sábado, 19 de janeiro de 2013

“Te quero... longe”. Desafios e limites do amor à distância

 
Hoje, “os amantes podem viver em diferentes países ou em diferentes continentes”. “Com a internet abre-se um mundo de possibilidades ilimitadas e também o horror das possibilidades ilimitadas”, advertem Ulrich Beck e Elisabeth Beck-Gerscheim ao tematizar o “amor à distância”, e assinalam o risco de que “o ‘oxalá estivesses aqui’ dos amantes a distância se converta em um ‘oxalá estivesses ali’”.

Ulrich Beck e Elisabeth Beck-Gerscheim são autores do livro Amor à distancia. Novas formas de vida na era global. Ed. Paidós, 2012, sem tradução para o português. O texto abaixo é um extrato do livro e está publicado no jornal argentino Página/12, 17-01-2013. A tradução é do Cepat.

Eis o texto.

O amor à distância caracteriza-se pela separação geográfica. Os amantes vivem a muitos quilômetros de distância um do outro, em diferentes países ou mesmo em diferentes continentes. Um dos traços distintivos da atual escolha de parceiro é que se ampliou enormemente o campo de possibilidades. O mundo das barreiras amorosas converteu-se no mundo das possibilidades amorosas. Em primeiro lugar, as barreiras sociais se permeabilizaram e os controles sociais se enfraqueceram. Outrora era a unidade familiar que regulava e orientava a escolha do parceiro com vistas à propriedade e ao status social. Em nossos dias, a unidade familiar – quando existe – perdeu grande parte de seu poder. Até mesmo a instituição da ama de companhia, a mulher a quem, na sua época, se encomendava a tarefa de zelar pela observância dos imperativos da decência e da posição social, desapareceu sem deixar rastro. Também o encontro dos amantes libertou-se das regras relativas à procedência que imperavam na assim chamada “boa sociedade”: as listas de convidados das classes altas já não se prendem estritamente à regra da procedência social. Surgiram campos de encontro – o trabalho, as associações, os ginásios – inteiramente mistos do ponto de vista social. Antes, na maioria das vezes, a vida se desenvolvia no marco da vizinhança no sentido amplo. Atualmente, o meio vital, o mundo da vida, abarca um espaço muito maior. Cursos de idiomas, viagens de trabalho, férias: a mobilidade de um local a outro, de um país a outro, há tempos faz parte da vida ordinária. Em consequência, o espaço de possíveis encontros entre pessoas se ampliou enormemente, e com isso, o de potenciais parceiros.

A isto se soma, como um novo espaço de encontro que ganha adeptos em grande velocidade, a internet. Os buscadores nos trazem diretamente em casa, melhor dito, ao computador, uma oferta mundial que se renova a cada minuto. Com a internet, as tentações se multiplicam ao infinito. Abre-se um mundo de possibilidades ilimitadas e também o horror das possibilidades ilimitadas. Os buscadores são causa, instrumento e resultado de uma busca que caminha para e trabalha na ampliação de si mesma. O imperativo imanente desta busca é a otimização. Quanto mais ampla for a oferta, maior será a tentação. Talvez o próximo "clic" me ofereça o candidato ideal. Assim que, continue "clicando"! Deve-se encontrar o melhor ou a melhor, mas nunca se encontra. “Não deixo de olhar quais novas mulheres ou interlocutoras interessantes e belas aparecem aí. Podes entrar todos os dias. Que vida poderiam me proporcionar as de hoje?”, confessa o romântico da maximização e o realista do virtual.

Onde estão aqueles que buscam amor? Encontram-se, sobretudo, no trabalho, depois no círculo de amizades, depois na internet, que ocupa o terceiro lugar, acima do clube, da discoteca, das férias ou do supermercado. Um estudo atual revela que, entre pessoas de entre 30 e 50 anos, um terço dos contatos que acabam em casamento é estabelecido através da internet. É uma tendência crescente.

O amor foi e continua sendo amor imaginado. Ele acontece na cabeça, e sabemos disso. O peculiar do amor através da internet está em que só acontece na cabeça. A internet modifica a condição grupal do amor. Torna possível, em primeiro lugar, a não presença dos envolvidos; em segundo lugar, o anonimato de seu contato. Com isso, em terceiro lugar, libera a imaginação. E, para terminar, pode impor o imperativo da otimização: “Antes de te prender para sempre, comprova que não há algo melhor”.

