Em festival literário em Cartagena, Nobel de Literatura critica 'entretenimento barato' e 'palhaçada nas artes'
Escritor peruano foi celebrado como rei na cidade-emblema da vida e obra do ex-amigo Gabriel García Márquez
Gigante de pedra, o Centro de Convenções de Cartagena, numa península na
saída da cidade histórica, estava tão cheio pouco antes da conferência
de Mario Vargas Llosa que parecia que ia afundar.
Uma hora antes da palestra, atração maior do Hay Festival Cartagena
2013, a fila se estendia até uma enorme escultura de dois pescadores, do
outro lado da rua.
O escritor peruano tem seu sorriso reproduzido em painéis eletrônicos,
cartazes e leques que sua editora distribuiu para combater os 34°C do
noroeste colombiano.
As portas do auditório Getsemaní são abertas e, com um senso de urgência
Fla-Flu, o público toma suas mais de 1.400 poltronas púrpuras. Mario,
como todos se referem a ele, ainda vai demorar a falar.
Antes há o senhor de gravata roxa falando sobre saídas de emergência
(são seis), a lânguida mestre de cerimônia anunciando em tom cartorial
que o Governo do Estado de Bolívar considera "o maestro Mario um dos
grandes escritores da história". E depois o governador (aplaudido) e o
prefeito (vaiadíssimo).
Em Vargas Llosa penduraram uma faixa como a de presidentes empossados e
afivelaram uma comenda. Deram-lhe o título de Hóspede de Honra e as
chaves da cidade, além de três diplomas em pergaminho. Há um novo rei
nessa cidade-emblema da vida e obra do ex-amigo de Mario, don Gabriel
García Márquez.
Quando por fim ouvimos a voz encorpada do autor, ela traz velhas
lembranças do Colégio Militar Leoncio Prado, em Lima. Não à toa. Nessas
vivências forjou seu primeiro romance, "A Cidade e os Cachorros", do
qual hoje se celebram (bastante) os 50 anos.
"A literatura me levou ao colégio militar e o colégio militar me levou à
literatura", sentencia o bom frasista Vargas Llosa, 76, acrescentando
que, assustado com as veleidades poéticas pouco viris do filho, seu pai
decidiu interná-lo ali para que "se curasse".
"A estratégia deu errado. Nunca escrevi tanto como no colégio militar.
Nunca li tanto. E ler foi a coisa mais importante que aprendi."
Já nessa época, descobriu três autores-bússola para sua ficção:
Flaubert, com a busca incansável pela palavra exata; Faulkner, que lhe
apontou como manipular vozes narrativas; e Sartre, que lhe mostrou como
as palavras promovem transformações.
"Foi a literatura que me levou
ao colégio militar e o colégio
militar
que me levou à literatura.
A estratégia de meu pai deu errado.
Nunca escrevi tanto como no colégio militar.
Nunca li tanto.
E ler foi a coisa mais importante
E ler foi a coisa mais importante
que aprendi na vida"
MARIO VARGAS LOLOSA
escritor, prêmio Nobel de Literatura
escritor, prêmio Nobel de Literatura
TRANSFORMAÇÕES
Sobre elas, as transformações, o escritor se ocupou na segunda parte da conferencia.
Vargas Llosa não anda contente com as mudanças. Em seu recente "A
Civilização do Espetáculo" (a ser lançado neste ano no Brasil pela
Alfaguara), trata do processo da "frivolização da cultura".
"Nas artes, a palhaçada chegou a termos grotescos, a ponto de museus
importantes pagarem centenas de milhões por um tubarão no formol",
sentencia, raivosamente.
A julgar pela fala de Vargas Llosa, o que parece faltar na cultura é justamente formol.
"Nada gera conformismo como o entretenimento barato. Podem dizer que a
cultura se democratizou, que deixou de ser elitista, mas é um processo
que gera conformismo." Este processo, diz ele, influencia até o sexo.
"A civilização e a cultura refinaram o ato sexual, lhe revestiram de uma
teatralidade. O erotismo é a desanimalização do sexo. Com o
desaparecimento de uma certa cultura, degrada-se o erotismo. Estamos nos
animalizando."
Antes de concluir, don Mario diz que terminou há pouco um romance: se
chamará "O Herói Discreto" e se passará no Peru contemporâneo. "Oxalá
este sobreviva 50 anos, como 'A Cidade e os Cachorros'", concluiu o rei
do Hay, para então colher minutos ininterruptos de aplausos.
