Segundo
a brilhante e já clássica análise de Jean Baudrillard, a sociedade de
consumo carateriza-se por um conjunto de mecanismos essencialmente
sócio-psíquicos que transformam a realidade e os seus objetos em meros
signos ou simulacros, com valor meramente conotativo num sistema de
contínua permuta de puros significantes, sem referência a significados
reais. Ou seja, em realidade não se trata de uma sociedade materialista,
como vulgarmente se diz, centrada na aquisição de objetos materiais
pelo seu valor material, mas de uma sociedade em que as necessidades de
consumo são marcadas apenas e estritamente pelo significado do que se
consome. E como esse significado, no interior do sistema de consumo, não
depende do conteúdo real do que se consome – de ser um objeto com esta
ou aquela qualidade, com esta ou aquela finalidade – mas do significado
que o mecanismo publicitário lhe confere e implanta na mente dos
consumidores, então os signos a consumir, que se transformam mesmo em
necessidades prementes, são signos mais propriamente virtuais, simulados
e, por isso, criados meramente no interior do sistema de consumo e não
correspondendo a necessidades ou a relações verdadeiramente reais.
Citando longamente Baudrillard: “Fora do campo da sua função objetiva, em que é insubstituível, e no exterior da sua área de denotação, o objeto torna-se substituível de modo mais ou menos ilimitado no campo das conotações, onde assume valor de signo. Assim, a máquina de lavar a roupa serve de utensílio e funciona como elemento de conforto, de prestígio, etc. O campo do consumo é o que se nomeou em último lugar. No seu interior, todas as espécies de outros objetos podem substituir-se à máquina de lavar como elemento significativo. Tanto na lógica dos signos como na dos símbolos, os objetos deixam de estar ligados a uma função ou necessidade definida, precisamente porque correspondem a outra coisa, quer ela seja a lógica social quer a lógica do desejo, às quais servem de campo móvel e inconsciente de significação” . Já se vê, pois, que o valor de tudo reside apenas no seu significado – ou melhor, no seu «significante», já que se concentra no próprio ato de significar, e não numa realidade significada; poderíamos dizer, portanto, que estamos perante uma sociedade totalmente espiritualizada, em certo sentido gnóstica e radicalmente dualista, mais dualista que a doutrina platónica das ideias ; estamos no interior de uma cultura que parece separar ao extremo a res cogitans da res extensa, a ponto de ir perdendo progressivamente o contacto com o mundo real e corpóreo dos objetos materiais – e das pessoas também.
Ora é aqui que se manifesta o problema na sua maior envergadura. Sendo todos os objetos – e as pessoas – meros signos ou significantes, por isso permutáveis ilimitadamente uns pelos outros, todas as realidades valem, de modo perfeitamente igual, apenas como algo a consumir e pelo seu significado de consumo. E porque tudo vale de igual forma, numa visão do mundo marcada apenas pelo mecanismo do consumo, tudo se torna igual. Eliminam-se, assim todas as distinções entre objetos, entre estes e as pessoas, e entre as pessoas. A diferença específica de cada um, que na conceção clássica marca a sua essência e a sua definição, assim como a sua identidade própria e dignidade pessoal, é anulada pela recondução de tudo à total identidade consumista. Uma obra de arte torna-se um objeto perfeitamente igual a qualquer detergente – diferindo dele apenas como signo a consumir, ou seja em realidade não diferindo, o que pode significar que, em determinadas circunstâncias, seja existencial e até «ontologicamente» mais exaltado o detergente...
E este não vale menos que qualquer pessoa. Estas, por seu turno, não são propriamente pessoas, mas consumidores – ou, noutros casos, também objetos de consumo – todos iguais, portanto sem individualidade, identidade ou personalidade próprias. Assumem apenas um lugar conforme o seu significado no sistema do consumo. Este pretende, paradoxalmente, dar a entender que o centro do seu mundo é cada indivíduo, nas suas necessidades e desejos mais individuais. Só que isso acontece em relação a todos os indivíduos; isto é, todos são considerados igualmente o centro do universo. Este, por ter um número ilimitado de centros, não possui nenhum centro, a não ser o próprio universo do consumo, que em realidade vive centrado em si mesmo, sem estar centrado em nenhum indivíduo – nem sequer nos vendedores ou proprietários das grandes cadeias de mercados.
Nesta situação, somos levados a concluir que “o consumo surge como conduta ativa e coletiva, como moral e coação, como instituição. Compõe todo um sistema de valores, com tudo o que este termo implica enquanto função de integração do grupo e de controlo social. A sociedade de consumo é ainda a sociedade de aprendizagem do consumo e de iniciação social ao consumo” , com os seus ritos e os seus mitos, como a peregrinação aos mercados, a leitura dos folhetos publicitários, os concursos, os cartões de crédito, etc.
