Danubio Torres Fierro*
Arquivo/AE
Onetti recusa a aceitar uma definitiva renúncia à fé
Desde os primeiros textos, o escritor uruguaio Juan Carlos Onetti (1909-1994) notabilizou-se por antecipar o estado de espírito algo catastrofista que logo dominaria o imaginário coletivo de seu país
Ao evocar Juan Carlos Onetti, em Montevidéu, no início
dos anos 1970, não é ele que assoma em primeiro lugar. Assoma Dolly, sua
mulher, Dorotea Muhr, o "ignorado cachorro da fortuna" da dedicatória -
tão pouco ortodoxa - da novela intitulada La Cara de la Desgracia.
Eu a vejo, Dolly, num vestido negro de saia comprida, as pernas velozes
em seus deslocamentos, e com o estojo de seu violino entre as mãos, no
momento de entrar ou sair do Sodre, a sede da orquestra sinfônica
nacional, ou girando entre as mesas de algum bar dos arredores onde
paravam os melômanos depois dos concertos. Essa visão é de muitos anos
atrás. Não é apenas a atualização da memória posta a trabalhar; ela
implica, para quem escreve, e de um modo essencial, a imagem de um
Uruguai determinado e fixo no tempo. E, desse país, não sobrou nada. O
Sodre se incendiou e precisou de uma eternidade para ser reconstruído,
Dolly está em Madri e Onetti morreu aos 84 anos. Por que Dolly em
primeiro lugar? Mulher forte e simpática, de feições intensas, parecia
dar voltas inesgotáveis e harmoniosas ao redor de Onetti, protegendo-o,
acalmando-o, amando-o.
Certamente havia amor entre eles. Existe uma fotografia, que deve ser
do fim dos anos 60, que é um testemunho de como eles eram unidos:
Onetti a rodeia com o braço direito e recobre seu rosto com a mão,
enquanto Dolly se recosta nele e perde seu olhar sofrido em um dos
ângulos. Não frequentei a intimidade dos Onettis; no entanto, num país
que ainda estava inteiro e era solidário, aberto à amizade, o vínculo
com eles, embora escasso, foi cordial e afetuoso. Eu os vi juntos um par
de ocasiões em seu apartamento na avenida Gonzalo Ramirez, na zona sul
da cidade - e o lugar, de reputação algo duvidosa, era o adequado para o
escritor Onetti -, e a ele eu visitei várias vezes em seu escritório de
diretor de Artes e Letras da Intendência de Montevidéu, numa repartição
com pouca luz e uma pesada escrivaninha de madeira em um dos cantos.
Por essas datas - 1970, 1971, 1972, 1973 -, Onetti começava a ser
reconhecido e difundido (o selo venezuelano Monte Ávila e o argentino
Corregidor publicam suas Novelas Cortas e seus Cuentos Completos, respectivamente, a Aguilar edita no México suas Obras Completas, aparece em Buenos Aires La Muerte y la Niña,
ele é convidado à Espanha pelo então Instituto de Cultura Hispânica);
por essas datas, também, a sociedade uruguaia precipita seu colapso
psicológico e moral que desembocaria algum tempo depois num golpe de
Estado. Encontrei Onetti pela última vez às vésperas do Natal de 73,
recém-chegado de Madri; áspero, rabugento, ele me contou sua surpresa e
sua lisonja pelo tratamento que lhe dispensaram os espanhóis, falou das
ofertas "corruptas" - assim ele se expressou - que recebeu, e queixou-se
de sua depressão de voltar, também do tempo e, claro, da má situação
que o país atravessava.
