quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

A (ex) mulher da minha vida

IVAN MARTINS*

Por que a gente só descobre que ama depois que pessoa foi embora?

Vinícius de Moraes disse uma vez que as mulheres nunca são tão belas quanto no momento em que vão embora. É uma frase bonita que descreve uma situação triste – os homens, costumeiramente, esperam as mulheres partir para descobrirem, logo depois, que cometeram um erro terrível. A mulher que foi embora se transforma, instantaneamente, na mulher da vida deles, única e insubstituível.

As mulheres conhecem essa história de cor e salteado. Converse com qualquer uma delas e você vai descobrir que o homem bumerangue está na área desde que elas têm 14 anos. O sujeito enjoa do namoro, começa a tratar a moça mal e dá um pé na bunda dela – ou leva, depois de repetidas desatenções. Dias depois, porém, ou mesmo horas depois, lá está o mesmo cidadão ao telefone, transtornado, pedindo para voltar e usando expressões definitivas como “eu te amo”, “não sei viver sem você” e, claro, a melhor de todas, “você é a mulher da minha vida”.

Quem nunca fez esse papelão levante a mão!

Muitos já fizeram, mas há muitos que transformam esse comportamento errático em modo de vida. Eles estão sempre apaixonados por uma de duas mulheres – aquela que já foi embora ou aquela que ainda não apareceu. A mulher do agora, com quem ele dorme, viaja e vai ao cinema, essa nunca é tão bacana. Mas, basta ela se cansar do enfado dele e retirar o time de campo para se tornar, instantaneamente, a mulher mais linda e mais desejada do mundo – a (ex) mulher da vida dele.

Já ouvi dezenas de amigas me perguntarem, ao longo dos anos, sobre o que passa na cabeça dos homens que agem assim. Na nossa cabeça, afinal. Eu não sei. Meu melhor palpite é que se trata de uma terrível ilusão romântica. Ela desloca a felicidade para outro momento da vida, diferente do agora. Produz insatisfação crônica. Quando está no modo nostálgico, o sujeito imagina que o melhor ficou para trás: a ex é que era engraçada, bacana, a melhor foda do universo. No outro modo, o futurista, o sujeito se põe a fantasiar furiosamente sobre uma nova mulher, que ele acaba de conhecer. Ela, sim, bonita desse jeito, divertida, poderá fazê-lo feliz pelo resto da vida! 

Cientistas que estudam o otimismo humano dizem que muitas pessoas acreditam, sem razão objetiva, e muitas vezes contrariando as evidências, que a vida vai lhes dar coisas cada vez melhores. Amor, inclusive. Talvez esses tipos que estão sempre olhando para o futuro, à espera de uma pessoa melhor, sejam apenas otimistas incorrigíveis. Ou tolos. O que é o otimismo sem fundamento senão uma espécie esperançosa de burrice? 

Escrevo sobre homens porque esse comportamento inquieto parece ser mais comum entre nós, mas as mulheres não estão livres dele. Com o fim das convenções sociais que as obrigavam a serem fiéis e bem comportadas – mulher de um homem só, pela vida toda – elas também começam a agir como Don Juan, o sedutor serial da literatura: olham, querem, seduzem, se decepcionam, começam a sonhar de olhos abertos, terminam o relacionamento, começam tudo de novo. Feito homem. Foram contaminadas pela inquietação do amor perfeito.

Muita gente acredita que essa insatisfação permanente é a única forma real da existência humana. Dizem que relações e sentimentos duradouros seriam, na verdade, uma violência contra a nossa natureza de bichos. Afinal, não estamos sexualmente interessados em outras pessoas o tempo inteiro? Se fôssemos honestos, afirmam, teríamos de admitir que nosso desejo é múltiplo e está sempre à procura do próximo objeto. Por isso, não deveríamos estabelecer relações de exclusividade com ninguém.

 Eu não vejo as coisas desse modo.

Acho que podemos escolher entre viver de forma auto-indulgente, correndo atrás do nosso desejo insaciável, ou negociar com ele. O relacionamento é um espaço negociado. Eu e você decidimos que estaremos aqui dentro, juntos, sabendo que uma parte de nós gostaria de estar lá fora, na pluralidade. Mas, lá fora, você e eu sabemos, há sempre uma vontade enorme de estar aqui dentro. Então ficamos, apertamos os nossos vínculos, e desfrutamos da nossa rica intimidade, nos privando de muitas coisas que gostaríamos de tentar, embora não necessariamente de todas. Se o esforço para ficar aqui dentro tornar-se grande demais, caímos fora. E começamos de novo, com muita dor.

Acho essa uma proposição honesta e realista, romântica de uma maneira moderna. Ela é melhor, a meu ver, do que a ilusão de que o grande-amor-definitivo-e-arrebatador surgirá a qualquer momento, e, por isso, devemos estar emocionalmente livres para recebê-lo, sem nos envolver de forma profunda com ninguém no presente. É melhor, também, do que a sensação de que a mulher que deixamos partir (ou o homem que escolhemos deixar) era a única que tinha o poder de nos fazer felizes.

Sei que isso é um clichê miserável, mas o fato é que não existe uma pessoa que nos fará magicamente felizes. A tal felicidade, se existe, depende de nós. Nós deveríamos ser capazes de escolher e ficar contentes com a pessoa que escolhemos. Ou, se não for esse o caso, ao menos deveríamos estar contentes com o estilo de vida desprendido que adotamos. Tudo aqui e agora. Não adianta ser feliz no ontem, que já passou, ou no amanhã, que talvez nunca venha.
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http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/ivan-martins/noticia/2013/01/ex-mulher-da-minha-vida.html
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O barco da paixão

Não acho que seja boa a metáfora que diz que a paixão
 é uma chama forte que se extingue logo, enquanto 
o amor é uma chama morna e duradoura. 
Acredito mais na metáfora do barco, em que a pessoa viciada 
em se apaixonar quer tão somente ir ao mar tempestuoso 
sem ter controle da embarcação, sendo jogada de cá para lá pelas ondas 
sem saber onde vai parar. O amor é você com as mãos no leme, 
cuidando para onde ir, onde vai jogar âncoras, 
quanto tempo ficará e quanto tempo viajará. 
Quanto ao amor ser morno, cuide para que a chama intensa 
que todos desejamos more em você, não nas expectativas 
que você joga na outra pessoa. 
Amor é para os que querem ser fortes e ativos. 
Paixão (o nome, em sua origem grega, já diz) 
é para os passivos, que preferem ser carregados.
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Por Alessandro Martins
Fonte:  http://alessandromartins.me/o-barco-da-paixao/

Agora é hora de falar com bilionários pelo mundo

Entrevista Bill Gates 
 

Em entrevista à folha, empresário e filantropo Bill Gates elogia Embrapa e instituto Butantan, mas cobra mais ação
RAUL JUSTE LORESDE NOVA YORK
 
O empresário e filantropo americano Bill Gates, 57, prepara uma série de viagens pelo mundo para convencer outros bilionários fora dos EUA a doar boa parte de suas fortunas para a filantropia -como ele mesmo já fez.

Ele também afirmou que países de renda média -como o Brasil- deveriam doar mais e ajudar países "muito mais pobres" pelo mundo, especialmente em tecnologia agrícola e vacinação.
Em um hotel em Nova York, falando a um grupo de quatro jornais internacionais, entre eles a Folha (o único latino-americano), ele disse que conseguiu convencer 92 bilionários americanos a doar fortunas "muito antes do testamento, em vida, cobrando resultados e colocando seus conhecimentos para a filantropia".

O fundador da Microsoft vai anunciar que países irá visitar, dentro da campanha "Giving Pledge", em fevereiro. Gates já afirmou que deixará 95% de sua fortuna pessoal para a filantropia.

"Agora é hora de falar com bilionários pelo mundo. Muitos deles já fazem suas ações de filantropia, mas podemos fazer mais", disse. "Não será fácil, porque não existe a tradição. Pode até levar um tempo, mas vale a pena."

Gates lançou ontem a carta anual da Bill & Melinda Gates Foundation, criada em 2000, em que fala de progressos em educação e saúde, principalmente em países africanos e asiáticos. "É uma chance de compartilhar minhas visões, dar opiniões e falar de dados e inovação".
A íntegra da carta (já traduzida para o português) pode ser lida em bit.ly/11hemKd.

À Folha Gates disse que o Brasil deve elevar a ajuda externa aos países mais pobres, o que outros países de "renda média" deveriam fazer mais.