A ausência de corporeidade no amor à distância e o anonimato garantido pelo internet como ponto de encontro podem incrementar o romantismo da busca, mas também engendram desinibição. Já sabemos como se organiza e encena a busca de casais através da internet: hoje as agências mediadoras já não facilitam apenas dois ou três parceiros possíveis aos que buscam, mas centenas de milhares ou milhões de pessoas que estão agora conectadas e as quais se pode contatar agora mesmo, quantos contatos por hora estão acontecendo agora, quantos milhares de fotos foram postadas na internet durante a última hora. A busca de parceiro pela internet desvincula-se do espaço e do tempo. É possível acontecer fora da cidade, a qualquer hora. A fluidificação do espaço, fenômeno que se observa nas cidades, translada-se também para o campo. Os excessos da noite já não caracterizam apenas a vida noturna. As pessoas se encontram com maior número de pessoas, os rostos se sucedem ainda mais rapidamente. A internet implanta em todos a ideia de “possibilidades ilimitadas”. E também aquele que não procura um parceiro sexual ou amoroso vive seu mundo como na internet. Conhece as possibilidades. Sabe o que outros fazem. Tem imaginação.

Um amor “conventual”

Não é novidade apenas a multiplicação ao infinito das possibilidades de encontro entre pessoas. Com o amor à distância também muda o âmbito em que se desenrola o desejo amoroso, o que o amor significa para o desejo, o que pode e não pode, a sensualidade do amor, a relação entre amor, sexualidade, intimidade, a relação entre amor e vida cotidiana, amor e trabalho. Viver a variante geográfica do amor à distância significa crer na possibilidade de uma intimidade e afetividade intensas entre pessoas que durante longos períodos não podem manter relações sexuais. No amor mediado pelas tecnologias da comunicação, no amor por telefone ou pela internet, deve-se renunciar a muitas formas de sensualidade. Tem que prosseguir sem contato físico das mãos, da pele, dos lábios, sem um verdadeiro encontro dos olhares, sem que os implicados possam levar-se mutuamente ao êxtase do orgasmo. Fica a sensualidade da voz e da linguagem, do falar e do escutar, do ver e ser visto. O amor de contato pode ser ou tornar-se silencioso; ao contrário, o estímulo e suporte do amor à distância em sua variante geográfica reside única e exclusivamente na linguagem e no olhar. Funda, por isso, especiais oportunidades e, paralelamente, padece de uma especial fragilidade. A unidimensionalidade de seus recursos sensoriais pode significar vida breve, morte rápida. Em uma cultura como a ocidental, na qual o encontro físico imediato e o contato corporal desempenham um papel essencial no amor, o amor à distância dificilmente é sustentável a longo prazo. O lugar “puro” do amor à distância é a voz, o relato que tem notícia das paisagens de sentido interior do interlocutor e se adentra neles, com outras palavras, aquele que domina a arte da intimidade: tornar perceptível a proximidade na distância. Aqui, “arte” deve ser entendido no sentido literal da palavra. A intimidade da voz vive do intercâmbio do auto-retrato narrado em que o outro ou a outra se faz presente.

É, justamente, isso que quer dizer “modernidade reflexiva”: as consequências colaterais da modernização radicalizada corroem os fundamentos e as dicotomias institucionais, legais, políticas, morais e sociais da primeira modernização estado-nacional como algo óbvio e cotidiano. Às relações à distância se oferecem, por isso, a oportunidade de romper o silêncio sonoro das relações próximas. E se ambos dispõem de espaços para falar com o outro inteiramente reservados ao intercâmbio e à comunicação mútua, o amor à distância pode inclusive articular uma densidade e uma intensidade particulares. O fato de que outros sentidos não distraiam da conversa, concentrar-se inteiramente na força da linguagem e/ou da contemplação, possibilita que se abordem as principais perguntas relativas ao “tu e eu”.

