar, o que explica a precisão dos tiros na cabeça das vítimas.
Essa tragédia provocou uma comoção nacional, e a imprensa alemã noticiou o fato falando na urgência de uma reflexão, para identificar as causas de tanta violência nas escolas e dos impulsos assassinos de jovens bem formados e de boas familias. Uma informação divulgada pelos jornais alemães é que a Alemanha está em segundo lugar no mundo, nas estatísticas de violências em escolas, perdendo apenas para os Estados Unidos. Foi lembrado que no ano de 2002, num antigo liceu da cidade de Erfurt, um jovem de 19 anos, aluno daquela escola, matou 16 pessoas antes de se suicidar. Mais recentemente, em novembro de 2008, na cidade de Emsdetten, um jovem abriu fogo contra seus colegas e feriu 37 pessoas, suicidando-se em seguida. Esses e outros fatos igualmente trágicos estão chamando a atenção para a introdução das armas no cotidiano das pessoas, o que implica a facilidade do acesso às armas e a disposição para utilizá-las. Isso é ainda agravado pelo modismo das ações violentas, com o cinema, a televisão e a comunicação eletrônica exaltando como pessoas corajosas e decididas os indivíduos que sempre têm uma arma na mão e são capazes de matar pessoas e multidões com grande entusiasmo, como se fossem atos heroicos.
*Professor e jurista
Segunda-feira, 23 de Março de 2009 - 00:00 - Jornal do Brasil online
http://jbonline.terra.com.br/leiajb/noticias/2009/03/23/sociedadeaberta/cultura_das_armas_contra_o_humanismo.asp

domingo, 22 de março de 2009

A mulher que tinha um olho verde e outro marrom...