"A Embrapa é um tesouro mundial, pois conhece profundamente os grãos e os solos tropicais, aquela informação valiosa para países africanos e asiáticos. O Brasil tem diversos acordos bilaterais, especialmente com a África lusófona, tem grandes programas de vacinação com o Butantan, mas sempre dá para fazer mais", afirmou. 
 
CRISE

Tanto na carta quanto durante a entrevista, Gates falou repetidas vezes sobre a necessidade de medir resultados e de ter objetivos na filantropia.

Em tempos de crise, quando até tradicionais países doadores estão apertando os cintos, é importante saber exatamente os resultados "para que isso continue a ser uma prioridade para as pessoas, os contribuintes".

O filantropo disse que, "em um mundo com GPS, imagens por satélite, celulares onipresentes e softwares baratos", nunca foi tão fácil medir o impacto de programas e doações.

Na carta, ele fala de um projeto no Estado americano do Colorado, em que professoras são avaliadas pela performance dos alunos, em entrevistas e por "professoras-mentoras", entre as mais bem avaliadas do distrito, que passam 30% do seu tempo assistindo à aula de colegas. 

EDUCAÇÃO

A tripla avaliação garante aumentos de salários e bônus para as professoras com a melhor avaliação, para reter as melhores no emprego.

"Os melhores países do mundo em avaliação de professores também estão entre os que têm alunos com melhores resultados em testes internacionais, como Cingapura e Coreia do Sul. Isso demonstra a vantagem da avaliação. Vão bem melhor do que os EUA", afirmou Gates.
"Mas, em muitas partes do mundo, ainda precisamos checar se os professores não estão faltando muito. Há o 'status quo' dos sindicatos, que não querem mudanças."

Ele disse que não sabe como é no Brasil, mas que, "no México e na África do Sul, os resultados dos alunos são ainda piores que nos EUA. Até as boas professoras ficam nervosas com a avaliação, mas precisamos dessa métrica".

Gates festejou o acordo entre a Khan Academy, da qual é doador, com a Fundação Lemann para traduzir e dublar as aulas do popular professor americano Salman Khan para o português. "O Brasil está no caminho certo para adotar as ferramentas tecnológicas para ajudar o professor." 

CLIMA

Gates também se mostrou defensor dos Objetivos do Milênio da ONU. Afirmou que, ao contrário de tantos documentos que são arquivados e prontamente esquecidos, os objetivos, por terem números claros e metas realistas, foram sendo cumpridos.

Mas disse que está na hora de "refinar" e de atualizar os tais objetivos. Incluindo, ainda, "objetivos climáticos". "Pode ser difícil colocar China e Estados Unidos para atingir essas metas, mas ainda há 193 países para chegar a um acordo", afirmou.

Ele contou um pouco de suas últimas viagens por Nigéria, Etiópia e Índia e disse ver progressos em todas as áreas, "mais do que a maioria dos analistas". "Sou um grande otimista, mas é fato que a vida dos mais pobres melhorou muito nos últimos 15 anos." 
  
Raio-X Bill Gates 

VIDA
Nascido em 28 de outubro de 1955, em Seattle (no Estado de Washington)

EDUCAÇÃO
Lakeside School; Harvard (incompleto)

OBRA
Construiu, ao lado de Paul Allen, a gigante da computação Microsoft em 1975

FAMÍLIA
Casado com Melinda Gates desde 1994; tem três filhos

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Fonte:  http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/31/01/2013
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Muito Tony Kushner

 L. F. VERISSIMO*
 

Lincoln é a segunda colaboração do Steven Spielberg com o dramaturgo Tony Kushner. A primeira foi Munich, em que o roteiro de Kushner e de um coautor incluía crises de consciência dos agentes de Israel encarregados de vingar o massacre de atletas judeus por palestinos na Olimpíada de Munique de 1972 e impediu que o filme fosse apenas uma glorificação da vingança. Kushner é judeu, como Spielberg, mas é um conhecido crítico do sionismo e da política de Israel em relação aos palestinos e um esquerdista ativo e combativo. Spielberg é um dos “liberais”, no sentido anglo-saxão da palavra, de Hollywood, que votam nos democratas, fazem filmes sobre causas nobres como a dos direitos civis de minorias e podem ser definidos como da esquerda confortável.

A parceria Spielberg/Kushner é insólita em outro sentido. Spielberg faz cinemão – bom cinemão, mas cinemão – e Kushner é o mais notório autor de vanguarda do teatro americano, com previsível desdém pelo teatro convencional e pelas grandes produções do cinema comercial. Uma curiosidade: no final da primeira parte da sua peça Anjos na América (as duas partes encenadas juntas tem mais de sete horas de duração), desce no palco um anjo mensageiro para anunciar a vinda do novo milênio e, supõe-se, a purgação dos pecados da América. Sua chegada, numa nuvem colorida, derrubando cenários e acompanhado de raios e música bombástica, é espetacular. Tanto que um dos personagens comenta:

– Muito Steven Spielberg.

Do filme Lincoln, pode-se dizer que é muito Tony Kushner. São espetaculares as atuações de Daniel Day-Lewis, Tommy Lee Jones e Sally Fields, mas há pouco espetáculo do Spielberg. Kushner concentrou-se na capacidade política de Lincoln e no fim a abolição da escravatura é apresentada como um triunfo das suas palavras e da sua personalidade – com um pouco de ajuda de propinas a congressistas. Há só uma cena, curta, de guerra, no começo do filme. E é tão reticente a direção de Spielberg, que não se vê nem o assassinato de Lincoln, uma cena que presumivelmente permitiria ao diretor dar o seu show. Mas Kushner não deixou. Ficamos sabendo da morte do presidente de ouvir dizer.

Nos Estados Unidos discute-se se Lincoln é de esquerda ou de direita. A esquerda reclama que o filme reforça a ideia de que a História é feita por líderes e heróis excepcionais, a direita reclama que outras causas da Guerra Civil, como a dos direitos estaduais diante da prepotência da União, foram mais importantes do que a escravatura e nem são citadas. Eu acho que o filme seria melhor se o Spielberg tivesse mais solto. Ou então se o Kushner enlouquecesse. Um anjo mensageiro descendo no meio da bancada antiabolicionista do Congresso e anunciando a vinda do Obama, por que não?
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* Escritor. Jornalista.
Fonte: ZH on line, 31/01/2013
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quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Um estranho mundo

Roberto Damatta*
Como um membro desse triste clube dos que perderam subitamente seus filhos, chorei ao tomar conhecimento da tragédia ocorrida na boate de Santa Maria.

Sei bem o que é ver um filho vivo e, horas depois, providenciar o absurdo de seu enterro e túmulo. As providências burocráticas garantem a morte do descendente saudável cujo fim havia apenas sido notificado. Nada pior nem mais inacreditável. O absurdo - que normalmente leva ao banal - como fonte permanente de dor conduz ao patético que ninguém engole por inteiro.

Dessa tragédia de Santa Maria fica em mim o paradoxo de um estranho novo mundo. Esses moços vivem num universo desconhecido da minha geração. No meu tempo, o mundo acontecia por meio de encontros pessoais. A gente via o outro em pessoa. Marcava encontros e falava diretamente com os amigos. Usávamos às vezes o bilhete, raramente o telefone. Tudo era realizado por meio da presença física e do toque, geralmente em meio a uma "turma". Ficar sozinho era raro e o cinema escuro ajudava a inventar uma individualidade inexistente e anormal - e por isso encantada.

Hoje, o rotineiro é a individualidade. Cada qual tem sua marca e suas mil fotografias. Jamais uma geração foi tão fotografada quanto essa que testemunha-se a si mesma em todos os lugares e a toda hora. Mas, se a singularidade e a comunicação pessoal são a norma, compensa-se isso pelos "megaeventos". Nos encontros públicos, temos os palcos com as bandas e uma plateia de milhares que, em bandos, dissolvem seus egos por meio do ídolo que anima coletividades possessas que, aos berros, cantam e se movimentam em conjunto, mimetizando o artista. Vai-se do individualíssimo ao coletivíssimo emoldurado pelo megaevento que não se satisfaz em mostrar, tocar e cantar, como era o caso da minha geração, mas que conduz a um participar no qual tudo muda de foco. Fica complicado saber quem é artista e quem é plateia, isso para não falar das mais diversas pirotecnias que, descubro horrorizado, fazem parte dos eventos.

Estranho mundo no qual se passa do hiper-individual e do superparticular (cada qual no seu fone falando sozinho mas em grupo) para o coletivo (todos como uma pessoa), vivendo uma supercoleticidade esmagadora.

