MARTA GLEICH*
A bordo de uma caminhonete off road, os intrépidos
jornalistas Paulo Germano e Bruno Alencastro percorrem desde dezembro o
litoral de Punta del Este a Santa Catarina, pescando uma história aqui,
outra ali. Publicam tudo no blog zerohora.com/offroad. Algumas das
reportagens vão para a Revista de Verão e para a cobertura de verão no
jornal.
Na terça-feira, publicaram no blog um texto sobre Aílton Borraz, que vive “onde Judas perdeu as botas: bem no meio dos 150 quilômetros entre Cassino e Hermenegildo”. Cuida das árvores da Florestadora Palmares. Chega a passar dois meses sem ver ninguém. Sem telefone. Sem sinal de TV.
– No verão, às vezes aparece alguém. Mas no inverno é muito triste: o cara olha para um lado, para o outro e dá vontade de... sei lá – diz Aílton.
Assim que o texto foi postado no blog, alguns leitores enviaram comentários cobrando do jornal e de Paulo Germano uma ajuda ao personagem da história. Por que ZH não instala uma TV via satélite para ajudar Aílton a passar o tempo?
Barbara Nickel, editora de Redes Sociais, me chamou a atenção: “Sempre surgem esses comentários. Por que o repórter não vai lá e ajuda, além de escrever a história?”
Boa discussão.
Qual é o papel do jornalista e do jornal?
Aílton não está em uma situação-limite: sua casa tem luz, graças a uma placa de energia solar, é um homem bem informado porque ouve rádio, e a florestadora leva a ele com frequência ranchos de supermercado. Zero Hora deveria ajudá-lo?
No ano passado, ao publicarmos a reportagem Filho da Rua, em que a repórter Letícia Duarte acompanhou durante três anos a trajetória de Felipe, desde suas primeiras escapadas de casa até se tornar dependente de crack e infrator, os leitores nos cobraram: por que o jornal não fez nada? Por que não providenciou internação, apoio social? Letícia Duarte comenta:
– Nos anos em que acompanhei a história de Felipe, enfrentei muitos dilemas éticos. Uma das coisas mais difíceis era ver a família dele morando na Vila do Esqueleto, num casebre feito com tábuas recolhidas do lixo, sem água... Tive muita vontade de ajudá-los, mas sabia que qualquer ajuda material seria moeda de troca para comprar crack. Segurei meus impulsos, com a convicção de que a melhor contribuição era contar a história da família e ajudar a sociedade a entender o papel nocivo da esmola na vida de crianças de rua.
O jornalismo está recheado de casos que suscitam o dilema. Qual o papel do profissional diante de um fato que clama por sua ajuda? Ao comentar o assunto com editores, esta semana, dezenas de histórias surgiram. Um jornalista que evitou o afogamento de uma criança. Outro que pagou o enterro de um pobre. Mais um que, ao visitar um abrigo de crianças, recebeu o pedido desesperado de uma delas para ser adotada. O editor e correspondente internacional Rodrigo Lopes lembra de muitas situações dramáticas. Uma delas:
– No Haiti, em 2010, eu e o cinegrafista Fernando Rech estávamos em uma favela miserável após o terremoto que devastou o país. Uma multidão de crianças com fome cercou nosso carro. Decidimos dar um iogurte para um dos meninos, com a melhor das intenções. Nesse momento, iniciou-se uma briga pelo iogurte, com chutes e pontapés. Um dos meninos saiu muito machucado. Sem querer, iniciamos o problema que poderia ter acabado com uma morte.
Comparada a situações extremas, a história de Aílton é desproporcional, mas serve como uma circunstância para o debate ético sobre o papel do jornal ou do jornalista. Tente responder às seguintes perguntas: ao entrevistar uma pessoa pobre, o jornalista pode ou deve tirar dinheiro do bolso para ajudar? E se for uma pessoa não só pobre, mas com muita fome? E se a pessoa estiver subnutrida, quase desfalecendo, pode ou deve levá-la ao hospital? Até onde vai o lado profissional, o lado humano, a responsabilidade e onde tudo isso se mistura?
Um trecho do Guia de Ética e Autorregulamentação Jornalística do Grupo RBS ajuda a responder: “Independência e isenção não eximem o jornalista da condição de cidadão. Mesmo no exercício de atividades profissionais, o jornalista tem o dever de tentar impedir, se possível, a consumação de acidentes ou situações que ponham vidas em risco”.
O impulso de Rodrigo Lopes ao alcançar o iogurte para a criança é um gesto natural do ser humano e não pode ser condenado, mesmo que o papel maior dele no local fosse o de retratar a tragédia coletiva do Haiti. Você teria feito diferente?
Letícia precisou se disciplinar para resistir à tentação de ajudar Felipe, mas o tempo todo tentava se lembrar de seu papel maior, o de conscientizar a sociedade com uma reportagem de alto impacto. O relato de Paulo Germano sobre Aílton toca as pessoas, por tratar de uma história de solidão, mas sabemos não ser papel do jornal instalar uma TV via satélite em sua casa.