Rubem Alves*
Gosto demais da Adélia Prado. Lendo os poemas dela fico com saudades das Minas Gerais da minha infância. Tenho dó de quem não é mineiro porque não vai entender. Para explicar o que é um queijo a quem nunca viu um queijo nem todas as palavras do mundo seriam de valia. Um queijo é inefável, está além das palavras do dicionário. Pra explicar o que é um queijo é só mostrar um queijo sem falar nada. Mas, e se os queijos deixarem de existir? Somente aqueles que haviam comido queijos enquanto existiam é que saberão. Quando o queijo não existe mais, não tem o que mostrar. Não tem jeito de explicar. Minas é um queijo que não existe mais feito as montanhas de Itabira que as mineradoras roeram. Quem viu sabe. Quem não viu não sabe. Para sempre.
A Adélia é mineira e católica de coração, beata do jeito dela. Escreve poesia pra se salvar porque Deus é poesia. Beata herética-erótica, vai teimando, sob a proteção da Virgem e dos santos, no seu “caminho apócrifo de entender a palavra pelo seu reverso.”
Já eu sou protestante apóstata e se ocasião houver tomo comunhão com ela a despeito da proibição do papa. Acho que ela não acredita no papa. Ele nunca foi a Minas Gerais e por isso não pode entender os nossos mistérios. Ela é a teóloga que mais cito, muito embora não tenha diploma de seminário. Os teólogos diplomados são os piores porque pensam que poesia é rima que se recita pra enfeitar sermão. Fazem teologia como quem faz tese de mestrado. Não sabem que a palavra “é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda, (que) foi inventada para ser calada”. Não sabem que o céu estrelado convence mais que os argumentos. Poesia é o lugar do santo dos santos.
A teologia da Adélia é pura heresia que ela disfarça muito bem de poesia e compaixão. Se o papa entendesse o que está escondido por detrás das metáforas dela há muito que a teria colocado sob a punição de um “silêncio obsequioso”, a pior coisa que se pode fazer a um poeta ou a um profeta, proibição de escrever e de falar.
Gastei boa parte do meu tempo lendo teologia e li muitos textos de eclesiologia, que é o saber que os teólogos pretendem ter sobre a igreja. Mas nunca me passou pela cabeça que se pudesse escrever sobre a igreja do jeito como ela escreveu, com chifre e os cheiros de que cachorro gosta.
“A Igreja é o melhor lugar. Lá o gado de Deus pára pra beber água, rela um no outro os chifres e espevita seus cheiros que eu reconheço e gosto a modo de um cachorro. Igreja é a casamata de nós. Tudo lá fica seguro e doce, tudo é ombro a ombro buscando a porta estreita... (74)
A Adélia gosta da igreja. Eu já gostei. Não gosto mais. Lá ninguém gosta do meu cheiro e eu não gosto do cheiro deles. E ao invés de relar seus chifres nos meus, o que o gado faz é me cutucar com a ponta dos seus chifres. Saio sempre machucado. Lá não volto mais. Lendo a Adélia fiquei com saudade porque houve um tempo em que era gostoso estar na igreja.
Durante um bom tempo da minha juventude a igreja foi minha casamata, o meu melhor lugar. Não pensava nos mistérios da Santíssima Trindade, nem nos horrores do Inferno e nem tinha medo. Eu não procurava a porta estreita. Pra dizer a verdade eu não pensava nem na estreita e nem na larga. Não pensava na salvação da minha alma. O bom mesmo era o ombro a ombro. A igreja era o lugar das amizades simples sem complicações teológicas.
Quem me levou para a igreja foi uma mulher, a dona Jenny. Ela não me falou de pecado, nem do inferno e nem da necessidade da salvação. Que eu me lembre ela nunca me falou de religião. Nunca tentou me converter para salvar a minha alma. Ela sabia que eu já estava salvo. Eu fui para a igreja porque a casa dela ficava no fundo da igreja, era a casa pastoral, o marido dela era o pastor. Estar na igreja era um jeito de estar perto da dona Jenny.
Tinha um olho marrom e outro verde. Falava manso, baixinho, olhando nos meus olhos. Foi a primeira pessoa que me levou a sério, que ficou no mesmo nível que eu. Conversava sobre as coisas da vida, inclusive da vida dela. E me escutava em silêncio, seus olhos marrom e verde nos meus. Na solidão fazia poesia. Uma vez me mostrou um poema que escrevera enquanto viajava de maria-fumaça pelas montanhas de Minas em direção a Caxambu. Era sobre um vaso de cristal. Escarafunchei via sobrinha até uma filha. A filha me mandou uma cópia. Era assim:
“Ganhei um lindo vaso de cristal
Que foi o meu tesouro de valor!
Seu brilho era perfeito, sem igual,
E à luz do sol variava a sua cor.
Ao seu redor meus sonhos multicores
Descansavam sem descanso doidamente
E eu lhe dava, sorrindo, belas flores,
E ele brilhava mais, de tão contente!
Mas um dia trincou-se o meu cristal...
Sulco escuro, em contraste com a luz;
Num canto a sós ficou, e do rosal,
Nunca mais uma flor eu nele pus!”
Confidências entre uma mulher de mais de quarenta anos e um adolescente de dezesseis: coisa estranha. Entendi o que não estava escrito. Eu sabia quem era o vaso de cristal rachado. O seu vaso de cristal, ela o amara apaixonadamente, paixão primeira, de corpo e alma, e se entregara a ele, uma entrega proibida e maldita. Um amigo é uma pessoa que adivinha e faz silêncio: aprendi isso do meu filósofo amado, Friedrich Nietzsche. Adivinhei e fiz silêncio. Imagino que ela sabia que eu sabia. Da. Jenny era um espelho bom. Olhando nos seus olhos verde e marrom eu me vi refletido: eu era um menino bonito. Eu era seu confidente. Ela me contava suas tristezas de amor.

