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Várias gerações de músicos brasileiros foram influenciadas por Smetak
Há um século nascia em Zurique o compositor e visionário Anton Walter Smetak, guru dos tropicalistas e mestre da música brasileira moderna
Cruzava as ruas de Salvador a bordo de uma velha motocicleta BMW
preta que ele chamava de "prostituta da Babilônia". Enrolava o próprio
cigarro artesanal, vestia roupas amassadas e tinha a fama de um
amalucado Professor Pardal. Exilado da barbárie nazista, o compositor,
músico, filósofo, poeta, artista plástico, cientista e dramaturgo suíço
Walter Smetak (1913-1984) adotou a indeterminação dos trópicos como
regra para um experimentalismo sonoro cujo alcance é, ainda hoje,
imenso.
"Falar sobre música é uma besteira, mas executá-la é loucura", dizia o
compositor. Este ano, celebra-se um século do seu nascimento em
Zurique, em 12 de fevereiro de 1913 (morreria na Salvador que consagrou
como moradia em 30 de maio de 1984), filho do músico Anton e da cigana
Frederica Smetak. Sua influência se reflete na música brasileira por
meio de gerações diferentes, de Tom Zé ao grupo Uakti, chegando até
Lucas Santtana.
Trabalhando num porão da faculdade, o que lhe valeu curioso apelido,
ele se tornou mestre e baliza dos tropicalistas. Caetano Veloso o
menciona de forma elíptica em uma música de 1972, Épico.
"Smetak, Smetak & Muzak & Smetak & Muzak & Smetak &
Muzak & Razão". Legou dezenas de livros, centenas de composições,
três peças teatrais. Nada do que produziu, em música, está disponível
comercialmente. Seu primeiro disco, Smetak, foi gravado em 1974. O segundo, Interregno,
em 1980. "Sou como a própria natureza, crio em abundância, presenteio
os homens e as mulheres, e prefiro não cobrar nada", disse ele.
"Concluí que era preferível me envolver com a desordem e a
liberalidade dos trópicos do que submeter-me às misérias europeias
semeadas por Adolf Hitler", afirmou ele, sobre a decisão de
estabelecer-se no Brasil.
Smetak não era um vanguardista temporão. Estava trabalhando em suas
revoluções em momento histórico simultâneo ao de diversos outros
expoentes da experimentação pelo mundo afora, como John Cage e Pierre
Boulez. No final dos anos 1940, em Paris, Pierre Schaeffer tinha
divulgado seus Études de Bruits (Estudos de Barulhos), uma
sinfonia eletrônica que consistia em chiados, ruídos e apitos de seis
locomotivas que ele tinha gravado na estação de Batignolles.
"A percepção audível do ser humano vai muito mais além do que a
ínfima parte que pode ser computada, tanto para os graves como para os
agudos", dizia Smetak. "A música deve representar o próprio silêncio,
mas não aquele silêncio que existe como ausência do som. Como não é
possível suprimir o silêncio, só a música pode substituí-lo", afirmava.
Um de seus mais afetuosos discípulos foi Gilberto Gil, que se lembra
de chamá-lo de Tak, Tak. Quando ministro, Gil visitou uma exposição do
artista e chegou a tocar um dos seus instrumentos. "Smetak me dava a
sensação de um misto de cientista louco e Papai Noel de província; misto
de chefe religioso severo e ameaçador, e velho manso conselheiro de
farta cabeleira branca e porta sempre aberta aos curiosos do Antique e
do Mistério", disse Gil.
"A obra de Smetak explora a curiosidade na arte, quando mostra tanto
esboços de novos instrumentos quanto esculturas que apenas sugerem
sons", disse em 2008 o músico Arto Lindsay, que foi curador de uma
mostra sobre o artista no Museu de Arte Moderna de Salvador.
A ida de Walter Smetak a Salvador deu-se num momento de rara ousadia
nas políticas de cultura brasileiras. Instados pelo reitor Edgard
Santos, a universidade federal da capital baiana tornou-se, nos anos
1950, polo de vanguarda cultural, abraçando as contribuições do
português Agostinho da Silva no Centro de Estudos Afro-Orientais; de
Eros Martim Gonçalves na Escola de Teatro; de Hans Joachim Koellreuter,
Smetak e Ernest Widmer no Seminário Livre de Música; e de Yanka Rudzka e
Rolf Gelewsky, na Escola de Dança.
Além destes, o esforço de avant-garde se consolidaria com nomes como
os da arquiteta italiana Lina Bo Bardi, o etnólogo francês Pierre
Verger, o artista plástico argentino Carybé, entre outros. "Claro que,
ao implantar um programa cultural de caráter tão vanguardista, Edgard
Santos ganhou adversários e desafetos a granel. Além da esquerda mais
populista, os próprios alunos das escolas ligadas às áreas científicas
reclamavam da suposta predileção do reitor por escolas de arte",
escreveu Carlos Calado em Tropicália, a História de uma Revolução Musical (Editora 34, 1997).
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Texto de Jotabê Medeiros
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,o-louco-do-porao,986022,0.htm 19/01/2013
* MARCO ANTÔNIO GUIMARÃES É COMPOSITOR E INTEGRANTE DO GRUPO UAKTI
'Entrei no porão e nunca mais saí dele'
*Marco Antônio Guimarães, Especial para o Estado
Quando cheguei a Salvador, em 1966, para estudar música
na escola da UFBA que na época tinha o belo nome de "Seminários Livres
de Música", não sabia da existência de Walter Smetak. Logo nos primeiros
dias, lembro que alguém me fez essa pergunta: "Você já conheceu o louco
do porão?". A curiosidade me fez descer a escada que levava à parte de
baixo do prédio. Era a oficina de Smetak. Ele estava trabalhando na
bancada em um instrumento quando entrei. Certamente percebendo meu olhar
de surpresa e encantamento ao ver a enorme quantidade de belos e
desconhecidos instrumentos musicais, disse para ficar à vontade e
percorrer a oficina para conhecer de perto cada um deles.
Depois conversamos um pouco e Smetak falou a respeito de alguns
instrumentos que, como ele percebeu, me deixaram encantado. Foi assim
nosso primeiro encontro e, durante os quatro anos que morei em Salvador,
passei a frequentar a oficina no porão regularmente.
Nessa época, Smetak estava trabalhando com a série de "instrumentos
coletivos" (cada um tocado por um grande número de pessoas) e tive a
oportunidade de participar de um concerto de apresentação desses novos
instrumentos. Meu saudoso professor Ernst Widmer, compositor e também
suíço de origem como Smetak, regeu um improviso coletivo em que vários
estudantes da escola tocavam aqueles maravilhosos instrumentos. Uma
experiência mágica que vou sempre lembrar.
Minha ideia, quando decidi estudar música, era me formar como regente
de orquestra e tocar um instrumento. Acabei estudando violoncelo, que
era o instrumento de Smetak, e me dedicando à composição. A influência
que recebi de Walter Smetak foi absolutamente fundamental para que,
alguns anos depois, já de volta a Belo Horizonte, eu iniciasse a criação
e construção de novos instrumentos musicais que foram a origem do Grupo
Uakti. A Bahia e Smetak me deram "régua e compasso", como disse
Gilberto Gil que, por sinal, também aparecia para visitar Smetak de vez
em quando. Eu o via chegar e descer direto ao porão.
---------------------* MARCO ANTÔNIO GUIMARÃES É COMPOSITOR E INTEGRANTE DO GRUPO UAKTI
Imagem: Vina: Instrumento de cordas com cabaça criado em 1969
Fonte: Estadão on line, 19/01/2013
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