Seria isso um sintoma desse desejo de morte (a última e inescrutável fronteira) que os esportes de risco representam? Hoje se morre junto sem saber. Hoje, a morte tem testemunhos. E o que ela nos diz é a mensagem banal de sempre. Fomos. Não somos mais. A morte é o mais puro coletivo e o mais tenebroso anonimato. Os ditadores a conhecem bem e dela ainda vivem.
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* Antropólogo. Escritor. Colunista do Estadão.
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Fonte:  http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,30/01/2013

E se o feminismo cuidar dos homens?

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Marília Moschkovich


É hora de estimulá-los a vencer preconceitos disseminados pela mídia e família, e a superar uma forma particular de infantilidade

Cena um. Uma propaganda da Gilette . Um homem branco, franzino, procura sua lâmina de barbear e não encontra. Grita, do banheiro, para a esposa: “Amor, cadê minha Gilette?”. A esposa responde que é pra ele usar a outra, “amarelinha” (numa alusão à concorrente, da marca Bic), que ela comprou. Quando ele vai pegar o aparelho na gaveta, seu banheiro é invadido por estrelas nacionais do MMA, como Vitor Belfort, que o lembram que coisa de macho mesmo é usar as lâminas da marca Gilette. Ele dá uma olhada no banheiro e, para sua alegria, encontra o aparelho no box do chuveiro, o que faz os lutadores irem embora. Missão cumprida. Na saída da casa, eles se dirigem à esposa com a frase: “também estamos de olho em você”.

Cena dois. Um print screen de um zé-ninguém na internet, comentando num dos blogs feministas mais acessados da rede . O Zé-Ninguém reivindica que o feminismo acabou com os relacionamentos. O motivo? Por causa desse inferno de feminismo, a namorada dele se recusa a fazer o mingau que sua mamãe havia feito pra ele a vida toda. Quando foi que as mulheres ficaram tão rebeldes, meu Deus? Pois é. Seguindo o bafafá que este comentário gerou, pipocaram em minhas redes sociais dezenas de histórias de situações iguaizinhas, que apenas substituíam o mingau de aveia por outros quitutes como leite com chocolate aerado, pudim, e outros “pratos preferidos” de marmanjos Brasil afora, que estas malditas feministas insistiram em não fazer. Tudo culpa delas.

Essas duas situações recentes me lembraram de algo em que já vinha reparando há tempos. Cada vez mais, nos círculos sociais que frequento, me convenço de que o maior desafio do feminismo hoje não somos nós, mulheres: são os homens.

Não sei há quanto tempo sou feminista. O feminismo veio com a minha vida, numa família em que eu e meu irmãos fomos criados em condições iguais; em que meus pais dividiam o trabalho doméstico e as tarefas de cuidado com os filhos. O feminismo começa aí: no cotidiano. O feminismo começa na maior ou menor disposição pra enfrentar uma pilha de louça suja, ou na aceitação e na recusa em se delegar 100% das tarefas à faxineira que vem uma vez por semana. O feminismo é a intolerância com a roupa que precisa ser lavada, com o lixo que precisa ir pra fora. A vontade de cozinhar. A fralda de cocô. O aleitamento de madrugada.

Praticamente todas as mulheres que conheço têm uma espécie de espírito independente, protagonista. Enxergam questões que precisam ser resolvidas e não esperam que alguém as resolva; tomam a iniciativa. Isso vale pras tarefas que mencionei, mas vale também para situações de trabalho, para relacionamentos, para o jogo de sedução, para todas as esferas da vida. Não vejo o mesmo acontecer com a maioria dos homens (embora haja exceções, claro, e sou feliz de dividir uma vida com uma delas).

Os homens ainda parecem ter uma experiência de gênero mais conservadora; é quase como se o feminismo tivesse até aqui conseguido mudar muito as mulheres e quase nada os homens. Os homens, ao contrário do que algumas companheira feministas defendem, não são verdadeiros bananas. Em geral, eles são é muito pró-ativos, independentes, protagonistas. O problema é que essa atitude toda costuma ficar restrita à carreira, ao ambiente profissional. É como se eles se transformassem ao chegarem em casa. Da porta pra dentro, grande parte deles se comporta como a criança que já foram um dia.

Infelizmente não sei explicar de forma exata por que isto acontece. Eu diria que depende dos modelos de gênero que a pessoa teve. Isso significa que depende da forma como os papéis sociais eram distribuídos na família, mas também em outros espaços. Me lembro, por exemplo, do tanto de autonomia que ganhei participando do movimento escoteiro quando criança e adolescente, que foi o mesmo para meus colegas homens. Quando era preciso cozinhar, limpar os espaços, carregar bambus pesados, etc. tive a sorte de estar num grupo escoteiro onde era tudo muito igualitário. Igualitário até demais para algumas das minhas amigas – que queriam mesmo era que alguém matasse a barata que tinha entrado na barraca durante um acampamento, ao invés de enfrentarem o medo. Por outro lado, quem matava as tais baratas muitas vezes eram outras meninas. O negócio ali era criar uma vontade de independência em todo mundo, de todos os gêneros, para todo tipo de tarefa.

Esta é a saída que eu vejo, hoje, para resolver esse impasse que acaba pesando mais nas costas das mulheres (que, sendo pró-ativas em tudo, acabam fazendo tudo mesmo): que as propagandas, programas de tevê, novelas, filmes, familiares, irmãs, mães, pais, avós, escolas, professores, babás, faxineiras, gerentes executivos, enfim, que nós todos e todas, como sociedade, simplesmente nos recusemos a tratar os homens como idiotas. Não é tão difícil assim. Basta tratar um homem adulto como aquilo que ele é: um homem adulto.
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* Socióloga.
Imagem: Jean-Luc Godard, fotograma de Acossado
Fonte:  http://www.outraspalavras.net/2013/01/28/e-se-o-feminismo-cuidar-dos-homens/

Jesus politicamente incorreto.

 Gianfranco Ravasi*
Consideramos Cristo apenas como "manso e humilde de coração" e, portanto, doce, terno, calmo, e a considerar o "evangelho" apenas como uma "boa notícia". Isso é verdade, mas o amor não suprime a justiça, a bondade deve se conjugar com a verdade, a delicadeza não é sinônimo de ingenuidade, a suavidade não pode beirar o despreparo, e o bem não é ingenuidade.

A opinião é de Gianfranco Ravasi, cardeal presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 27-01-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Quando atracam com o barco em Cafarnaum, na margem norte do lago de Tiberíades, os peregrinos logo vislumbram as colunas e as paredes que ficaram de pé da antiga sinagoga do século IV, sinal da importância dessa cidadezinha de trânsito para a Síria, agora porém reduzida apenas a um campo arqueológico administrado pelos franciscanos.

Nessa área sinagogal, em um edifício pré-existente agora desaparecido, Cristo proferiu um discurso longo e desconcertante sobre a sua carne como alimento e sobre o seu sangue como bebida.

Se pensarmos que, naquela cultura, era proibido até mesmo tocar em um corpo dilacerado e sanguinolento, porque o sangue, sinal da vida intangível, contaminava aqueles que o manipulavam, conseguimos compreender a reação de muitos discípulos de Jesus registrada pelo evangelista João: "Este discurso é sklerós", ou seja, "duro", inaceitável (6, 60).

O próprio Cristo é consciente disso e responde: "Isso escandaliza vocês?", e em grego skándalon é a pedra de tropeço que faz com que uma pessoa que avança por um caminho acidentado tropece e caia. Não é por nada que, dirigido aos 12, os apóstolos por ele escolhidos, ele havia interpelado com uma pergunta clara e radical: "Vocês também querem ir embora?" (6, 67).

Diante dos muitos outros discípulos que voltaram atrás e não andavam mais com Jesus, seria o apóstolo Pedro que reagiria: "A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna" (6, 68). Essa promessa tão clara, no entanto, estava destinada não raramente a se ofuscar diante de outras palavras e comportamentos "duros" do Mestre.

Quisemos evocar essa cena evangélica para apresentar um livro que um monge da Comunidade de Bose, do Piemonte, Ludwig Monti (Le parole dure di Gesù [As palavras duras de Jesus], Ed. Qiqajon, Bose, Biella, 172 páginas), dedicou justamente às "palavras duras de Jesus", um livro que na capa tem o impressionante rosto de Cristo in opus sectile da Domus de Porta Marina em Ostia (século IV), de olhos aterradores e arrepiantes.

