segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Como se faz para morrer?

 Flavio José Kanter*
 
Mais de 60% das pessoas que morreram no Brasil em 2010 tinham mais de 70 anos. Em 1970, só 30% haviam chegado aos 70. Em 40 anos, passamos da prevalência de mortes por deficiências nutricionais e por infecções para as causadas por doenças crônico-degenerativas. Sabemos lidar com o fim da vida? Vivemos como se fosse para sempre, negamos nossa mortalidade, prolongamos vidas a qualquer preço.

O psicanalista Marcello Blaya costuma lembrar a diferença entre velhice e decrepitude. Ser velho é bom quando as perdas não impedem atividade física, intelectual e emocional satisfatórias. Decrépitos são os que tiveram perdas que limitam ou impedem essas funções. Estes merecem não ter a vida prolongada artificialmente.

Acompanho pessoas terminais; muitas vezes, vejo a morte ser bloqueada com o uso da tecnologia. Acho desejável morrer em casa, se isso não causar sofrimento. Exemplifico: um senhor com quase cem anos tinha perdas neurológicas que o impediam de falar mais que um murmúrio, totalmente dependente, não parecia reconhecer nem os filhos. Numa reunião de médicos e familiares concluiu-se que ele não seria hospitalizado e que tudo seria feito visando a seu conforto. Uma madrugada, o paciente teve dificuldade para respirar e o cuidador chamou um serviço de emergência médica.

Os filhos encontraram o pai já em atendimento na ambulância. Neste ponto, não havia volta, fomos para o hospital. A vida, que já não era vida para aquela pessoa, foi prolongada. Outro paciente, que já esgotara todos os tratamentos de câncer, sentia muita dor. Junto com a família, decidi hospitalizá-lo para garantir analgesia mais eficiente. Não iríamos usar recursos intensivos nem artificiais. Ele ficaria num quarto, junto de sua família. Durante a internação, recebi vários telefonemas da equipe do hospital, pois mesmo com o registro claro do que fora decidido, queriam adotar medidas radicais para manter a vida. É penoso reconhecer que há situações nas quais não há mérito em evitar o que já é irreversível.

O Dr. Bernard Lown diz em seu livro A Arte Perdida de Curar: “Quando a morte é inevitável e resulta de uma doença crônica incurável, amiúde é mais bondoso não barrá-la com medidas heroicas, porém guiar sua aproximação com sensatez e compaixão”.

Quando a vida se esvai, o papel da equipe de saúde deixa de ser curar e ajudar a viver, passa a ser de aliviar, facilitar, consolar, preservar a dignidade.
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*Médico
Fonte: ZH on line, 14/01/2013
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