domingo, 22 de março de 2009

A mulher que tinha um olho verde e outro marrom...

Rubem Alves*
Gosto demais da Adélia Prado. Lendo os poemas dela fico com saudades das Minas Gerais da minha infância. Tenho dó de quem não é mineiro porque não vai entender. Para explicar o que é um queijo a quem nunca viu um queijo nem todas as palavras do mundo seriam de valia. Um queijo é inefável, está além das palavras do dicionário. Pra explicar o que é um queijo é só mostrar um queijo sem falar nada. Mas, e se os queijos deixarem de existir? Somente aqueles que haviam comido queijos enquanto existiam é que saberão. Quando o queijo não existe mais, não tem o que mostrar. Não tem jeito de explicar. Minas é um queijo que não existe mais feito as montanhas de Itabira que as mineradoras roeram. Quem viu sabe. Quem não viu não sabe. Para sempre.
A Adélia é mineira e católica de coração, beata do jeito dela. Escreve poesia pra se salvar porque Deus é poesia. Beata herética-erótica, vai teimando, sob a proteção da Virgem e dos santos, no seu “caminho apócrifo de entender a palavra pelo seu reverso.”
Já eu sou protestante apóstata e se ocasião houver tomo comunhão com ela a despeito da proibição do papa. Acho que ela não acredita no papa. Ele nunca foi a Minas Gerais e por isso não pode entender os nossos mistérios. Ela é a teóloga que mais cito, muito embora não tenha diploma de seminário. Os teólogos diplomados são os piores porque pensam que poesia é rima que se recita pra enfeitar sermão. Fazem teologia como quem faz tese de mestrado. Não sabem que a palavra “é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda, (que) foi inventada para ser calada”. Não sabem que o céu estrelado convence mais que os argumentos. Poesia é o lugar do santo dos santos.
A teologia da Adélia é pura heresia que ela disfarça muito bem de poesia e compaixão. Se o papa entendesse o que está escondido por detrás das metáforas dela há muito que a teria colocado sob a punição de um “silêncio obsequioso”, a pior coisa que se pode fazer a um poeta ou a um profeta, proibição de escrever e de falar.
Gastei boa parte do meu tempo lendo teologia e li muitos textos de eclesiologia, que é o saber que os teólogos pretendem ter sobre a igreja. Mas nunca me passou pela cabeça que se pudesse escrever sobre a igreja do jeito como ela escreveu, com chifre e os cheiros de que cachorro gosta.
“A Igreja é o melhor lugar. Lá o gado de Deus pára pra beber água, rela um no outro os chifres e espevita seus cheiros que eu reconheço e gosto a modo de um cachorro. Igreja é a casamata de nós. Tudo lá fica seguro e doce, tudo é ombro a ombro buscando a porta estreita... (74)
A Adélia gosta da igreja. Eu já gostei. Não gosto mais. Lá ninguém gosta do meu cheiro e eu não gosto do cheiro deles. E ao invés de relar seus chifres nos meus, o que o gado faz é me cutucar com a ponta dos seus chifres. Saio sempre machucado. Lá não volto mais. Lendo a Adélia fiquei com saudade porque houve um tempo em que era gostoso estar na igreja.
Durante um bom tempo da minha juventude a igreja foi minha casamata, o meu melhor lugar. Não pensava nos mistérios da Santíssima Trindade, nem nos horrores do Inferno e nem tinha medo. Eu não procurava a porta estreita. Pra dizer a verdade eu não pensava nem na estreita e nem na larga. Não pensava na salvação da minha alma. O bom mesmo era o ombro a ombro. A igreja era o lugar das amizades simples sem complicações teológicas.
Quem me levou para a igreja foi uma mulher, a dona Jenny. Ela não me falou de pecado, nem do inferno e nem da necessidade da salvação. Que eu me lembre ela nunca me falou de religião. Nunca tentou me converter para salvar a minha alma. Ela sabia que eu já estava salvo. Eu fui para a igreja porque a casa dela ficava no fundo da igreja, era a casa pastoral, o marido dela era o pastor. Estar na igreja era um jeito de estar perto da dona Jenny.
Tinha um olho marrom e outro verde. Falava manso, baixinho, olhando nos meus olhos. Foi a primeira pessoa que me levou a sério, que ficou no mesmo nível que eu. Conversava sobre as coisas da vida, inclusive da vida dela. E me escutava em silêncio, seus olhos marrom e verde nos meus. Na solidão fazia poesia. Uma vez me mostrou um poema que escrevera enquanto viajava de maria-fumaça pelas montanhas de Minas em direção a Caxambu. Era sobre um vaso de cristal. Escarafunchei via sobrinha até uma filha. A filha me mandou uma cópia. Era assim:
“Ganhei um lindo vaso de cristal
Que foi o meu tesouro de valor!
Seu brilho era perfeito, sem igual,
E à luz do sol variava a sua cor.
Ao seu redor meus sonhos multicores
Descansavam sem descanso doidamente
E eu lhe dava, sorrindo, belas flores,
E ele brilhava mais, de tão contente!
Mas um dia trincou-se o meu cristal...
Sulco escuro, em contraste com a luz;
Num canto a sós ficou, e do rosal,
Nunca mais uma flor eu nele pus!”
Confidências entre uma mulher de mais de quarenta anos e um adolescente de dezesseis: coisa estranha. Entendi o que não estava escrito. Eu sabia quem era o vaso de cristal rachado. O seu vaso de cristal, ela o amara apaixonadamente, paixão primeira, de corpo e alma, e se entregara a ele, uma entrega proibida e maldita. Um amigo é uma pessoa que adivinha e faz silêncio: aprendi isso do meu filósofo amado, Friedrich Nietzsche. Adivinhei e fiz silêncio. Imagino que ela sabia que eu sabia. Da. Jenny era um espelho bom. Olhando nos seus olhos verde e marrom eu me vi refletido: eu era um menino bonito. Eu era seu confidente. Ela me contava suas tristezas de amor.

*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
http://www.cpopular.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=1625636&area=2220&authent=150047104315621522473243376237 22/03/2009

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