Eu mesmo, há muito tempo, consagrei uma coluna semanal da revista Famiglia Cristiana, a um contagem sistemática não só de "palavras duras" de Jesus, mas também de todas as passagens do Evangelho que são verdadeiras "pedras de tropeço" (skándalon) do leitor. Este, de fato, é propenso a considerar Cristo apenas como "manso e humilde de coração" e, portanto, doce, terno, calmo, e a considerar o "evangelho" apenas como uma "boa notícia".

Isso é verdade, mas o amor não suprime a justiça, a bondade deve se conjugar com a verdade, a delicadeza não é sinônimo de ingenuidade, a suavidade não pode beirar o despreparo, e o bem não é ingenuidade.

O biblista de Bose coleta 34 passagens evangélicas articulando-as segundo os destinatários (ao menos de acordo com a redação dos evangelistas), isto é, os 12 ou os discípulos, as pessoas religiosas da época (pensamos nos escribas e nos fariseus), a multidão judaica e outros, para acabar com uma frase dirigida a Deus e aparentemente problemática: "Eu peço por eles, não peço pelo mundo" (João 17, 9).

O que cria dificuldades interpretativas ou embaraço, na realidade, são muitas outras palavras de Jesus, e talvez é por isso que Monti acrescenta, no fim, uma bibliografia "para ir além...". Certamente, muitos leitores dos Evangelhos não raramente se confrontam com frases chocantes (hard sayings, as definia, em um artigo de 1983, o estudioso norte-americano Frederick F. Bruce), como por exemplo, este convite impressionante dirigido por Jesus a um aspirante a discípulo que recém havia perdido o pai e devia participar do funeral: "Siga-me, e deixe que os mortos sepultem seus próprios mortos" (Mateus 8, 22).

Ou ainda, de modo igualmente provocativo e "escandaloso": "Se alguém vem a mim, e não odeia o seu pai, a sua mãe, a mulher, os filhos, os irmãos, as irmãs, e até mesmo a sua própria vida, não pode ser meu discípulo" (Lucas 14, 26). Na realidade, aqui, o desconcerto (Jesus que impõe o ódio, depois de ter sempre exaltado o amor e a não violência!) é mais de índole linguística, sendo as línguas semíticas – como o aramaico subjacente ao grego dos Evangelhos – desprovidas do comparativo relativo, pelo qual "amar menos" se torna "odiar". Nesse caso, então, a perturbação diante de tal apelo se dissolve, pensando que Jesus queria dizer: "Se alguém vem a mim, e me ama menos do que o seu pai...". Mas por que Lucas, que lidava bem com o grego, não adotou logo essa forma?

Responde adequadamente Monti: "Ao custo de ofender os seus leitores de língua grega, Lucas mantém o verbo 'odiar' para ressaltar a paradoxalidade do pedido de Jesus". Em outras palavras, Jesus não é um político que, ao custo de agregar votos para si e de conservar o poder, está pronto para qualquer compromisso. Melhor poucos discípulos (o "pequeno rebanho") conscientes das exigências da escolha a ser feita, do que uma massa de seguidores aproximativos e propensos à fuga diante de um compromisso sério e severo.

Poderíamos continuar essa lista, citando mais um exemplo, como esta embaraçosa declaração de Cristo: "Qualquer pecado ou blasfêmia será perdoado; mas a blasfêmia contra o Espírito não será perdoada" (Mateus 12, 31). Santo Agostinho já confessava a sua impotência para decifrar a afirmação, reconhecendo que "nas Sagradas Escrituras não há, talvez, nenhuma questão mais comprometedora e não se encontra outra mais difícil". O nosso autor propõe uma solução sugestiva, levando-se em conta o contexto em que está em cena a luta contra Satanás e o pecado. Lá, tem-se a afirmação de Jesus que declara que "expulsa os demônios através do Espírito de Deus" (12, 28).

Então, "se o Espírito é a remissão dos pecados, blasfemar contra ele é fechar-se ipso facto ao perdão dado por Deus e recusar a se deixar converter por ele. Jesus não pronuncia uma palavra de castigo, limita-se a uma triste constatação dessa realidade de fato", que revela, dentre outras coisas, o destaque da liberdade humana.

Paremos por aqui, deixando que os leitores descubram outras "palavras duras" de Cristo, sem falar daquelas passagens evangélicas problemáticas ou complicadas, que aqui não são abordadas e às quais penso em dedicar, eu mesmo, no futuro, uma análise essencial, destinada a quem não tem uma preparação exegética específica.

Gostaríamos, de fato, que todos pudessem dar razão dos textos e da sua dificuldade, conscientes de uma frase do historiador inglês do século XVII Thomas Fuller, que, na sua Gnomologia, defendia: "Tudo é difícil antes de se tornar simples".
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Fonte: IHU on line, 30/01/2013

A educação precisa ser readaptada segundo o pesquisador Marc Prensky

by {RCRISTO - Tecnologia e Informação}

"Educamos para um contexto que não existe mais", afirmou o especialista Marc Prensky. Divulgação.

Mais do que mudar a forma como a tecnologia é usada na educação, a proposta de Marc Prensky é mudar toda a educação, pois ela é "terrível" em todos os lugares do mundo. O especialista em educação e tecnologia, convidado da Fundação Telefônica na Campus Party Brasil deste ano, explicou em palestra na noite desta terça-feira sobre como os "nativos digitais" precisam ter de seus professores.

O termo "nativos digitais" refere-se às pessoas que já nasceram na era digital, e se opõe aos "imigrantes digitais", ou aqueles que conheceram o mundo antes da internet. O palestrante americano mostrou uma foto sua em 1970, com um violão, e depois outra atual, com um tablet. Na sua percepção, os nativos digitais têm mais facilidade de adaptação.

"O mundo todo está em uma má situação em termos de educação", diz, "não são só países como o Brasil, só países em desenvolvimento". "E por que digo que a educação é terrível? Porque educamos para um contexto que não existe mais", afirmou, explicando que hoje em dia não se precisa de matemática, ciência e física como na época em que essas temáticas foram incluídas no currículo. "E ninguém ouve quando alguém diz, 'vamos fazer isso diferente'", completou.

Na visão de Prensky, o foco da educação deveria estar nos "verbos" e não nos "substantivos". "Questionamos se as crianças deveriam usar o PowerPoint, a Wikipédia em sala. Mas isso são 'substantivos'. O que realmente queremos é os 'verbos': apresentar, aprender, ler", explicou. "Os verbos não mudam, queremos os mesmos 'verbos' há mil anos", resumiu, citando pensamento crítico, lógica, criatividade. "E há muitos desses verbos, mas temos que nos perguntar: quais são os 'verbos'-chave? E só depois que soubermos disso, nos perguntamos quais 'substantivos' vamos usar", definiu.

Cérebro estendido

Para responder a essas perguntas, o especialista apresentou o conceito do cérebro estendido, uma soma do cérebro de cada um com as possibilidades oferecidas pela tecnologia. Para o pesquisador, o cérebro é bom em algumas atividades, mas pode se beneficiar das máquinas para, por exemplo, "lembrar tudo ou processar três milhões de dados". Em um dos slides, Prensky resumiu a ideia com uma citação de uma criança de 10 anos: "antigamente as pessoas precisavam saber de cor os números de telefone".

A forma de lidar com esse cérebro estendido seria, pois, combinar as potencialidades das máquinas e dos cérebros. "E acho que é isso que vocês estão fazendo aqui. Vocês são as pessoas que vão criar a inovação", afirmou à audiência do palco principal do Anhembi Parque.
Para falar sobre suas ideias aplicadas à educação, o pesquisador citou um estudante que disse "a coisa mais inteligente que já ouviu": que professores entendem a tecnologia como ferramentas, enquanto estudantes a entendem como uma fundação, uma base que se estende sob o restante.

Trivial x poderoso

Prensky também falou de como vê a tecnologia envolvida na educação de duas formas, uma "trivial" e a outra "poderosa". "A primeira é fazer as mesmas coisas que sempre fizemos, em novas formas - sempre escrevemos, agora temos um blog ou usamos teclado. Eu chamo de trivial, não porque não é importante, mas porque já fazíamos antes. E há as coisas que não podíamos fazer, que chamo de poderosas", explicou citando chamadas de voz por IP, tweets, impressão 3D, inteligência artificial, jogos, simulações e robótica entre as formas "poderosas" de a tecnologia influenciar a educação.

"Mas por mais que gostemos de tecnologia, é preciso lembrar que há coisas muito importantes na educação que a ela não faz", destacou, citando empatia, escolha e paixão. Para ele, essas são as coisas que o cérebro faz melhor, e que é nisso que os professores devem se focar, adaptando o 'como' ensinam.