*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
http://www.cpopular.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=1625636&area=2220&authent=150047104315621522473243376237 22/03/2009

Os bancos dos jardins e a pira de molambos

Mauro Santayana
As prefeituras de São Paulo e do Rio encontraram um meio para limpar as duas cidades dos detritos humanos que as infestam. É ainda o início do processo, que promete completar-se com outras medidas. Os bancos das praças e jardins, usados pelos miseráveis sem-teto, serão separados por placas divisórias. Dessa forma, os mendigos não poderão neles dormir. Os bancos dos jardins, disse uma autoridade carioca, se destinam às "pessoas de bem", que, deles, poderão contemplar as belezas da cidade. A premissa se impõe: quem é de "bem" no Brasil? Provavelmente essa sábia e justa autoridade considere que as pessoas de bem sejam as pessoas "de bens". Se assim for, poderíamos estabelecer uma escala, dentro de moderna definição moral. Poderiam criar um registro para que as pessoas se inscrevam, de acordo com sua riqueza e renda, devidamente atestadas pela Receita Federal. Quanto maiores os bens, maior seria sua respeitabilidade. A transubstanciação do advérbio "bem" no substantivo plural "bens" atende à nova linguagem do poder.
Trata-se da continuação de processo antigo e reanimado pelo novo liberalismo, que sofre agora seu desaire, mas não se considera vencido. O raciocínio é singelo: o mundo é lindo se for habitado por pessoas bem vestidas, sadias, belas. "Beleza é saúde", dizem os slogans de propaganda. Antes mesmo de Hitler, houve quem propusesse programas de eugenia, com a esterilização dos deformados e inúteis. Os eugenistas relacionam a estética ao comportamento, como o fez Lombroso: o feio é sempre malfeitor. O feio, o sujo, o desempregado, o demente, o descalço, o descamisado, o macróbio. Enfim, para resumir, o pobre e indefeso.
O processo de exclusão, se não for contido, evoluirá. Daqui a pouco, as posturas municipais – e, mais tarde, a legislação estadual, antes da federal – exigirão que só andem nas ruas os que estiverem bem vestidos. Postos de vigilância serão instalados nos terminais de ônibus, e detectores digitais utilizados, para mandar de volta aos subúrbios e favelas os que não estiverem devidamente aptos ao convívio "civilizado", para usar o eufemismo corrente. Esses instrumentos identificarão os acometidos de alguma doença contagiosa, que serão isolados, no ato. O processo, para seu êxito final, reclama medidas ainda mais rigorosas. Como os mais velhos se lembram, houve quem se atrevesse a mandar afogar os mendigos no Rio da Guarda, e quem aconselhasse a resolver o problema das favelas cariocas mediante o fogo saneador.
Como ocorre em tempos semelhantes, há "voluntários" e "justiceiros" que se adiantam na ação de "limpeza". Em Brasília, bravos rapazes, filhos de gente "de bem" e de bens, queimaram um índio que dormia na parada de ônibus. Outros os imitaram, em várias cidades brasileiras. Em São Paulo, moradores de rua morreram a tiros. No campo, cerca de 1.500 trabalhadores sem terra foram abatidos nos últimos anos, segundo estatísticas da CNBB.
A concentração da riqueza, associada à inevitabilidade da transparência, com os novos meios de comunicação da cidadania, está semeando o inconformismo e, fatalmente, conduzirá à revolta dos excluídos. Os pobres, sempre mais pobres, constituem hoje nova etnia, consciente da injustiça que sofre. Essa consciência cresce, enquanto aumenta a hostilidade contra os excluídos, na humilhação cotidiana e no soberbo desdém que lhes destinam parcelas alienadas da classe média. Os pobres se encontram acuados como animais de presa, e chegará o momento em que o medo será substituído pelo desespero.
Em setembro de 1935, os alemães promulgaram as leis de Nurenberg. Sua primeira aplicação se fez nos bancos dos jardins e praças públicas, com a inscrição que os vedava ao uso dos judeus: nicht für juden. Nos anos seguintes, houve os campos de extermínio, as câmaras de gás, a morte de 6 milhões de judeus, 20 milhões de eslavos, ciganos e outras "raças inferiores", e o sacrifício de milhões de jovens combatentes nos dois lados do front. Em abril de 1945, o corpo do suicida Adolf Hitler foi torrado às pressas junto aos restos de uma cadela e seus filhotes, em pira de molambos e gasolina.
O Ministério Público deve agir, e já. Todos os seres – e não só os homens – têm o inegável direito a dormir, quando e onde lhes for possível. Privá-los do sono é abominável forma de tortura.
temadodia/coisas_da_politica_os_bancos_dos_jardins_e_a_pira_de_molambos.asp