Aos jornalistas da Redação, cabe a reflexão diária, a cada pauta ou cobertura, sobre seus papéis como profissionais e como cidadãos. E, ao jornal como um todo, cabe despertar o debate e mostrar os fatos, para que a sociedade também repense seu papel e suas responsabilidades.
Na terça-feira, publicaram no blog um texto sobre Aílton Borraz, que vive “onde Judas perdeu as botas: bem no meio dos 150 quilômetros entre Cassino e Hermenegildo”. Cuida das árvores da Florestadora Palmares. Chega a passar dois meses sem ver ninguém. Sem telefone. Sem sinal de TV.
– No verão, às vezes aparece alguém. Mas no inverno é muito triste: o cara olha para um lado, para o outro e dá vontade de... sei lá – diz Aílton.
Assim que o texto foi postado no blog, alguns leitores enviaram comentários cobrando do jornal e de Paulo Germano uma ajuda ao personagem da história. Por que ZH não instala uma TV via satélite para ajudar Aílton a passar o tempo?
Barbara Nickel, editora de Redes Sociais, me chamou a atenção: “Sempre surgem esses comentários. Por que o repórter não vai lá e ajuda, além de escrever a história?”
Boa discussão.
Qual é o papel do jornalista e do jornal?
Aílton não está em uma situação-limite: sua casa tem luz, graças a uma placa de energia solar, é um homem bem informado porque ouve rádio, e a florestadora leva a ele com frequência ranchos de supermercado. Zero Hora deveria ajudá-lo?
No ano passado, ao publicarmos a reportagem Filho da Rua, em que a repórter Letícia Duarte acompanhou durante três anos a trajetória de Felipe, desde suas primeiras escapadas de casa até se tornar dependente de crack e infrator, os leitores nos cobraram: por que o jornal não fez nada? Por que não providenciou internação, apoio social? Letícia Duarte comenta:
– Nos anos em que acompanhei a história de Felipe, enfrentei muitos dilemas éticos. Uma das coisas mais difíceis era ver a família dele morando na Vila do Esqueleto, num casebre feito com tábuas recolhidas do lixo, sem água... Tive muita vontade de ajudá-los, mas sabia que qualquer ajuda material seria moeda de troca para comprar crack. Segurei meus impulsos, com a convicção de que a melhor contribuição era contar a história da família e ajudar a sociedade a entender o papel nocivo da esmola na vida de crianças de rua.
O jornalismo está recheado de casos que suscitam o dilema. Qual o papel do profissional diante de um fato que clama por sua ajuda? Ao comentar o assunto com editores, esta semana, dezenas de histórias surgiram. Um jornalista que evitou o afogamento de uma criança. Outro que pagou o enterro de um pobre. Mais um que, ao visitar um abrigo de crianças, recebeu o pedido desesperado de uma delas para ser adotada. O editor e correspondente internacional Rodrigo Lopes lembra de muitas situações dramáticas. Uma delas:
– No Haiti, em 2010, eu e o cinegrafista Fernando Rech estávamos em uma favela miserável após o terremoto que devastou o país. Uma multidão de crianças com fome cercou nosso carro. Decidimos dar um iogurte para um dos meninos, com a melhor das intenções. Nesse momento, iniciou-se uma briga pelo iogurte, com chutes e pontapés. Um dos meninos saiu muito machucado. Sem querer, iniciamos o problema que poderia ter acabado com uma morte.
Comparada a situações extremas, a história de Aílton é desproporcional, mas serve como uma circunstância para o debate ético sobre o papel do jornal ou do jornalista. Tente responder às seguintes perguntas: ao entrevistar uma pessoa pobre, o jornalista pode ou deve tirar dinheiro do bolso para ajudar? E se for uma pessoa não só pobre, mas com muita fome? E se a pessoa estiver subnutrida, quase desfalecendo, pode ou deve levá-la ao hospital? Até onde vai o lado profissional, o lado humano, a responsabilidade e onde tudo isso se mistura?
Um trecho do Guia de Ética e Autorregulamentação Jornalística do Grupo RBS ajuda a responder: “Independência e isenção não eximem o jornalista da condição de cidadão. Mesmo no exercício de atividades profissionais, o jornalista tem o dever de tentar impedir, se possível, a consumação de acidentes ou situações que ponham vidas em risco”.
O impulso de Rodrigo Lopes ao alcançar o iogurte para a criança é um gesto natural do ser humano e não pode ser condenado, mesmo que o papel maior dele no local fosse o de retratar a tragédia coletiva do Haiti. Você teria feito diferente?
Letícia precisou se disciplinar para resistir à tentação de ajudar Felipe, mas o tempo todo tentava se lembrar de seu papel maior, o de conscientizar a sociedade com uma reportagem de alto impacto. O relato de Paulo Germano sobre Aílton toca as pessoas, por tratar de uma história de solidão, mas sabemos não ser papel do jornal instalar uma TV via satélite em sua casa.
Aos jornalistas da Redação, cabe a reflexão diária, a cada pauta ou cobertura, sobre seus papéis como profissionais e como cidadãos. E, ao jornal como um todo, cabe despertar o debate e mostrar os fatos, para que a sociedade também repense seu papel e suas responsabilidades.
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* CARTA DA EDITORA
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/20/01/2013
Imagem da Internet
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