Herta Müller virá ao Brasil para conferência
Foto da Internet: Herta Müller
DO ENVIADO ESPECIAL A CARTAGENA
De todos os presentes no Hay Festival Cartagena, ninguém parece mais
diametralmente distinta de Mario Vargas Llosa do que sua companheira de
Prêmio Nobel de Literatura, Herta Müller.
Se em sua ruidosa conferência o peruano tratou de temas "king size", como a defesa da cultura, a decadência da sociedade e os rumos da literatura, a escritora romena-alemã se ocupou do que há de mais individual e intimista.
Numa palestra no teatro colonial Heredia, Müller, 59, falou longamente sobre sua infância num povoado camponês da Romênia e de como as plantas foram suas babás.
"Meu pais trabalhavam no campo, não tinha irmãos nem ninguém para cuidar de mim, então passava a minha infância no jardim. Ficava olhando as plantas, indiferentes a minha presença, e pensava: sou feita de outro material."
Com uma fala repleta de pausas e silêncios ("Fui criada no silêncio"), os olhos azuis e melancólicos muitas vezes voltados para o chão, contou que comia as plantas "para ver se elas me aceitavam como uma delas".
No reino vegetal encontrava também seus brinquedos. "Eu pensava: esta planta vai se casar com esta outra. E esta vai sair para tomar chá."
Naturalmente, também suspeitava delas. Se sua vida e literatura são tatuadas pela experiência de ter crescido sob a áspera ditadura romena de Nicolae Ceaucescu (1918-1989), no jardim da sua infância já matutava a respeito: "Quando morria alguém do partido, via os cravos cobrindo o corpo e pensava: estas flores não têm caráter".
Nesta época, e até o fim da adolescência, diz Müller, ela mal sabia o que era literatura. "Em minha terra quase não havia livros. Eu tinha o sonho de ser cabeleireira."
Na saída do debate, Müller, que, como Vargas Llosa, não deu entrevistas, revelou à Folha que virá ao Brasil ainda neste ano, no ciclo Fronteiras do Pensamento. Antes disso, chega sua literatura: dois livros da autora estão saindo no país, o romance "Fera d'Alma" (Globo Livros) e a novela "O Homem É um Grande Faisão no Mundo" (Companhia das Letras).
(CEM)
-------------------- Se em sua ruidosa conferência o peruano tratou de temas "king size", como a defesa da cultura, a decadência da sociedade e os rumos da literatura, a escritora romena-alemã se ocupou do que há de mais individual e intimista.
Numa palestra no teatro colonial Heredia, Müller, 59, falou longamente sobre sua infância num povoado camponês da Romênia e de como as plantas foram suas babás.
"Meu pais trabalhavam no campo, não tinha irmãos nem ninguém para cuidar de mim, então passava a minha infância no jardim. Ficava olhando as plantas, indiferentes a minha presença, e pensava: sou feita de outro material."
Com uma fala repleta de pausas e silêncios ("Fui criada no silêncio"), os olhos azuis e melancólicos muitas vezes voltados para o chão, contou que comia as plantas "para ver se elas me aceitavam como uma delas".
No reino vegetal encontrava também seus brinquedos. "Eu pensava: esta planta vai se casar com esta outra. E esta vai sair para tomar chá."
Naturalmente, também suspeitava delas. Se sua vida e literatura são tatuadas pela experiência de ter crescido sob a áspera ditadura romena de Nicolae Ceaucescu (1918-1989), no jardim da sua infância já matutava a respeito: "Quando morria alguém do partido, via os cravos cobrindo o corpo e pensava: estas flores não têm caráter".
Nesta época, e até o fim da adolescência, diz Müller, ela mal sabia o que era literatura. "Em minha terra quase não havia livros. Eu tinha o sonho de ser cabeleireira."
Na saída do debate, Müller, que, como Vargas Llosa, não deu entrevistas, revelou à Folha que virá ao Brasil ainda neste ano, no ciclo Fronteiras do Pensamento. Antes disso, chega sua literatura: dois livros da autora estão saindo no país, o romance "Fera d'Alma" (Globo Livros) e a novela "O Homem É um Grande Faisão no Mundo" (Companhia das Letras).
(CEM)
Reportagem por CASSIANO ELEK MACHADOENVIADA ESPECIAL A CARTAGENA
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