sexta-feira, 20 de março de 2009

Planeta - A aventura desconhecida.

Excerto do livro
que surgiu de um programa radifiônico,
levado ao ar na França.
Diálogo entre Edgar Morin, cientista político frances e
Christoph Wulf, filósofo alemão,
catedrático da Universidade Livre de Berlim,
concentra seus estudos e publicações na área de
Antropologia Histórica.
Christoph Wulf:
"Rimbaud usou esta soberba expressão: “Eu é um outro”. Creio que essa é de fato uma questão essencial. De um lado, é preciso compreender que o “eu” nunca emerge a não ser do encontro com o outro. Poderíamos dizer que é a primeira experiência da formação cultural e individual fazer a experiência de um outro, de um exterior. Esse é um processo que se aplica ao individuo. Trata-se igualmente de conhecer lados que não conhecemos, quando nos tornamos de alguma forma estranhos a nós mesmos. A estranha diante de si mesmo é uma experiência essencial, pois ela permite abrir-se às outras criaturas, e ao outro. O que é decisivo aqui é não ter essa atitude de querer compreender a outro, utilizando essa compreensão para colonizá-lo. Temos exemplos como a conquista da América Latina. Os espanhóis chegaram ali porque eram bem mais capazes de compreender diretamente os estrangeiros, compreendiam os astecas e, por isso, souberam manipulá-los de forma diferente. Portanto, compreender pode ser uma estratégia de poder. E é por isso que eu gostaria de inverter os termos, e dizer que o que é essencial é partir da não-compreensão, de uma situação em que não compreendemos o estranho nem compreendemos a nos mesmos. A partir dessa incerteza, temos uma atitude muito menos violenta com relação ao outro e com relação a nós mesmos. Defendo um pensamento heterogêneo e “heterológico”. Isso é de fundamental importância para o processo de mundialização. É a única maneira de permitir a sobrevivência de culturas estrangeiras tal como elas são, sem utilizar o estratagema da compreensão como uma estratégia de poder para subjugá-las. Essas culturas são como são, diferentes portanto, e é preciso aceitar essa tensão. De resto, é um questão de tradução para ver como podemos comunicar-nos com culturas estranhas. Mas no plano estratégico, quero insistir, é necessário partir da incompreensibilidade do estranho. Essa é uma posição extrema que torna supérfluo o uso da violência".
(Edgar MORIN e Christoph WULF. Planeta– A aventura desconhecida – Ed.Unesp, 2003, pp.36/38)

A paciência do pensamento

MARILENA CHAUI
A entrevista,
na íntegra,
está na revista CULT*.
Aqui reproduzo apenas uma resposta da filósofa espinosiana,
dita pela revista, "a filósofa mais importante do país".
CULT - Quando as pessoas perguntam “qual a utilidade, para que filosofar?”, deixam entrever uma concepção exclusivamente instrumental do conhecimento, concepção esta que é desmentida pela história da filosofia. Parece que a filosofia, ao contrário da matemática e da biologia, precisa continuamente legitimar seu direito à existência. Apesar disso, existiria uma dimensão instrumental, “funcional” , da especulação filosófica, que justificaria sua implantação curricular no ensino médio? De que maneira a filosofia pode hoje fornecer respostas concretas para o enfrentamento de problemas sociais urgentes?