E é preciso adaptar também, segundo Prensky, mudar o "o quê" se ensina. Ele defende que no novo modelo de educar os jovens sejam "nós da rede", que possam se conectar o máximo possível e que os professores orientem o percurso, fazendo, de acordo com o pesquisador, o que cada um faz melhor: os estudantes, se conectar e achar os conteúdos, e os professores: questionar, orientar e avaliar.

"Muito se diz que a escola precisa ensinar 'o básico' para as crianças, mas 'o básico' também está mudando" - defendeu - apresentando sua proposta do que seria o novo "básico" da educação formal, que ele chamada de eTARA, sigla em inglês para o conjunto de pensamento, ação, relacionamento e conquista efetivos. Programar, na lista de Prensky, é parte de pensamento efetivo, assim como ética de relacionamento, e empreendedorismo de ação.
O pesquisador finalizou incentivando os empreendedores e geeks que o ouviam a criar aplicativos, programas e outras ferramentas para mudar a forma do ensino usando a tecnologia.
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Campus Party Brasil 2013
Fonte:  http://rcristo.com.br/2013/01/30/a-educacao-precisa-ser-readaptada-segundo-o-pesquisador-marc-prensky/

Empatia

Martha Medeiros*

As pessoas se preocupam em ser simpáticas, mas pouco se esforçam para ser empáticas, e algumas talvez nem saibam direito o que o termo significa. Empatia é a capacidade de se colocar no lugar do outro, de compreendê-lo emocionalmente. Vai muito além da identificação. Podemos até não sintonizar com alguém, mas nada impede que entendamos as razões pelas quais ele se comporta de determinado jeito, o que o faz sofrer, os direitos que ele tem.

Nada impede?

Foi força de expressão. O narcisismo, por exemplo, impede a empatia. A pessoa é tão autofocada, que para ela só existem dois tipos de gente: os seus iguais e o resto, sendo que o resto não merece um segundo olhar. Narciso acha feio o que não é espelho. Ele se retroalimenta de aplausos, elogios e concordâncias, e assim vai erguendo uma parede que o blinda contra qualquer sentimento que não lhe diga respeito. Se pisam no seu pé, reclama e exige que os holofotes se voltem para essa agressão gravíssima. Se pisarem no pé do outro, é porque o outro fez por merecer.

Afora o narcisismo, existe outro impedimento para a empatia: a ignorância. Pessoas que não circulam, não possuem amigos, não se informam, não leem, enfim, pessoas que não abrem seus horizontes tornam-se preconceituosas e mantêm-se na estreiteza da sua existência. Qualquer estranho que possua hábitos diferentes será criticado em vez de respeitado. Os ignorantes têm medo do desconhecido.

E afora o narcisismo e a ignorância, há o mau-caratismo daqueles que, mesmo tendo o dever de pensar no bem público, colocam seus próprios interesses acima do de todos, e aí os exemplos se empilham: políticos corruptos, empresários que só visam ao lucro sem respeitar a legislação, pessoas que “compram” vagas de emprego e de estudo que deveriam ser conquistadas através dos trâmites usuais, sem falar em atitudes prosaicas como furar fila, estacionar em vaga para deficientes, terminar namoros pelo Facebook, faltar compromissos sem avisar antes, enfim, aquelas “coisinhas” que se faz no automático sem pensar que há alguém do outro lado do balcão que irá se sentir prejudicado ou magoado.

É um assunto recorrente: precisamos de mais gentileza etc. e tal. Para muitos, puxar uma cadeira para a moça sentar ou juntar um pacote que alguém deixou cair, basta. Sim, somos todos gentis, mas colocar-se no lugar do outro vai muito além da polidez e é o que realmente pode melhorar o mundo em que vivemos. A cada pequeno gesto diário, a cada decisão que tomamos, estamos interferindo na vida alheia. Logo, sejamos mais empáticos do que simpáticos. Ninguém espera que você e eu passemos a agir como heróis ou santos, apenas que tenhamos consciência de que só desenvolvendo a empatia é que se cria uma corrente de acertos e de responsabilidade – colocar-se no lugar do outro não é uma simples gentileza que se faz, é a solução para sairmos dessa barbárie disfarçada e sermos uma sociedade civilizada de fato.
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* Escritora. Jornalista. Cronista da ZH
Fonte: ZH on line, 30/01/2013
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terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Silêncio...

 Zelmar Antônio Guiotto

Silêncio!
Eles passam
São dezenas
Caminham suavemente
Sonhos brotam qual relâmpagos
de suas mentes jovens, e apagam-se
em lágrimas de chuva fina e brilhante...
Silêncio!
Eles passam
Todos sentem...
Levam nas mãos livros e cadernos
que se desfazem no ar em folhas soltas ...
Silêncio!
Eles passam
continuarão passando por muitas décadas...
Pois são jovens...
Silêncio!
Palavras fazem ruídos
Eles passam 
para se tornarem eternos...
Quão triste é a eternidade
para os que ficam...

O tempo do olhar...



"Aquele que luta com monstros 
deve acautelar-se para não tornar-se 
também um monstro. 
Quando se olha muito tempo para um abismo,
 o abismo olha para você." - 

Friedrich Nietzsche, Além Do Bem E Do Mal.

A dor definitiva

Clóvis Rossi*

Mas, atenção, tragédias como a de Santa Maria não são inerentes ao terceiro-mundismo 

Tentei, juro que tentei, escrever sobre temas internacionais, como é a norma nesta seção. Até havia dois ou três assuntos pré-selecionados, mas não dá. A tragédia de Santa Maria chama poderosamente.

Tal como contou ontem o santa-mariense Álvaro Fagundes, eu também fiquei hipnotizado quando pipocaram na tela de meu iPad os primeiros "flashes" sobre o incêndio. Mas, tal como ele, hesitei em aceitar que era no Brasil. Não podia ser.

Nas duas horas e meia do percurso de trem entre Davos e Zurique, sem internet para ver mais "flashes", decretei que não era no Brasil. Só podia ser mais uma tragédia africana ou asiática.

Sei que elas acontecem também no mundo rico, mas são mais usuais em países subdesenvolvidos, nos quais todas as instituições são precárias, da prevenção ao socorro, da obediência aos regulamentos à responsabilização dos proprietários e governantes.

Liguei a TV no hotel. Aí, não dava para escapar: era Brasil, Brazil, Brasile, Brésil.

Não dava também para escapar à sensação de que havia alguma coisa em comum entre as vítimas e a minha família, embora remota. Nessas horas, é fatal traduzir o que acontece em termos pessoais.

Meu neto Tiago tem a mesma idade da maioria das vítimas, 21 para 22 anos. É "baladeiro", como todas as vítimas. Estuda no interior (no caso dele em São Carlos, São Paulo), como praticamente todas as vítimas.

Não é nem mais nem menos responsável que qualquer um dos jovens que estavam no inferno.

Mais: sou capaz de apostar que frequenta locais com os mesmos problemas de segurança que foram encontrados na boate Kiss. Sou também capaz de apostar que incentivaria qualquer banda que estivesse se apresentando num desses locais a soltar alguma "bengala".

Os jovens se sentem imortais. E é natural e até conveniente que seja assim. O problema é que seus pais e seus avôs achamos que os jovens são "morríveis" demais.

No Brasil, até são mesmo, vítimas de uma violência que supera qualquer padrão civilizatório mínimo.

Talvez por isso surja a tentação fácil de atribuir ao nosso subdesenvolvimento institucional a tragédia santa-mariense. Que ele existe, é óbvio. Que possa ter contribuído para a tragédia, é bem possível.

Mas a TV espanhola incumbiu-se na noite de domingo de desfazer qualquer hipótese de exclusividade "terceiro-mundista" na história, ao rememorar tragédias similares na própria Espanha, nos EUA e no Reino Unido, para não falar da Argentina.

Ao mostrar cenas de Dilma Rousseff visitando Santa Maria e chorando, desfez também os comentários -inevitáveis em situações do gênero- de que era demagogia, hipocrisia ou algo parecido. A presidente fez o que tinha que fazer, com digna sobriedade.

A tragédia de Santa Maria me trouxe à memória a frase que ouvi de José Aníbal, hoje secretário de Energia do governo paulista, quando perdeu o filho em um acidente no litoral: "A perda de um filho é a dor definitiva".

