terça-feira, 31 de março de 2020

CARTA AOS MEUS NETOS

MARIA CARPI*
 3 Formas de Enviar uma Carta - wikiHow

Já vivi 81 anos, já passei pela Segunda Guerra Mundial na infância e não havia experimentado nunca esse estado de exceção. Exceção é o que acontece uma vez e exige atitudes extremas como a de ficar longe de vocês, meus pequenos netos.

Maior do que a coragem de viver, o tempo requer a coragem de sobreviver. Sobreviver como pessoa e como cidade. Sobreviver como cultura e como país. Sobreviver mantendo os valores de solidariedade e de empatia, jamais cedendo ao egoísmo de se salvar sozinho e que o resto se vire.

Estamos atravessando dias difíceis por causa de um vírus que teria começado na longínqua China. E todas as famílias têm o dever de muito zelo de uns com os outros. Começa com cuidados simples de lavar bem as mãos e ficar em casa. Chamam essa medida de quarentena. E por coincidência estamos num período de 40 dias que antecede a Páscoa dos Ovinhos, chamado quaresma.

Esse período foi ensinado para mim, quando pequena, como sendo a passagem de Jesus pela Terra, desde os seus ensinamentos de amor até ser condenado injustamente a morrer na cruz. Algo muito difícil. Insuportável - até hoje, já velha, pretendo tirá-lo dos pregos.

E os adultos suportavam restrições durante a quaresma, que consistiam em não comer carne às sextas-feiras, principalmente na Sexta-feira Santa, dia da morte do bom Jesus, ser sóbrio, não cantar, não dançar ou outras distrações.

Uma coisa triste era a Via- Crúcis. A maioria das crianças fugia. Mas, finalmente, os sinos tocavam a Ressurreição de Cristo, e nas cestas o coelho, que não é galinha, depositava os ovinhos.

Como sabem, fui criada num hotel e o sacrifício de não comer carne era substituído por bacalhau e tortéi de abóbora. Uma delícia feita pela nonna Eliza. Justamente o que eu mais gostava. Então, eu dava glória ao castigo.

Pois bem, agora a minha enorme penitência não é não sair de casa, mas não poder, meus pequenos, abraçá-los forte com ambos os braços e cheirar os seus cangotes.

Tenho que segurar a saudade dentro de mim.

Minha saudade é como um passarinho amarelo que veio à minha varanda. Tentava levar um cisco para armar o ninho no alto.

Quando estava perto, o raminho ao bico caía.

Pois ele voltou três vezes e conseguiu.

Ele nos ensina a nunca desistir. Passarinho professor.

Bênção a vocês!
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* Poeta e patrona da Feira do Livro de Porto Alegre 2018 mariacarpi@terra.com.br
FONTE:
 https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=759cd8a709025b4da08baa831374cdd1
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segunda-feira, 30 de março de 2020

O gozo com a epidemia é a vingança dos medíocres

Luiz Felipe Pondé* 
 Pandemia do coronavírus e a aplicação da lei penal GEN Jurídico

O pessimismo diante do trágico é uma deformação do caráter


Num domingo recente, saindo da padaria, ao pagar a minha conta no caixa, a menina me disse “professor, não sei qual é a sua religião, mas a humanidade testa muito a paciência de Deus”.

Ela é evangélica, eu a conheço. Apesar de não ter terminado a frase, ela assumiu que eu a entendi, no que ela estava certa. A relação entre a epidemia atual e as pragas bíblicas têm circulado por toda parte. A expectativa apocalíptica é um traço das três religiões abraâmicas, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. A interpretação dos fatos da vida à luz de significados sobrenaturais é comum, provavelmente, a todo o sistema religioso.

Não é esse tipo, explicitamente religioso, que julgo mais pernicioso neste momento. O gozo psicológico secular (não religioso) com o horror me preocupa muito mais —o apocalíptico sem Deus. Inclusive porque este é, na verdade, uma forma disfarçada de fundamentalismo do terror, travestido de sujeito informado cientificamente e preocupado com o combate à tragédia. Seu gozo secreto é ver as pessoas tomadas pelo pânico em que ele sempre viveu.

Insisto na sabedoria trágica. Diante da tragédia absoluta, como dizia George Steiner, morto recentemente, só a piedade, a coragem e a humildade importam. O pessimismo diante do trágico é uma deformação do caráter. O otimismo também pede sua medida —fora do trágico, ele tende, muitas vezes, à banalidade.

Existem pessoas que gozam com a perspectiva da destruição do mundo (mesmo que seja, pelo menos, social e cotidiano). Sua estrutura psicológica é semelhante à da personagem Justine do clássico filme “Melancolia” de Lars von Trier —à medida que fica claro, no filme, que o mundo vai acabar, ela sai da sua terrível depressão.

Por quê? Porque para ela o mundo psiquicamente já tinha acabado. A destruição do mundo era a prova que ela precisava de que tudo estava à beira do abismo. Sua melancolia agora era um dado objetivo e não subjetivo. Ela sempre estivera certa, e quem tinha fé na vida sempre fora um idiota.
Quer um exemplo de gozo apocalíptico? Gente que adora dizer “a quarentena vai durar até junho”. Quem fala isso normalmente tem um sorriso cruel entre os dentes. Muitas vezes, é um deprimido disfarçado que quer descontar em cima dos outros seu profundo desgosto pela vida. Um Iago à procura de seu Otelo e de sua Desdemôna.

