quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Um estranho mundo

Roberto Damatta*
Como um membro desse triste clube dos que perderam subitamente seus filhos, chorei ao tomar conhecimento da tragédia ocorrida na boate de Santa Maria.

Sei bem o que é ver um filho vivo e, horas depois, providenciar o absurdo de seu enterro e túmulo. As providências burocráticas garantem a morte do descendente saudável cujo fim havia apenas sido notificado. Nada pior nem mais inacreditável. O absurdo - que normalmente leva ao banal - como fonte permanente de dor conduz ao patético que ninguém engole por inteiro.

Dessa tragédia de Santa Maria fica em mim o paradoxo de um estranho novo mundo. Esses moços vivem num universo desconhecido da minha geração. No meu tempo, o mundo acontecia por meio de encontros pessoais. A gente via o outro em pessoa. Marcava encontros e falava diretamente com os amigos. Usávamos às vezes o bilhete, raramente o telefone. Tudo era realizado por meio da presença física e do toque, geralmente em meio a uma "turma". Ficar sozinho era raro e o cinema escuro ajudava a inventar uma individualidade inexistente e anormal - e por isso encantada.

Hoje, o rotineiro é a individualidade. Cada qual tem sua marca e suas mil fotografias. Jamais uma geração foi tão fotografada quanto essa que testemunha-se a si mesma em todos os lugares e a toda hora. Mas, se a singularidade e a comunicação pessoal são a norma, compensa-se isso pelos "megaeventos". Nos encontros públicos, temos os palcos com as bandas e uma plateia de milhares que, em bandos, dissolvem seus egos por meio do ídolo que anima coletividades possessas que, aos berros, cantam e se movimentam em conjunto, mimetizando o artista. Vai-se do individualíssimo ao coletivíssimo emoldurado pelo megaevento que não se satisfaz em mostrar, tocar e cantar, como era o caso da minha geração, mas que conduz a um participar no qual tudo muda de foco. Fica complicado saber quem é artista e quem é plateia, isso para não falar das mais diversas pirotecnias que, descubro horrorizado, fazem parte dos eventos.

Estranho mundo no qual se passa do hiper-individual e do superparticular (cada qual no seu fone falando sozinho mas em grupo) para o coletivo (todos como uma pessoa), vivendo uma supercoleticidade esmagadora.

Seria isso um sintoma desse desejo de morte (a última e inescrutável fronteira) que os esportes de risco representam? Hoje se morre junto sem saber. Hoje, a morte tem testemunhos. E o que ela nos diz é a mensagem banal de sempre. Fomos. Não somos mais. A morte é o mais puro coletivo e o mais tenebroso anonimato. Os ditadores a conhecem bem e dela ainda vivem.
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* Antropólogo. Escritor. Colunista do Estadão.
Imagem da Internet
Fonte:  http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,30/01/2013

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