Contudo, o amor à distância geográfica possui um caráter monacal, conventual. Permanece no abstrato, pois acontece nos correios eletrônicos, no Facebook, nos SMS e no Skype. O puro amor à distância, o “só” amor à distância, dificilmente é praticável para os que não são monges nem monjas. Para as pessoas normais têm que haver regularmente oásis de sensualidade direta que envolvem todos os sentidos, de “fartura de amor”. E para os outros momentos necessitam rituais e símbolos que recordam uma e outra vez, redescobrem, sustentam e afiançam o comum. Pode ser que o conceito de “intimidade a distância” soe muito romântico, mas é uma forma de romanticismo que se alimenta das sóbrias virtudes da regularidade, da confiança e do planejamento.

A intimidade a distância depende de acordos estáveis, da manutenção do vínculo interior (por exemplo, falar pelo Skype todas as tardes, ver-se a cada seis meses). E pode fracassar.

“Ilha dos Bem-aventurados”

Tanto o amor próximo como o distante têm seus propagandistas. Uns recomendam o amor à distância como terapia contra as decepções do amor de proximidade, outros louvam as virtudes do amor de proximidade contra as decepções do amor à distância. É inquestionável, contudo, que o amor à distância tem suas vantagens, especialmente quando os membros do casal o adaptam às suas necessidades e desejos. Há, inclusive, quem afirme que a proximidade não é mais que um mito. A proximidade amorosa desejada pelos amantes a distância – sustentam seus defensores – não fica asfixiada pela rotina da vida diária. Muita proximidade mata o amor. A distância mantém-no vivo. Exime os amantes das exigências e sobreexigências de ter que se amar sempre e explicitamente. Torna possível o impossível, concilia os opostos, proximidade e distância, vida própria e comum.

Estes diagnósticos encerram, sem dúvida, um núcleo de verdade: o amor à distância não descansa unicamente na separação entre amor e sexualidade, mas também entre amor e vida cotidiana. O amor à distância é como o sexo sem ter que lavar depois a roupa de cama, como comer sem lavar os pratos, como um tour de bicicleta sem suor nem dor nas pernas. Quem sentiria saudades disso?

Mas o amor à distância não é a receita da felicidade eterna, nem desloca seus cultivadores à Ilha dos Bem-aventurados, enquanto a maioria dos casais do nosso entorno se enlameia em suas rotinas. Não podem ignorar os perigos aos quais se expõem aqueles que querem se eximir da vida cotidiana. Por exemplo, que o auto-retrato não nos apresente a nós mesmos, mas uma versão corrigida da nossa pessoa. Ou, ao contrário, o perigo de transfigurar o companheiro, de elaborar uma imagem idealizada dele que não passaria pelo teste da realidade. Deste ponto de vista, amar a distância equivale a aprender a sonhar. O amor à distância é o amor de um eu festivo por um outro festivo, purificado da banalidade da vida cotidiana. Quando alguém não precisa se entender com seu companheiro nas normas relativas à ordem doméstica ou nas terríveis dificuldades associadas às visitas familiares liberta-se de numerosas obrigações. Mas quando se vive apenas fragmentariamente o outro e muitos aspectos de sua vida só se conhecem através de suas narrações – ou o que é o mesmo, quando múltiplos conflitos potenciais ficam ocultos, falta a aterrissagem. E a fantasia pode levar muito longe. O amor à distância pode ser enganoso. Podemos idealizar o parceiro, porque não vemos muitas coisas que também fazem parte dele. Ou o subestimamos, porque projetamos nossas próprias decepções nele: se eu vou mal, também ele deve ir mal, do contrário não me quer. Com frequência, é especialmente difícil conectar com a evolução do outro. Ou nós mesmos não nos encontramos ali onde supomos.

Quando um dia o grande sonho dos amantes separados se realiza, quer dizer, se reencontram e se convertem em um casal que vive juntos, o teste da realidade torna-se iminente. Esquece-se das despedidas e descobre-se algumas facetas antes desconhecidas do outro que a distância havia ocultado piedosamente. É bem provável que então o amor à distância se torne novamente um sonho, e que o “oxalá estivesses aqui” dos amantes a distância se converta em um “oxalá estivesses ali”.
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Fonte: IHU on line, 19/01/2013
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