O consumo tornou-se, assim, a gramática da nossa linguagem, o «jogo de linguagem» que determina a cultura atual. E os valores do consumo povoaram a «ética» da atualidade. Cada um deve, segundo essa ética e para ser bom cidadão, empenhar-se em consumir o máximo que puder. Só assim mantém em vigor a própria lógica do consumo – e afirma a sua qualidade ética de participante fiel dessa lógica. Esgotando-se nessa linguagem ética, será inútil tentar convencê-lo de outras responsabilidades. Porque a linguagem do consumo é a linguagem da interminável sedução. No dizer do conhecido Gilles Lipovetsky, “longe de se circunscrever às relações interpessoais, a sedução tornou-se o processo geral que tende a regular o consumo, as organizações, a informação, a educação, os costumes. Toda a vida das sociedades contemporâneas é doravante governada por uma nova estratégia que destrona o primado das relações de produção em proveito de uma apoteose das relações de sedução” .
Sedução que se encontra, irónica ou paradoxalmente, ao serviço do sistema e não tanto ao serviço de cada sujeito, mesmo que o pretenda dar a entender, simulando que cada vez acentua mais a possibilidade de livre escolha, frente a uma cada vez maior oferta de possibilidades. É certo que as antigas coações, políticas e ideológicas, de classe, da própria lei, perderam o seu vigor e agora cada consumidor se encontra entregue a si próprio, à sua livre opção, no meio de um mar de ofertas. Mas o mar, pelo facto de ser muito vasto, quase interminável, não é menos fatal no que toca à capacidade de engolir quem nele mergulha. Ou seja, em realidade a aparente infinitude de possibilidades, que permitem existências individuais à lista, reduzem a realidade ao esquema rígido e monolítico do consumo, como linguagem unívoca e absoluta de um mundo que pretende aparentar ser plural e aberto à diferença individual. Citando mais uma vez Baudrillard, “a circulação, a compra, a venda, a apropriação de bens e de objeto/signos diferenciados constituem hoje a nossa linguagem e o nosso código, por cujo intermédio toda a sociedade comunica e fala. Tal é a estrutura do consumo, a sua língua, em relação à qual as necessidades e os prazeres individuais não passam de efeitos de palavra” .
Ora é neste campo da linguagem ou da comunicação que, ainda dentro da cultura do consumo, assume um papel central o mundo dos chamados mass media, em especial a televisão e os novos multimédia. Aqui, a virtualização inaugurada pelo consumo dá um importante passo adiante, acabando por se instaurar de forma absoluta.
Citando longamente Baudrillard: “Fora do campo da sua função objetiva, em que é insubstituível, e no exterior da sua área de denotação, o objeto torna-se substituível de modo mais ou menos ilimitado no campo das conotações, onde assume valor de signo. Assim, a máquina de lavar a roupa serve de utensílio e funciona como elemento de conforto, de prestígio, etc. O campo do consumo é o que se nomeou em último lugar. No seu interior, todas as espécies de outros objetos podem substituir-se à máquina de lavar como elemento significativo. Tanto na lógica dos signos como na dos símbolos, os objetos deixam de estar ligados a uma função ou necessidade definida, precisamente porque correspondem a outra coisa, quer ela seja a lógica social quer a lógica do desejo, às quais servem de campo móvel e inconsciente de significação” . Já se vê, pois, que o valor de tudo reside apenas no seu significado – ou melhor, no seu «significante», já que se concentra no próprio ato de significar, e não numa realidade significada; poderíamos dizer, portanto, que estamos perante uma sociedade totalmente espiritualizada, em certo sentido gnóstica e radicalmente dualista, mais dualista que a doutrina platónica das ideias ; estamos no interior de uma cultura que parece separar ao extremo a res cogitans da res extensa, a ponto de ir perdendo progressivamente o contacto com o mundo real e corpóreo dos objetos materiais – e das pessoas também.
Ora é aqui que se manifesta o problema na sua maior envergadura. Sendo todos os objetos – e as pessoas – meros signos ou significantes, por isso permutáveis ilimitadamente uns pelos outros, todas as realidades valem, de modo perfeitamente igual, apenas como algo a consumir e pelo seu significado de consumo. E porque tudo vale de igual forma, numa visão do mundo marcada apenas pelo mecanismo do consumo, tudo se torna igual. Eliminam-se, assim todas as distinções entre objetos, entre estes e as pessoas, e entre as pessoas. A diferença específica de cada um, que na conceção clássica marca a sua essência e a sua definição, assim como a sua identidade própria e dignidade pessoal, é anulada pela recondução de tudo à total identidade consumista. Uma obra de arte torna-se um objeto perfeitamente igual a qualquer detergente – diferindo dele apenas como signo a consumir, ou seja em realidade não diferindo, o que pode significar que, em determinadas circunstâncias, seja existencial e até «ontologicamente» mais exaltado o detergente...