É essa dor que devem estar sentindo os pais das vítimas. Não há nada que possa diminuí-la. 
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* Colunista da Folha
Fonte: Folha on line, 29/01/2013
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A psicologia da tragédia

Hélio Schwartsman*

O roteiro é conhecido. Após uma tragédia como a de Santa Maria, a vontade de agir é irrefreável. Nas próximas semanas, Estados e municípios atualizarão suas normas de segurança anti-incêndio e apertarão a fiscalização sobre todo tipo de estabelecimento.

Trata-se, é claro, de um efeito transitório. Com o tempo, o ímpeto vigilante arrefece e as coisas voltam mais ou menos ao que eram antes. E não adianta muito maldizer a leniência das autoridades brasileiras. Ainda que em diferentes graus, o fenômeno é universal e tem origem nos mecanismos pelos quais percebemos o perigo. A pergunta é se devemos aceitar essa abordagem intuitiva ou se seria preferível buscar uma visão mais racional, recorrendo à análise de risco e a especialistas antes de agir.

Há aqui duas visões respeitáveis e difíceis de conciliar. Paul Slovic, talvez a maior autoridade do mundo em psicologia do risco, é um ferrenho defensor do senso comum. Diz que especialistas padecem dos mesmos vieses das pessoas comuns. Só são mais eficientes ao justificar suas preferências. A própria noção de risco objetivo é uma ficção. Devemos aproveitar casos de comoção motivados por incêndios, enchentes etc. para melhorar o marco regulatório. O progresso vem entre episódios de pânico.

Outra sumidade na área, Cass Sunstein, tem um projeto mais iluminista. Ele acha que especialistas têm algo a ensinar e que apenas reagir às notícias de jornal pode causar mais mal do que bem. Um exemplo: o medo insensato do terrorismo pode fazer com que muitos troquem o mais seguro transporte aéreo por longas e perigosas viagens de carro, gerando mortes desnecessárias.

Eu pendo mais para Sunstein. O problema, no fundo, é a arquitetura de nossos cérebros. Quando lidamos com riscos que não fazem parte de nosso dia a dia, ou agimos como se eles não existissem ou como se fossem uma sentença de morte. O mais realista meio-termo desaparece.
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* Colunista da Folha de São Paulo
Fonte: Folha on line, 29/01/2013
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Contra o medo.

Entrevista com Marc Augé

A realidade em que vivemos é muitas vezes reduzida a um "emaranhado indistinto e confuso de medos". Um emaranhado que ameaça nos paralisar e nos impedir de viver, mas que Marc Augé tenta pacientemente desenrolar no seu novo livro, Les Nouvelles Peurs (Ed. Payot, 92 páginas).

A reportagem é de Fabio Gambaro, publicada no jornal La Repubblica, 28-01-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Para o antropólogo francês, que há anos se concentra nas análises das transformações e das contradições do mundo contemporâneo, os medos econômicos e as discriminações sociais, as violências políticas e os desvios tecnológicos, os cataclismos naturais e as ameaças criminosas acabam muitas vezes se sobrepondo e se confundindo, amplificando-se mutuamente, produzindo pânico e angústia nos indivíduos.

"Naturalmente, todos esses medos não estão diretamente relacionados uns com os outros, mas na vida cotidiana, muitas vezes, eles nos parecem exatamente isso", explica o autor de Um etnólogo no metrô, Não lugares e Où est passé l'avenir? [O que aconteceu com o futuro?].

"As mídias evocam, sem solução de continuidade, o risco de um cataclismo, um atentado terrorista, o aumento do desemprego e o massacre inexplicável de um louco. São realidades independentes, mas todas juntas, em um telejornal, ganham corpo. A justaposição cria um efeito de contaminação que as amplifica e as simplifica ao mesmo tempo, dando origem a um único medo global, difuso e indistinto. Consequentemente, quando evocamos uma delas, de fato, é como se evocássemos todas as outras, o que é indubitavelmente um elemento de novidade".

Eis a entrevista.

No passado, os medos eram mais isolados, definíveis e locais?

Provavelmente, sim. Nos séculos passados, não faltaram os grandes medos, mas que muitas vezes estavam ligados a fatores e a contextos bem específicos. Ou eram medos muito mais universais, como por exemplo o medo da morte. No passado, além disso, não se sabia nada do que acontecia longe de nós, enquanto hoje sabemos tudo o que acontece em todos os cantos do planeta. Se um louco mata crianças em uma escola norte-americana, somos imediatamente informados como se tivesse acontecido na nossa casa. Consequentemente, tememos pelos nossos filhos.

Em suma, tudo o que acontece longe diz respeito a nós e nos aterroriza como se fosse perto. O sistema de informação cria uma forma de medo nova, mais evasiva e mais abstrata. Portanto, mais difícil de combater. No entanto, o fato de ser mais abstrata não significa que não tenha efeitos concretos, produzindo nos indivíduos um terror paralisante. Como acontece com as novas inquietações planetárias, que são a dimensão obscura e ameaçadora da globalização. Dominadas pela ideia de que o que diz respeito a alguns acaba, mais cedo ou mais tarde, envolvendo todos os outros, as catástrofes nucleares, as epidemias, mas também o terrorismo ou as ameaças do sistema financeiro assumem os contornos quase apocalípticos.

"No fundo, se nos séculos passados tinha-se 
medo da morte, sobretudo, 
hoje tem-se mais medo da vida."


Esse emaranhado de medos heterogêneos é o pano de fundo permanente das nossas vidas?

Em certo sentido, sim. O medo desceu novamente sobre a terra e ao mesmo tempo se generalizou. Um sinal desse temor difuso é o sucesso de um livro como Indignai-vos!, de Stéphane Hessel. A indignação, de fato, é a forma sublime do medo. Nesse caso, as palavras de um velho sábio – uma figura bastante tradicional e, portanto, tranquilizadora – conseguem dar um conteúdo preciso em termos sociopolíticos aos medos indistintos de um grande número de pessoas. É por isso que o livro tem tanto sucesso. A nostalgia por certos valores do passado, que ganha forma nas páginas de Hessel, deve ser interpretada como um grito de revolta com relação ao presente. No fundo, se nos séculos passados tinha-se medo da morte, sobretudo, hoje tem-se mais medo da vida.

Por quê?

Os alertas econômicos, ecológicos e sanitários, mas também a violência ou o terrorismo estão aqui e agora. Geram uma angústia cotidiana e imediata que ocupa todo o nosso horizonte, impedindo-nos de nos projetarmos mais à frente. Na época clássica, justamente porque as pessoas tinham medo da morte, estoicismo e epicurismo tentavam elaborar reflexões capazes de nos consolar. Hoje, essas formas de consolação filosófica não funcionam mais. Muitos dos medos que nos assombram não são novos em si mesmos. Novo, porém, é o seu modo de fazer sistema e a sua percepção. No passado, uma vez que os medos eram percebidos como locais e concretos, tinha-se a impressão de poder fazer algo para preveni-los. Hoje, ao invés, quanto mais os medos se tornam um emaranhado inextrincável, mais tem-se a impressão de que é impossível intervir sobre as problemáticas que os alimentam. A sensação de impotência é um dos elementos constitutivos dos novos medos.

"Uma vez, sonhava-se em derrubar o sistema; 
hoje, espera-se apenas que ele 
não desmorone definitivamente 
para não ser suas vítimas."

Isso vale, por exemplo, para a percepção da crise econômica. É isso?

Com efeito, diante da crise econômica, parece-nos que não há soluções eficazes. A crise é percebida como inevitável e irrefreável. Daí os medos do desemprego, do rebaixamento social e da pobreza, que, por outro lado, caminham lado a lado com o terror de um sistema que parece avançar de maneira inercial e fora de qualquer controle. No fundo, teme-se a incompetência e a inconsistência daqueles que deveriam governar o sistema. E, naturalmente, tudo isso implica um certo fatalismo, que produz batalhas apenas defensivas. Uma vez, sonhava-se em derrubar o sistema; hoje, espera-se apenas que ele não desmorone definitivamente para não ser suas vítimas.

Também há os medos produzidos pela ciência e pela tecnologia...

Tradicionalmente, os medos nascem da ignorância. Às vezes, porém, o conhecimento também pode nos angustiar, como ocorre às vezes com a inovação técnico-científica. Diversas descobertas da ciência nos dão medo, do nuclear à clonagem. Hoje, apesar do entusiasmo pelas novas tecnologias, o futuro parece prefigurar um mundo de incógnitas, razão pela qual preferimos não nos projetar demais em um futuro percebido mais como ameaça do que como esperança. Esse desaparecimento do amanhã como horizonte operável aumenta inevitavelmente a ansiedade no presente.