Foi uma conversa com ares premonitórios. No início de 1974, Onetti foi preso por sua participação num júri de contos da revista Marcha
(contra o qual havia manifestado publicamente sua divergência),
encarcerado sozinho em uma cela e, depois de meses de prisão que
incluíram seu internamento em um hospital para doentes mentais (o
Etchepare, de sinistra memória), pôde mudar-se para a Espanha. Ali ele
foi tratado com generosidade; o Instituto de Cooperação Ibero-americano o
amparou, ele foi agraciado com o prêmio Cervantes e, talvez o melhor,
exerceu uma generosa influência entre as novas gerações de escritores
peninsulares. Não é exagerado afirmar que ele encontrou, nesse destino
ultramarino que durou 30 anos, o que em sua idade madura seu país lhe
negara obstinadamente: sossego, isolamento deliberado, segurança,
venturosa gravitação artística.
II
Onetti me intimidava. Não que me inibissem a ironia, os gracejos e o
ceticismo amaneirado, traços frequentes em seu caráter, mas que podiam,
no trato pessoal, anular-se e ser substituídos por seus exatos
contrários. Era que eu soube, desde cedo, desde que o li em minha
adolescência, que nele encarnavam - eu diria que com talento viril, com
energia máscula - o verdadeiro escritor e a verdadeira literatura e, ao
mesmo tempo, e por consequência, o poder de intuição e síntese que
caracteriza o verdadeiro artista. Ele foi uma das caras - um dos ícones -
que adquiriria, em minha mitologia pessoal, a literatura. Daí que me
impusesse um respeito e uma admiração que tinha dificuldade de articular
de maneira adequada naquele tempo, mas que se manifestavam,
radicalmente, no golpe emocional e estético que significava lê-lo. Ainda
hoje, ao repassar suas páginas, sacode-me o mesmo estremecimento. Era -
e é - um golpe duplamente dramático.
Em seus textos, em seus romances, e ainda mais em seus contos e
novelas, falava (num sentido amplo) o ser do homem uruguaio no fracasso.
Creio que qualquer leitor atento de Onetti sabe a que me refiro. Desde
1939, desde o surgimento de El Pozo (O Poço), Onetti
representou e vaticinou o destino cabal do país chamado Uruguai: um
destino sem destino, ao menos nesta otimista e boba aceitação geral que
se tem do destino no mundo atual. Ele soube unir então, para empregar
uma fórmula que convém neste contexto, a perspectiva regional e a
universal. E, com respeito à primeira delas (muito uruguaia, apesar de
carregar também o selo da Buenos Aires na qual morou por alguns anos)
cabem algumas precisões que acredito interessantes. Sua visão sufocante e
fatalista do Uruguai se expressou, desde uma data tão antiga como
aquele 1939, em um olhar corrosivo para a sociedade uruguaia como
projeto histórico, e em um sabotar, desde as profundezas psicológicas,
dos hábitos, dos costumes e dos juízos e preconceitos que a
configuravam. O Uruguai daqueles anos era novo, satisfeito, lustroso e
se encaminhava para se converter num modelo de Welfare state; era um
país pequeno-burguês, de classes médias mobilizadas e autossuficientes,
um país que mediante a construção battlista (por um dos partidos
políticos tradicionais, o Colorado, liderado pela linhagem da família
Battle) se projetava moderno, exibia um modo de vida liberal e confiava
na instrução pública ampliada que faria de seus cidadãos modelos de
cultura. Era um país, enfim, que escamoteava o trauma de suas origens
(uma criação da estratégia imperial britânica, entremeada com os restos
do império espanhol e português) e sua incerteza geopolítica (o fato de
estar situado entre o Brasil e a Argentina, vizinhos ziguezagueantes e
poderosos).
O notável é que Onetti, que se tornou um visionário prematuro, tenha acertado, em El Pozo,
em denunciar tanto o triunfalismo fácil (ou esta variável do
triunfalismo que se chama voluntarismo) como em revelar o disfarce que o
elevava e que, nesses trâmites, acertara pontualmente nos alvos
nacionais mais vulneráveis. Ele se antecipou no estado de espírito
catastrofista que, em pouco tempo, duas décadas depois apenas, dominaria
o imaginário coletivo. E é notável que tenha sido assim porque nada
nele, em Onetti, exala sociologia ou ideologia, e menos ainda profecia
escatológica.