MC – É conhecido o ditado: “A filosofia é uma ciência com a qual e sem a qual o mundo permanece tal e qual”. Ou seja, não serve para coisa nenhuma. O “para quê?” indica que tendemos a considerar o conhecimento de um ponto de vista instrumental como um meio e não como um fim e, como não se vê qual a instrumentalidade da filosofia, decreta-se sua inutilidade. Certa vez, perguntaram a um filósofo: para que filosofia? Ele respondeu: para não darmos nosso assentimento às coisas sem maiores considerações. Ou seja, a atitude filosófica se inicia quando desconfiamos da veracidade ou do valor de nossas crenças cotidianas, desconfiança que surge, sobretudo, no momento em que nossas crenças, nossas idéias, nossos valores parecem contradizer-se unas aos outros. A filosofia é uma interrogação sobre o sentido e o valor do conhecimento e da ação, uma atitude crítica com relação ao que nos é dado imediatamente em nossa vida cotidiana, um trabalho do pensamento para pensar-se a si mesmo e da ação para compreender-se a si mesma.

Por isso vou dividir minha resposta em duas partes. Pelo que eu disse, é óbvio que não penso que o estudo da filosofia no ensino médio deva ser tomado como algo “funcional”, uma vez que a noção de funcionalidade implica, por um lado, a adequação a algo já dado e, de outro, o instrumento que melhora a operação disso que já está dado. Esses dois aspectos da funcionalidade contrariam o núcleo do ensino da filosofia, qual seja, o desenvolvimento da capacidade crítica e o não conformismo com o que está dado. Ou seja, a funcionalidade faz supor que o mundo dado, a sociedade dada, a cultura dada são naturais e que seus problemas são desajustes de um funcionamento que precisa ser consertado por alguns ajustes pontuais. Mas a filosofia leva o estudante a indagar, antes de mais nada, se o dado é “natural” (o famoso “é assim mesmo”) ou se foi instituído pela ação humana, e se os problemas não exigiriam uma reflexão sobre sua gênese, suas causas, em vez de um ajuste.

Passo, então, à segunda parte de minha resposta. O que caracteriza a sociedade contemporânea, sob os efeitos do neoliberalismo, é a desigualdade num patamar jamais visto, dando origem à violência generalizada: não apenas o estímulo ao estado de guerra permanente entre nações, mas também a chamada guerra civil tácita entre os diferentes grupos sociais de uma mesma nação, além do individualismo exacerbado ou da competição mortal na busca de “sucesso”. Também caracteriza a sociedade contemporânea, sob os efeitos das tecnologias de informação, a fragmentação do espaço e do tempo, isto é, o espaço e o tempo são a tela (do computador, da televisão, do celular), tela sem profundidade, que reduz o espaço ao “aqui” e o tempo ao “agora”; todas as experiências são vividas como efêmeras e fugazes, sem passado e sem futuro. Essas características da sociedade contemporânea colocam questões que, além de políticas e econômicas, são filosóficas: a violência abre a interrogação sobre a ética e a política; a fragmentação do espaço e do tempo abre a interrogação sobre o sentido das ciências, das técnicas, das artes e da história; o privilégio da imagem (que é sempre instantânea e imediata) abre a interrogação sobre o sentido da cultura, isto é, da ordem simbólica da linguagem e do trabalho, que é uma ordem de mediações e de capacidade humana para lidar com o ausente e o possível. Certamente há como interessar os alunos para essas questões. Vela a pena levá-los a interrogações que lhes permitam uma primeira compreensão crítica das condições efetivas de suas próprias vidas.
*CULT, reportagem entrevista com o título: A paciência do pensamento, é feita por Juvenal Savian Filho e Eduardo Socha. março/2009, pp.16/23.
OBS.: Parte da entrevista impressa pode ser lida on line: http://www.revistacult.com.br/