Há um modo para evitar esse conjunto de medos?

Mais do que as ameaças concretas, estamos paralisados pela superstição de que elas estão presentes na nossa vida todas ao mesmo tempo, misturadas e confusas. Portanto, é preciso sermos capaz de desenrolar o emaranhado, isolando-as e analisando-as singularmente. Só assim será possível desativá-las. Assim, é preciso uma atitude ativa. O medo global que foge do controle da razão, de fato, parece agir mais sobre aqueles que se colocam em uma posição de passividade diante da realidade. Quem age e intervém têm cada vez menos temor do que quem sofre passivamente. 

  "Esse desaparecimento do amanhã como horizonte operável aumenta inevitavelmente
 a ansiedade no presente."

Nesse sentido, a educação e a instrução podem nos ajudar. O conhecimento pode transformar a angústia em curiosidade, o que, a meu ver, é o primeiro passo para se livrar dela. Sem esquecer que, se é verdade que o medo produz regressão, ela também pode se tornar um fator de progresso, já que, uma vez superada a paralisia, ele nos leva a buscar soluções para seguir em frente.

Podemos nos acostumar com o medo e conviver com ele?

Isso ocorre frequentemente, pois o temor faz parte da nossa paisagem cotidiana, modificando as nossas vidas e os nossos comportamentos. Mas a vida deve continuar, por isso sempre acabamos nos adaptando. Mas é uma vida mutilada. Por isso, acredito que é sempre melhor tentar nos desfazer dos medos, desmontando os seus mecanismos. E esse é o motivo pelo qual escrevi esse livro.
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Fonte: IHU on line, 29/01/2013

Despudorada e gananciosa como mulher de lupanar, a imprensa consegue turbinar a dor provocada pela morte

(*) Ucho Haddad

 
A morte é um ato inevitável no palco da vida. O último deles. Todos sabem disso, mas preferimos fingir desconhecimento por causa da dor causada pela ausência. É melhor assim, pois do contrário a vida perderia a graça, seria tomada pela contínua preocupação com o fim.
Disse o poeta e astrólogo romano Marcus Manilius: “Começamos a morrer no momento em que nascemos, e o fim é o desfecho do início”. Manilius tinha razão. O fim é a cortina do prelúdio, é o fim de um começo sem fim.

O tempo é o senhor da razão. Transmuta-se em verdade. O problema maior é encará-la, porque por vezes ela é maior que a nossa capacidade de suportar, de compreender, de aceitar. Algumas verdades sempre ecoarão como mentiras dentro de cada um. Há quem garanta que o tempo cicatriza as úlceras da alma, cura os arranhões do coração. Pode ser, mas não tenho certeza. Creio que o tempo se incumbe de colocar pensamentos e sentimentos complexos, dolorosos e mais doloridos, em um compartimento equidistante da razão e da emoção. Mas é um serviço sem garantia eterna. Em algum momento, mesmo que por curto tempo, o pensamento volta e causa uma revolução.

Eis o que faz da imperfeição humana algo interessante e, muitas, vezes, prazeroso. Somos feitos também de sentimentos. Algumas pessoas entram e saem das nossas vidas como o abrir e fechar da porta de um “saloon” de faroeste. Algumas entram porque queremos, ma saem sem que saibamos a razão. Algumas entram e ficam, deixando lembranças, ensinamentos, saudades. Há as que entram nas nossas vidas e as levamos para sempre, até o outro lado da vida, para a eternidade. Se é que isso de fato existe. O importante é que essas pessoas, as que entram e levamos, ficam de maneira especial, em lugar especial dentro de nós.

A involução do ser humano patrocinou, com o passar do tempo, a banalização da morte. Como nominei um dos meus tantos artigos, a morte é um espetáculo midiático. Os comunicadores encontraram nesse mórbido nicho uma incansável cornucópia. Afinal, o calvário alheio funciona como o éter que anestesia a dor e os problemas daqueles que alimentam esse tipo de negócio. E essa fórmula covarde e milagreira precisa ser vendida aos bolhões. Um dia, esses serão o anestésico da próxima leva de desumanos. A vida é assim, é cíclica. É com a morte que a vida aciona a sua essência ciclotímica. 

Em tempos outros, alguém inventou que a vida do ser humano tinha um prazo máximo de validade. Cem anos. Quem fosse antes era alvo de uma frase quase lapidar: “morreu tão cedo!”. Não se morre cedo ou tarde, apenas morre-se. A dolorosa linha do tempo será de responsabilidade dos que ficaram. Esses definirão se foi cedo ou tarde. Nunca é tarde, por mais que a razão nos sussurre o oposto. Essa invenção que surgiu do nada ganhou força e foi ficando. Tanto é assim, que quando alguém ultrapassa a casa dos cem anos a comemoração é maior. Dependo do grau de notabilidade do aniversariante, o centenário vira manchete, entra para o livro dos recordes.

Não importa se a morte ocorre aos 20 ou aos 100. É morte e quem fica sofre. O sofrimento tende a mergulhar em um processo de auto-absorção, mas o período para que isso ocorra depende de cada um, da forma de reagir e de enfrentar a realidade. Certas pessoas não morrem, apenas saem de cena. Continuam no palco do nosso imaginário, nas coxias das nossas lembranças, nos bastidores do nosso pensamento.

Contudo, há um detalhe no cenário de morte que a faz ainda mais dolorida e difícil de administrar. A forma como ela ocorre. E é por isso que insisto em criticar o sensacionalismo midiático que tomou conta da tragédia ocorrida em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, assim como em outras tantas que marcaram a história. 

Há mortes que são aguardadas, o que não as tornam menos duras e difíceis para os que ficam. Mas a cicatrização da dor é mais célere, talvez menos vagarosa. Há mortes inesperadas, que ocorrem do nada e sem explicação. Como alguém que dorme e não acorda. Quem fica “só” precisa encarar a morte como uma realidade inevitável e administrar a dor que ela provoca. 

A morte que ocorre no vácuo de uma tragédia é diferente. Traz na receita da dor um ingrediente a mais, teimoso, disposto a ficar incomodando durante muito tempo, talvez durante a vida toda, até chegar a nossa vez. Qual é esse ingrediente? Imaginar como tudo aconteceu. É o movimento natural do pensamento de quem perdeu uma pessoa querida.

Quem está noticiando o fato quer saber do ineditismo, da exclusividade, do furo de reportagem, dos índices de audiência, o quanto o sensacionalismo renderá em termos financeiros. Não se pensa em momento algum na dor de quem fica. Na dor que fica. Para ser mais claro, cito como exemplo a reportagem feita dentro da boate que foi consumida pelo fogo em Santa Maria e tirou a vida de 231 pessoas, na maioria jovens.

O que essas imagens sórdidas, exibidas como troféu, podem acrescentar em termos jornalísticos na história de um veículo de comunicação, no currículo de um jornalista ou repórter? Nada, absolutamente nada. O que podem as imagens subtrair daqueles que perderam seus familiares na tragédia? Muito! Elas tiram o sono, o sossego da alma, o pouco que restou da alegria de viver, a dignidade daqueles que ficaram. Dos que esperaram um retorno que não aconteceu. 

Situação idêntica ocorreu nos acidentes da Gol, da TAM e da Air France. Para que serviram as imagens feitas na selva brasileira, no aeroporto da capital paulista, nas águas do Atlântico? Serviram para deixar dentro de cada um que perdeu alguém querido um oceano de dúvidas, um matagal de conjecturas, que jamais terão um pouso seguro no rasar da mente. 

Por certo alguém me acusará de falso pudor, mas hei de não me incomodar com ataques. Entre as tantas críticas que recebi de desafetos profissionais, saqueadores da honra alheia, a de não ter diploma universitário, e por isso não poder exercer o jornalismo, foi uma das mais banais. Questionados, alguns detratores responderam que só o banco da faculdade é capaz de ensinar como atuar e se comportar como um profissional da notícia. Que dentro do canudo que se recebe no final do curso vem, além do diploma, importantes lições de ética. Mentira! As reportagens que foram levadas ao ar a partir de Santa Maria provaram o contrário. As imagens macabras não deixaram dúvidas sobre isso.

