sábado, 19 de janeiro de 2013

Profeta contra a vontade

Danubio Torres Fierro*
 
Onetti recusa a aceitar uma definitiva renúncia à fé - Arquivo/AE
 Arquivo/AE
Onetti recusa a aceitar uma definitiva renúncia à fé
 

Desde os primeiros textos, o escritor uruguaio Juan Carlos Onetti (1909-1994) notabilizou-se por antecipar o estado de espírito algo catastrofista que logo dominaria o imaginário coletivo de seu país

Ao evocar Juan Carlos Onetti, em Montevidéu, no início dos anos 1970, não é ele que assoma em primeiro lugar. Assoma Dolly, sua mulher, Dorotea Muhr, o "ignorado cachorro da fortuna" da dedicatória - tão pouco ortodoxa - da novela intitulada La Cara de la Desgracia. Eu a vejo, Dolly, num vestido negro de saia comprida, as pernas velozes em seus deslocamentos, e com o estojo de seu violino entre as mãos, no momento de entrar ou sair do Sodre, a sede da orquestra sinfônica nacional, ou girando entre as mesas de algum bar dos arredores onde paravam os melômanos depois dos concertos. Essa visão é de muitos anos atrás. Não é apenas a atualização da memória posta a trabalhar; ela implica, para quem escreve, e de um modo essencial, a imagem de um Uruguai determinado e fixo no tempo. E, desse país, não sobrou nada. O Sodre se incendiou e precisou de uma eternidade para ser reconstruído, Dolly está em Madri e Onetti morreu aos 84 anos. Por que Dolly em primeiro lugar? Mulher forte e simpática, de feições intensas, parecia dar voltas inesgotáveis e harmoniosas ao redor de Onetti, protegendo-o, acalmando-o, amando-o.

Certamente havia amor entre eles. Existe uma fotografia, que deve ser do fim dos anos 60, que é um testemunho de como eles eram unidos: Onetti a rodeia com o braço direito e recobre seu rosto com a mão, enquanto Dolly se recosta nele e perde seu olhar sofrido em um dos ângulos. Não frequentei a intimidade dos Onettis; no entanto, num país que ainda estava inteiro e era solidário, aberto à amizade, o vínculo com eles, embora escasso, foi cordial e afetuoso. Eu os vi juntos um par de ocasiões em seu apartamento na avenida Gonzalo Ramirez, na zona sul da cidade - e o lugar, de reputação algo duvidosa, era o adequado para o escritor Onetti -, e a ele eu visitei várias vezes em seu escritório de diretor de Artes e Letras da Intendência de Montevidéu, numa repartição com pouca luz e uma pesada escrivaninha de madeira em um dos cantos.

Por essas datas - 1970, 1971, 1972, 1973 -, Onetti começava a ser reconhecido e difundido (o selo venezuelano Monte Ávila e o argentino Corregidor publicam suas Novelas Cortas e seus Cuentos Completos, respectivamente, a Aguilar edita no México suas Obras Completas, aparece em Buenos Aires La Muerte y la Niña, ele é convidado à Espanha pelo então Instituto de Cultura Hispânica); por essas datas, também, a sociedade uruguaia precipita seu colapso psicológico e moral que desembocaria algum tempo depois num golpe de Estado. Encontrei Onetti pela última vez às vésperas do Natal de 73, recém-chegado de Madri; áspero, rabugento, ele me contou sua surpresa e sua lisonja pelo tratamento que lhe dispensaram os espanhóis, falou das ofertas "corruptas" - assim ele se expressou - que recebeu, e queixou-se de sua depressão de voltar, também do tempo e, claro, da má situação que o país atravessava.

Foi uma conversa com ares premonitórios. No início de 1974, Onetti foi preso por sua participação num júri de contos da revista Marcha (contra o qual havia manifestado publicamente sua divergência), encarcerado sozinho em uma cela e, depois de meses de prisão que incluíram seu internamento em um hospital para doentes mentais (o Etchepare, de sinistra memória), pôde mudar-se para a Espanha. Ali ele foi tratado com generosidade; o Instituto de Cooperação Ibero-americano o amparou, ele foi agraciado com o prêmio Cervantes e, talvez o melhor, exerceu uma generosa influência entre as novas gerações de escritores peninsulares. Não é exagerado afirmar que ele encontrou, nesse destino ultramarino que durou 30 anos, o que em sua idade madura seu país lhe negara obstinadamente: sossego, isolamento deliberado, segurança, venturosa gravitação artística.

II

Onetti me intimidava. Não que me inibissem a ironia, os gracejos e o ceticismo amaneirado, traços frequentes em seu caráter, mas que podiam, no trato pessoal, anular-se e ser substituídos por seus exatos contrários. Era que eu soube, desde cedo, desde que o li em minha adolescência, que nele encarnavam - eu diria que com talento viril, com energia máscula - o verdadeiro escritor e a verdadeira literatura e, ao mesmo tempo, e por consequência, o poder de intuição e síntese que caracteriza o verdadeiro artista. Ele foi uma das caras - um dos ícones - que adquiriria, em minha mitologia pessoal, a literatura. Daí que me impusesse um respeito e uma admiração que tinha dificuldade de articular de maneira adequada naquele tempo, mas que se manifestavam, radicalmente, no golpe emocional e estético que significava lê-lo. Ainda hoje, ao repassar suas páginas, sacode-me o mesmo estremecimento. Era - e é - um golpe duplamente dramático.

