No diálogo, dois pensadores – um austríaco radicado nos Estados Unidos, o outro paulistano – refletem sobre o que significam os sinais emitidos pela crise mundial e como os executivos devem reagir a eles. Fritjof Capra, 70 anos, físico teórico, escritor e palestrante, é autor de best-sellers como O Tao da Física e O Ponto de Mutação. Neles, traça paralelismo entre a física moderna e as filosofias e os pensamentos orientais tradicionais. Capra mantém há 15 anos um relacionamento próximo com Motomura, 65 anos, fundador da Amana-Key, em busca de respostas heterodoxas para os dilemas corporativos. Capra, que vive com a família em Oakland, nos arredores da Universidade de Berkeley, é uma das vozes mais eloquentes do pensamento sistêmico, assim chamado por propor uma visão da sociedade global como um organismo interconectado. “Ele é o tipo de pessoa de mente aberta, como se estivesse o tempo todo em busca de novos conhecimentos”, diz Motomura, que recebeu seu amigo para uma conversa, a pedido de Época NEGÓCIOS (onde mantém uma coluna), na sede da instituição que preside nos arredores de São Paulo – um centro de pesquisas de inovações radicais em gestão, por onde já passaram centenas de executivos brasileiros da primeira liga.
Oscar Motomura – Como um pensador sistêmico explica a crise financeira internacional?Fritjof Capra – O princípio fundamental da organização do mercado é a ideia de que ganhar dinheiro está sempre acima de qualquer valor humano, seja a proteção do ambiente, dos direitos humanos, da saúde ou da democracia. Quando a questão está entre ganhar mais dinheiro ou proteger esses outros valores, o dinheiro sempre prevalece. Pensadores como Manuel Castells, Hazel Henderson, Vandana Shiva e eu fazemos essa crítica à economia global há 15 anos, mas o que mais me surpreendeu nesta crise é que até a simples ética comercial, do negócio honesto, foi sucateada. Tendemos a pensar que as pessoas de negócios diriam que a confiança mútua nas transações empresariais é essencial. Mas isso foi deixado de lado em episódios como o escândalo da Enron e outros similares, nos quais os CEOs chegaram até a falsificar o quadro financeiro de suas empresas, não disseram a verdade sobre a saúde financeira de suas corporações e sacaram enormes gratificações enquanto suas empresas iam à bancarrota. Quando a crise se intensificou, chegamos a uma situação em que, de uma hora para outra, até os bancos perderam a confiança uns nos outros. A confiança se deteriorou completamente e o pânico se instalou. Do ponto de vista dos negócios simplesmente, resgatar a ética nos mercados é essencial. Sem isso, esta crise não poderá ser resolvida pela base. E outras poderão surgir.
Motomura – No momento em que a maximização dos ganhos passa a ser o objetivo principal, isso, na verdade, representa uma total inversão de valores. Em tese, o objetivo de toda ação humana, de todo empreendimento deveria ser o bem-estar de todos. O dinheiro deveria ser algo que intermedeia as relações. Quando ele se torna o resultado final a atingir, todo o jogo muda. Ele se transforma no jogo da ganância e todo tipo de distorção passa a ocorrer. Um processo perverso que acaba até envolvendo empresas que deveriam estar fiscalizando o processo para que eventuais manipulações não viessem a ocorrer. É doença em cima de doença. E o que parece mais grave nesse processo é que fazemos de conta que essas coisas não existem, que todas as formas de corrupção podem ser controladas. É uma grande ilusão, um jogo de autoenganos...
Capra – Curiosamente, um impacto psicológico positivo é que as pessoas não vão mais acreditar nas autoridades financeiras. Quando uma empresa de investimento de Wall Street disser ‘confie em nós’, as pessoas vão pensar duas vezes... Elas sabem, agora, como o sistema funciona e como não funciona. As ‘autoridades’ já não têm mais a confiança do público. As pessoas perderam a crença nesse mercado livre e sem regras, o que, segundo Milton Friedman e a Escola de Chicago, é a melhor forma de regular as coisas. Isso simplesmente não faz mais sentido. As pessoas não acreditam mais nisso. Outro desdobramento positivo é a constatação de que os problemas do mundo estão interconectados. Não é coincidência que a crise financeira esteja acontecendo ao mesmo tempo em que a mudança climática mundial também chega a um ponto crítico. Todo o sistema econômico, político e cultural ignorou essas conexões por muito tempo. A fragmentação em nosso mundo acadêmico, na política e nas instituições sociais talvez seja a causa raiz da crise que vivenciamos agora. Portanto, esta é uma crise provocada pela fragmentação e por um jeito de pensar mais mecanicista, que vê as coisas de forma isolada.
Motomura – De quem seria a responsabilidade de liderar a criação dessas soluções?
Motomura – De quem seria a responsabilidade de liderar a criação dessas soluções?
Capra – Independentemente da profissão, uma coisa que podemos dizer com absoluta certeza é que precisamos de pensadores sistêmicos. Alguém que não pense de forma sistêmica não chegará a nenhum tipo de solução que efetivamente resolva os problemas que vivemos hoje. Quando você pensa sistemicamente, pode se surpreender descobrindo que há caminhos muito diferentes do tradicional. Um exemplo: podemos dizer que, se conseguirmos mudar nossa principal fonte de energia, do petróleo para fontes renováveis, e formos capazes de nos libertar do petróleo do Oriente Médio, poderemos então questionar as centenas de bases militares. Por que temos bases no Cazaquistão e na Geórgia? Bem, oleodutos passam por lá. Por que três bases no Afeganistão? Elas estão posicionadas ao longo dos dutos de petróleo. No Iraque? Se não precisarmos do petróleo dessas regiões, não precisaremos dessas bases. De uma hora para outra, bilhões de dólares serão liberados.