Ética não se aprende sentado no banco da escola. Conquista-se no berço, no ventre materno, vem no DNA, desenvolve-se no seio familiar. Bom senso não se compra no armazém da esquina mais próxima. Coerência não está disponível nas prateleiras dos supermercados com uma infinidade de sabores e cores. A diferença está entre transformar-se em jornalista e nascer jornalista. Pode parecer pouco, mas não é. Quem nasce jornalista traz o ofício incrustado na alma. Quem transforma-se em jornalista escora a profissão no sindicato pelego da categoria, que dá ao incauto e soberbo um número rebuscado, como se fosse mais uma vítima do holocausto da imprensa.

Entre ofício e profissão há uma monumental distância. Jornalismo é meu ofício. E eu nasci jornalista. É por isso que respeito a dor alheia e me recuso a embarcar no sensacionalismo barato e chicaneiro, que serve apenas e tão somente para entupir os cofres dos veículos de comunicação e saquear a dignidade de quem sofre. Por sorte Deus me presenteou com a capacidade de escrever e me livrou da obrigação de gastar o suado dinheiro para desaprender o que um saudoso e humilde engraxate me ensinou.
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 * Escritor. Jornalista.
Fonte: http://ucho.info/despudorada-e-gananciosa-como-mulher-de-lupanar-parte-da-imprensa-consegue-turbinar-a-dor-provocada-pela-morte

Consumo e virtualização

                                                              João Duque* 
 

Segundo a brilhante e já clássica análise de Jean Baudrillard, a sociedade de consumo carateriza-se por um conjunto de mecanismos essencialmente sócio-psíquicos que transformam a realidade e os seus objetos em meros signos ou simulacros, com valor meramente conotativo num sistema de contínua permuta de puros significantes, sem referência a significados reais. Ou seja, em realidade não se trata de uma sociedade materialista, como vulgarmente se diz, centrada na aquisição de objetos materiais pelo seu valor material, mas de uma sociedade em que as necessidades de consumo são marcadas apenas e estritamente pelo significado do que se consome. E como esse significado, no interior do sistema de consumo, não depende do conteúdo real do que se consome – de ser um objeto com esta ou aquela qualidade, com esta ou aquela finalidade – mas do significado que o mecanismo publicitário lhe confere e implanta na mente dos consumidores, então os signos a consumir, que se transformam mesmo em necessidades prementes, são signos mais propriamente virtuais, simulados e, por isso, criados meramente no interior do sistema de consumo e não correspondendo a necessidades ou a relações verdadeiramente reais.

Citando longamente Baudrillard: “Fora do campo da sua função objetiva, em que é insubstituível, e no exterior da sua área de denotação, o objeto torna-se substituível de modo mais ou menos ilimitado no campo das conotações, onde assume valor de signo. Assim, a máquina de lavar a roupa serve de utensílio e funciona como elemento de conforto, de prestígio, etc. O campo do consumo é o que se nomeou em último lugar. No seu interior, todas as espécies de outros objetos podem substituir-se à máquina de lavar como elemento significativo. Tanto na lógica dos signos como na dos símbolos, os objetos deixam de estar ligados a uma função ou necessidade definida, precisamente porque correspondem a outra coisa, quer ela seja a lógica social quer a lógica do desejo, às quais servem de campo móvel e inconsciente de significação” . Já se vê, pois, que o valor de tudo reside apenas no seu significado – ou melhor, no seu «significante», já que se concentra no próprio ato de significar, e não numa realidade significada; poderíamos dizer, portanto, que estamos perante uma sociedade totalmente espiritualizada, em certo sentido gnóstica e radicalmente dualista, mais dualista que a doutrina platónica das ideias ; estamos no interior de uma cultura que parece separar ao extremo a res cogitans da res extensa, a ponto de ir perdendo progressivamente o contacto com o mundo real e corpóreo dos objetos materiais – e das pessoas também.

Ora é aqui que se manifesta o problema na sua maior envergadura. Sendo todos os objetos – e as pessoas – meros signos ou significantes, por isso permutáveis ilimitadamente uns pelos outros, todas as realidades valem, de modo perfeitamente igual, apenas como algo a consumir e pelo seu significado de consumo. E porque tudo vale de igual forma, numa visão do mundo marcada apenas pelo mecanismo do consumo, tudo se torna igual. Eliminam-se, assim todas as distinções entre objetos, entre estes e as pessoas, e entre as pessoas. A diferença específica de cada um, que na conceção clássica marca a sua essência e a sua definição, assim como a sua identidade própria e dignidade pessoal, é anulada pela recondução de tudo à total identidade consumista. Uma obra de arte torna-se um objeto perfeitamente igual a qualquer detergente – diferindo dele apenas como signo a consumir, ou seja em realidade não diferindo, o que pode significar que, em determinadas circunstâncias, seja existencial e até «ontologicamente» mais exaltado o detergente...

E este não vale menos que qualquer pessoa. Estas, por seu turno, não são propriamente pessoas, mas consumidores – ou, noutros casos, também objetos de consumo – todos iguais, portanto sem individualidade, identidade ou personalidade próprias. Assumem apenas um lugar conforme o seu significado no sistema do consumo. Este pretende, paradoxalmente, dar a entender que o centro do seu mundo é cada indivíduo, nas suas necessidades e desejos mais individuais. Só que isso acontece em relação a todos os indivíduos; isto é, todos são considerados igualmente o centro do universo. Este, por ter um número ilimitado de centros, não possui nenhum centro, a não ser o próprio universo do consumo, que em realidade vive centrado em si mesmo, sem estar centrado em nenhum indivíduo – nem sequer nos vendedores ou proprietários das grandes cadeias de mercados.

Nesta situação, somos levados a concluir que “o consumo surge como conduta ativa e coletiva, como moral e coação, como instituição. Compõe todo um sistema de valores, com tudo o que este termo implica enquanto função de integração do grupo e de controlo social. A sociedade de consumo é ainda a sociedade de aprendizagem do consumo e de iniciação social ao consumo” , com os seus ritos e os seus mitos, como a peregrinação aos mercados, a leitura dos folhetos publicitários, os concursos, os cartões de crédito, etc.

O consumo tornou-se, assim, a gramática da nossa linguagem, o «jogo de linguagem» que determina a cultura atual. E os valores do consumo povoaram a «ética» da atualidade. Cada um deve, segundo essa ética e para ser bom cidadão, empenhar-se em consumir o máximo que puder. Só assim mantém em vigor a própria lógica do consumo – e afirma a sua qualidade ética de participante fiel dessa lógica. Esgotando-se nessa linguagem ética, será inútil tentar convencê-lo de outras responsabilidades. Porque a linguagem do consumo é a linguagem da interminável sedução. No dizer do conhecido Gilles Lipovetsky, “longe de se circunscrever às relações interpessoais, a sedução tornou-se o processo geral que tende a regular o consumo, as organizações, a informação, a educação, os costumes. Toda a vida das sociedades contemporâneas é doravante governada por uma nova estratégia que destrona o primado das relações de produção em proveito de uma apoteose das relações de sedução” .

Sedução que se encontra, irónica ou paradoxalmente, ao serviço do sistema e não tanto ao serviço de cada sujeito, mesmo que o pretenda dar a entender, simulando que cada vez acentua mais a possibilidade de livre escolha, frente a uma cada vez maior oferta de possibilidades. É certo que as antigas coações, políticas e ideológicas, de classe, da própria lei, perderam o seu vigor e agora cada consumidor se encontra entregue a si próprio, à sua livre opção, no meio de um mar de ofertas. Mas o mar, pelo facto de ser muito vasto, quase interminável, não é menos fatal no que toca à capacidade de engolir quem nele mergulha. Ou seja, em realidade a aparente infinitude de possibilidades, que permitem existências individuais à lista, reduzem a realidade ao esquema rígido e monolítico do consumo, como linguagem unívoca e absoluta de um mundo que pretende aparentar ser plural e aberto à diferença individual. Citando mais uma vez Baudrillard, “a circulação, a compra, a venda, a apropriação de bens e de objeto/signos diferenciados constituem hoje a nossa linguagem e o nosso código, por cujo intermédio toda a sociedade comunica e fala. Tal é a estrutura do consumo, a sua língua, em relação à qual as necessidades e os prazeres individuais não passam de efeitos de palavra” .

Ora é neste campo da linguagem ou da comunicação que, ainda dentro da cultura do consumo, assume um papel central o mundo dos chamados mass media, em especial a televisão e os novos multimédia. Aqui, a virtualização inaugurada pelo consumo dá um importante passo adiante, acabando por se instaurar de forma absoluta.
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* DUQUE, João, Cultura Contemporânea e Cristianismo - UC Editora, Lisboa 2004, 113-135
Fonte:  http://www.cnal.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=144&Itemid=335
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