Em seus textos, em seus romances, e ainda mais em seus contos e novelas, falava (num sentido amplo) o ser do homem uruguaio no fracasso. Creio que qualquer leitor atento de Onetti sabe a que me refiro. Desde 1939, desde o surgimento de El Pozo (O Poço), Onetti representou e vaticinou o destino cabal do país chamado Uruguai: um destino sem destino, ao menos nesta otimista e boba aceitação geral que se tem do destino no mundo atual. Ele soube unir então, para empregar uma fórmula que convém neste contexto, a perspectiva regional e a universal. E, com respeito à primeira delas (muito uruguaia, apesar de carregar também o selo da Buenos Aires na qual morou por alguns anos) cabem algumas precisões que acredito interessantes. Sua visão sufocante e fatalista do Uruguai se expressou, desde uma data tão antiga como aquele 1939, em um olhar corrosivo para a sociedade uruguaia como projeto histórico, e em um sabotar, desde as profundezas psicológicas, dos hábitos, dos costumes e dos juízos e preconceitos que a configuravam. O Uruguai daqueles anos era novo, satisfeito, lustroso e se encaminhava para se converter num modelo de Welfare state; era um país pequeno-burguês, de classes médias mobilizadas e autossuficientes, um país que mediante a construção battlista (por um dos partidos políticos tradicionais, o Colorado, liderado pela linhagem da família Battle) se projetava moderno, exibia um modo de vida liberal e confiava na instrução pública ampliada que faria de seus cidadãos modelos de cultura. Era um país, enfim, que escamoteava o trauma de suas origens (uma criação da estratégia imperial britânica, entremeada com os restos do império espanhol e português) e sua incerteza geopolítica (o fato de estar situado entre o Brasil e a Argentina, vizinhos ziguezagueantes e poderosos).

O notável é que Onetti, que se tornou um visionário prematuro, tenha acertado, em El Pozo, em denunciar tanto o triunfalismo fácil (ou esta variável do triunfalismo que se chama voluntarismo) como em revelar o disfarce que o elevava e que, nesses trâmites, acertara pontualmente nos alvos nacionais mais vulneráveis. Ele se antecipou no estado de espírito catastrofista que, em pouco tempo, duas décadas depois apenas, dominaria o imaginário coletivo. E é notável que tenha sido assim porque nada nele, em Onetti, exala sociologia ou ideologia, e menos ainda profecia escatológica.

III

O Uruguai de Onetti é, desde El Pozo, não a negação, mas o reverso mais obscuro do Uruguai oficial, de classe média, mais ou menos rutilante. É um Uruguai aviltado, prostibular, de personagens descarados e cínicos por força de derrotados, com luz de inverno e pensões baratas, de redações de jornais indigentes e ruas decadentes. Um Uruguai desnaturado, carente de história e de linhagem que, a certa altura, se resume nestas palavras: "O que há por trás de nós? Um gaúcho, dois gaúchos, trinta e três gaúchos" - em alusão aos integrantes de uma gesta patriótica de libertação nacional do século 19.

Ali, então, nessa pequena obra, inaugura-se a narrativa uruguaia urbana e se cancela, numa braçada, a mitologia redentora nacional. Não tenho dúvidas de que essa versão sombria deve muito à distância que Onetti tomou do país ao morar na Argentina e que nela se mesclaram os rasgos e as experiências da sociedade portenha buenairense - tão singular em si mesma e a um só tempo tão familiar à uruguaia - até fazer de Santa María, o domínio privado onettiano, uma criação híbrida que responde tanto a uma como à outra margem do Rio da Prata. Mais notável, contudo, é que o diagnóstico histórico de Onetti e o da intra-história, que o constitui, tenham sido formados por um homem - insisto - não só descomprometido da política e da ideologia, mas que, em algum momento, esteve perto do batllismo (foi redator do diário colorado Acción, dedicou em 1961 seu romance El Astillero ao presidente Luis Battle Berres), artífice-chave da medula sociológica e política do país ao longo do século 20. A reflexão que se impõe é a de que Onetti não sofreu, em seus desenvolvimentos, uma desilusão de caráter político; ao registrar, no ritmo impassível de suas narrações, "a alma dos fatos", ele tropeçou - nada mais, nada menos - com um horizonte estreito e fechado no porvir.

IV

Há outra volta de parafuso, bastante peculiar, na ligação de Onetti com o país. O Uruguai, nação de características republicanas e tradição liberal que se traduzem no dogma constitucional da separação entre a Igreja e o Estado e num ensino laico estendido, foi dissolvendo em seu discurso histórico e institucional toda coloração religiosa e/ou cristã para acantonar-se em um agnosticismo convencido, altivo em sua militância positivista. Pois bem, em Onetti, nesse Onetti no qual a corrupção inata do material humano, somada à maldição do ser e à culpabilidade básica de existir é dominante, alenta aqui e ali um surdo pressentimento de forças de amor piedosas, a presença (ou a ausência, que no caso dá no mesmo) reverberante de Deus e talvez a recusa a aceitar a definitiva renúncia à fé.

Atrevo-me a dizer, não sem imprudência, que esse duplo vazio que Onetti desmascara - o de um ser humano entregue a um destino absurdo e insensato, o de um país, ou um lugar, em agonia de despejo - abriga um pathos metafísico que queria tecer um diálogo encaminhado para falar com as perdidas fontes religiosas ultraterrenas. O tom introspectivo, o emprego do monólogo interior, o minucioso registro da consciência e do rastreio da interioridade são recursos - expedientes retorcidos, ritos de passagem - que abundam nesse sentido fundam, no interior de uma escritura laica, um desejo de transcendência de estirpe escatológica. Até aqui convém chegar, cauteloso, a esta questão.
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* DANUBIO TORRES FIERRO É ESCRITOR, CRÍTICO LITERÁRIO E EDITOR DA FONDO
TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK
Fonte:  http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,profeta-contra-a-vontade,986070,0.htm 18/01/2013

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