Motomura
“Quando o dinheiro se torna o resultado final a atingir,
todo o jogo muda.
Transforma-se no jogo da ganância”
Capra
“Curiosamente, um impacto psicológico positivo é
que as pessoas não vão mais acreditar nas autoridades financeiras.
Perderam a confiança nesse mercado livre
e sem regras que, segundo Friedman,
é a melhor maneira de regular”
Motomura – As mudanças exigidas envolvem reinvenção na área de design. O design é algo que ainda não é muito bem entendido como algo essencial a todas as áreas da atividade humana. O design está presente em tudo. Está inclusive presente no sistema político, econômico e social que prevalece no país. A crise atual é consequência de um design inadequado dos sistemas econômico-financeiros. Essas falhas permitem a ocorrência de irregularidades sem que nada aconteça... A solução da crise pressupõe genialidade em design. E design, por outro lado, pressupõe genialidade em pensamento sistêmico.
Capra – São os Da Vinci de hoje. Em minha opinião, Leonardo da Vinci foi o primeiro e mais brilhante designer de que temos notícia. Ele possuía todas essas qualidades. Uma outra qualidade é a habilidade de organizar esses padrões visualmente e desenhá-los. Leonardo era um solucionador de problemas, um inventor, um pensador sistêmico e um brilhante desenhista. Ele tinha todas as qualidades de um bom designer. Hoje temos um campo muito amplo de design ecológico, que é o da arquitetura verde, da agricultura sistêmica, do design industrial – não focado em produtos, mas em processos –, no qual a matéria flui de forma cíclica. Assim, uma revolução em design está acontecendo: práticas revolucionárias, que incorporam princípios da ecologia; de fato, práticas que se baseiam no aprendizado inspirado na natureza – o conceito de biomimetismo.
Motomura – E quem são os Da Vinci de hoje? Temos muitos deles... Mas, onde estão e o que eles e elas estão fazendo? Estão trabalhando. Muitos têm bons empregos. Não são mais os mecenas que os patrocinam. São empresas. São órgãos do governo. E fazem o quê? Criam novas tecnologias, criam ‘internets’, satélites artificiais, novas armas nucleares, sistemas de inteligência complexos, capazes de monitorar a vida de cada cidadão. São os gênios de hoje.
Motomura – E quem são os Da Vinci de hoje? Temos muitos deles... Mas, onde estão e o que eles e elas estão fazendo? Estão trabalhando. Muitos têm bons empregos. Não são mais os mecenas que os patrocinam. São empresas. São órgãos do governo. E fazem o quê? Criam novas tecnologias, criam ‘internets’, satélites artificiais, novas armas nucleares, sistemas de inteligência complexos, capazes de monitorar a vida de cada cidadão. São os gênios de hoje.
Capra – Uma coisa que aprendemos sobre sistemas não-lineares – por meio das teorias dos sistemas e pela complexidade dos novos estilos de gestão – é que não podemos estabelecer uma cadeia de causa e efeito. Você não pode dizer: ‘Sou o CEO aqui, vou tomar determinada diretriz e mais tarde obterei este resultado’, porque o sistema possui muitos elos de feedback, ele é muito complexo. O que você pode fazer é proporcionar um ambiente em que energia e criatividade sejam liberadas, e então algo acontecerá. No entanto, durante uma crise, as empresas tendem a agir de forma mais conservadora, ficam mais temerosas. Em geral, essa é a tendência, mas não é isso que vai acontecer. As empresas não podem chegar aos analistas do mercado de ações e dizer que vão atuar de modo conservador daqui para a frente. Ser conservador hoje em dia significa desastre. Vai ser preciso agir, seguir em frente... Mas, é claro, com cautela.
Motomura – E como um CEO pode se tornar um pensador sistêmico na vida diária?
Capra – Quero reforçar esse ponto com a minha experiência conduzindo seminários em empresas. Em geral, peço às pessoas para, na primeira sessão, apenas ouvirem e não pensarem em aplicar nada, pois, em geral, elas têm essa tendência de saltar imediatamente para a aplicação. Assim, elas ficam preocupadas primeiro em entender. Mas, com certeza, após a primeira metade do dia, na hora do almoço, você vai ouvi-las falando sobre o que podem fazer na empresa em que atuam e qual seria o próximo passo. Os executivos são bons nisso. Não precisamos ensinar a eles como aplicar o novo em suas organizações. Podemos apenas abrir-lhes algumas portas.
FRITJOF CAPRA, 70 anos, austríaco nascido em Viena e radicado na California, Estados Unidos, é físico teórico, escritor e palestrante. OSCAR MOTOMURA, 64 anos, é educador e especialista em estratégia. Fundador da Amana-Key, é também colunista de Época NEGÓCIOS.
http://epocanegocios.globo.com/Revista/Common/0,,EMI62819-16380,00.html -Reportagem da revista ÉPOCA NEGÓCIOS, Edição Especial de Aniversário, março de 2009 Nº 25.
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