III
O Uruguai de Onetti é, desde El Pozo, não a negação, mas o
reverso mais obscuro do Uruguai oficial, de classe média, mais ou menos
rutilante. É um Uruguai aviltado, prostibular, de personagens descarados
e cínicos por força de derrotados, com luz de inverno e pensões
baratas, de redações de jornais indigentes e ruas decadentes. Um Uruguai
desnaturado, carente de história e de linhagem que, a certa altura, se
resume nestas palavras: "O que há por trás de nós? Um gaúcho, dois
gaúchos, trinta e três gaúchos" - em alusão aos integrantes de uma gesta
patriótica de libertação nacional do século 19.
Ali, então, nessa pequena obra, inaugura-se a narrativa uruguaia
urbana e se cancela, numa braçada, a mitologia redentora nacional. Não
tenho dúvidas de que essa versão sombria deve muito à distância que
Onetti tomou do país ao morar na Argentina e que nela se mesclaram os
rasgos e as experiências da sociedade portenha buenairense - tão
singular em si mesma e a um só tempo tão familiar à uruguaia - até fazer
de Santa María, o domínio privado onettiano, uma criação híbrida que
responde tanto a uma como à outra margem do Rio da Prata. Mais notável,
contudo, é que o diagnóstico histórico de Onetti e o da intra-história,
que o constitui, tenham sido formados por um homem - insisto - não só
descomprometido da política e da ideologia, mas que, em algum momento,
esteve perto do batllismo (foi redator do diário colorado Acción, dedicou em 1961 seu romance El Astillero ao
presidente Luis Battle Berres), artífice-chave da medula sociológica e
política do país ao longo do século 20. A reflexão que se impõe é a de
que Onetti não sofreu, em seus desenvolvimentos, uma desilusão de
caráter político; ao registrar, no ritmo impassível de suas narrações,
"a alma dos fatos", ele tropeçou - nada mais, nada menos - com um
horizonte estreito e fechado no porvir.
IV
Há outra volta de parafuso, bastante peculiar, na ligação de Onetti
com o país. O Uruguai, nação de características republicanas e tradição
liberal que se traduzem no dogma constitucional da separação entre a
Igreja e o Estado e num ensino laico estendido, foi dissolvendo em seu
discurso histórico e institucional toda coloração religiosa e/ou cristã
para acantonar-se em um agnosticismo convencido, altivo em sua
militância positivista. Pois bem, em Onetti, nesse Onetti no qual a
corrupção inata do material humano, somada à maldição do ser e à
culpabilidade básica de existir é dominante, alenta aqui e ali um surdo
pressentimento de forças de amor piedosas, a presença (ou a ausência,
que no caso dá no mesmo) reverberante de Deus e talvez a recusa a
aceitar a definitiva renúncia à fé.
Atrevo-me a dizer, não sem imprudência, que esse duplo vazio que
Onetti desmascara - o de um ser humano entregue a um destino absurdo e
insensato, o de um país, ou um lugar, em agonia de despejo - abriga um
pathos metafísico que queria tecer um diálogo encaminhado para falar com
as perdidas fontes religiosas ultraterrenas. O tom introspectivo, o
emprego do monólogo interior, o minucioso registro da consciência e do
rastreio da interioridade são recursos - expedientes retorcidos, ritos
de passagem - que abundam nesse sentido fundam, no interior de uma
escritura laica, um desejo de transcendência de estirpe escatológica.
Até aqui convém chegar, cauteloso, a esta questão.
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* DANUBIO TORRES FIERRO É ESCRITOR, CRÍTICO LITERÁRIO E EDITOR DA FONDO
TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,profeta-contra-a-vontade,986070,0.htm 18/01/2013
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