E este não vale menos que qualquer pessoa. Estas, por seu turno, não são propriamente pessoas, mas consumidores – ou, noutros casos, também objetos de consumo – todos iguais, portanto sem individualidade, identidade ou personalidade próprias. Assumem apenas um lugar conforme o seu significado no sistema do consumo. Este pretende, paradoxalmente, dar a entender que o centro do seu mundo é cada indivíduo, nas suas necessidades e desejos mais individuais. Só que isso acontece em relação a todos os indivíduos; isto é, todos são considerados igualmente o centro do universo. Este, por ter um número ilimitado de centros, não possui nenhum centro, a não ser o próprio universo do consumo, que em realidade vive centrado em si mesmo, sem estar centrado em nenhum indivíduo – nem sequer nos vendedores ou proprietários das grandes cadeias de mercados.
Nesta situação, somos levados a concluir que “o consumo surge como conduta ativa e coletiva, como moral e coação, como instituição. Compõe todo um sistema de valores, com tudo o que este termo implica enquanto função de integração do grupo e de controlo social. A sociedade de consumo é ainda a sociedade de aprendizagem do consumo e de iniciação social ao consumo” , com os seus ritos e os seus mitos, como a peregrinação aos mercados, a leitura dos folhetos publicitários, os concursos, os cartões de crédito, etc.
O consumo tornou-se, assim, a gramática da nossa linguagem, o «jogo de linguagem» que determina a cultura atual. E os valores do consumo povoaram a «ética» da atualidade. Cada um deve, segundo essa ética e para ser bom cidadão, empenhar-se em consumir o máximo que puder. Só assim mantém em vigor a própria lógica do consumo – e afirma a sua qualidade ética de participante fiel dessa lógica. Esgotando-se nessa linguagem ética, será inútil tentar convencê-lo de outras responsabilidades. Porque a linguagem do consumo é a linguagem da interminável sedução. No dizer do conhecido Gilles Lipovetsky, “longe de se circunscrever às relações interpessoais, a sedução tornou-se o processo geral que tende a regular o consumo, as organizações, a informação, a educação, os costumes. Toda a vida das sociedades contemporâneas é doravante governada por uma nova estratégia que destrona o primado das relações de produção em proveito de uma apoteose das relações de sedução” .
Sedução que se encontra, irónica ou paradoxalmente, ao serviço do sistema e não tanto ao serviço de cada sujeito, mesmo que o pretenda dar a entender, simulando que cada vez acentua mais a possibilidade de livre escolha, frente a uma cada vez maior oferta de possibilidades. É certo que as antigas coações, políticas e ideológicas, de classe, da própria lei, perderam o seu vigor e agora cada consumidor se encontra entregue a si próprio, à sua livre opção, no meio de um mar de ofertas. Mas o mar, pelo facto de ser muito vasto, quase interminável, não é menos fatal no que toca à capacidade de engolir quem nele mergulha. Ou seja, em realidade a aparente infinitude de possibilidades, que permitem existências individuais à lista, reduzem a realidade ao esquema rígido e monolítico do consumo, como linguagem unívoca e absoluta de um mundo que pretende aparentar ser plural e aberto à diferença individual. Citando mais uma vez Baudrillard, “a circulação, a compra, a venda, a apropriação de bens e de objeto/signos diferenciados constituem hoje a nossa linguagem e o nosso código, por cujo intermédio toda a sociedade comunica e fala. Tal é a estrutura do consumo, a sua língua, em relação à qual as necessidades e os prazeres individuais não passam de efeitos de palavra” .
Ora é neste campo da linguagem ou da comunicação que, ainda dentro da cultura do consumo, assume um papel central o mundo dos chamados mass media, em especial a televisão e os novos multimédia. Aqui, a virtualização inaugurada pelo consumo dá um importante passo adiante, acabando por se instaurar de forma absoluta.
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* DUQUE, João, Cultura Contemporânea e Cristianismo - UC Editora, Lisboa 2004, 113-135
Fonte: http://www.cnal.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=144&Itemid=335
Para ler o texto completo acesse: http://www.cnal.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=143&Itemid=334 - Site português.
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