Deixemos claro uma coisa: não há dúvidas epidemiológicas sobre a necessidade de atrasar o contágio e, portanto, o distanciamento social neste momento. Mas há, sim, um debate acirrado que associa epidemiologia e epistemologia (grosso modo, teoria da ciência) acerca da validade de uma longa e desorganizada quarentena. E isso nada tem a ver com os delírios do Bolsonaro. Qual é o debate?

Após um certo número de dias, as pessoas surtariam em suas casas, pressionando o sistema de saúde com todo tipo de desordem, não só infecciosa. Além da suspeita que apareceu mesmo entre os chineses de que, depois de um certo número de dias, o contágio poderia se dar entre as próprias pessoas fechadas em casa.

Por exemplo, zerar os casos não importados para terminar a quarentena pode provocar um segundo tempo de epidemia (tema de preocupação na China hoje), porque o que torna o vírus “domesticado” não é ficar fechado em casa, mas uma imunidade de rebanho. É o sistema imunológico humano que debela o vírus. Tornamo-nos imunes a ele em grande medida pagando um alto preço.

Outro problema é a desordem social, de saúde e psicológica acarretada pela destruição atroz da economia. Pobreza, desespero, escassez (aliás, temas da economia) rivalizariam com a epidemia na geração de sofrimento.

A variável de risco na epidemia não é só a contaminação pelo vírus, mas as consequências das medidas epidemiológicas usadas contra a epidemia, quando estas assumem escala que tende ao caos social.

Portanto, mantenha-se a uns metros de distância de pessoas que gozam com a ideia de uma quarentena infinita. Isso não pode acontecer. Aquelas que falam para você o tempo todo que não há esperança. O gozo com a epidemia é a vingança dos medíocres.
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* Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP. 
Imagem da Internet
Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2020/03/o-gozo-com-a-epidemia-e-a-vinganca-dos-mediocres.shtml

sábado, 28 de março de 2020

Monja Coen: ‘Isole-se fisicamente, mas não emocionalmente’


Monja Coen*
 
CONSELHOS - A budista que virou best-seller: “Sua casa pode se tornar um l
ocal sagrado de práticas espirituais” Leo Martins/. 

Que o momento seja também de autoconhecimento e de conexão com o próximo: em casa, sozinho ou com a família, o melhor lugar do mundo é onde você está

E a pandemia chegou. Com ela, o isolamento social e seus muitos desafios. Você tem respeitado esse isolamento? Goste ou não goste, fique em casa. Com amor ou com raiva, fique em casa. Seja responsável. Cuide-se. Não seja um possível transmissor do coronavírus. Se onde você mora a quarentena ainda não é obrigatória, aguarde. Será. No mundo, muitos estão proibidos de sair de casa. Proibidos de andar nas ruas. O isolamento assusta de tantas maneiras. Há pessoas que detestam ficar sozinhas. Há quem não se lembre mais como é ficar com a família. Mas tudo é possível com um pouco de esforço.

Apreciemos ficar em casa. Não há para onde ir nem vir. Crie circunstâncias, valorize momentos importantes de silenciar, de meditar, de refletir em profundidade. De fazer nada. De ouvir e ver. De apenas estar presente. Não tenha medo da solidão. Esse vírus, para o bem ou para o mal, nos apresentou algumas lições. A principal delas: estamos todos interligados. Sem fronteiras, sem cores, sem etnias. Ele não discrimina. Por isso, o grande risco. Pode acontecer com você. Pode ser ele ou ela. Esse pequeno inimigo é extre­mamente democrático. Pior ainda, comunitário. Não há ninguém de fora: todos estão dentro das possibilidades de contágio. Por isso, comporte-se. Repito: fique em casa.

·  Aproveite o momento para observar. Observe com profundidade, observe com sabedoria. Há tanto que pode ser feito. Você pode ler, escrever, pintar, desenhar, sonhar. Pode cantar, declamar. Pode ouvir música sem dançar e sem cantarolar. Ouvir, apenas. E pode fazer tudo diferente, cantando e dançando. Pode rir, pode chorar. Tudo bem chorar. Enquanto o isolamento social for o melhor remédio, faça-o valer. Mas cuidado. Não beba muito. Não use drogas. Aprecie sua vida — não destrua células neurais. Sem beijos nem abraços, demonstre seu amor com a suavidade de uma folha caindo à brisa de outono.

Os otimistas acham que o isolamento fará com que as famílias voltem a sentar-se à mesa e a conversar. Será? Talvez nas casas onde alguém esteja contaminado e os cuidados devam ser redobrados. Quem sabe? Fica aqui um alerta: fomos tão bem treinados a sempre nos comunicar virtualmente que não farão muita diferença as portas trancadas. Abra as portas. Senão, serão mais e mais mensagens no WhatsApp dentro da mesma casa. Que a tecnologia não impeça a reunião familiar.

Mais difícil será ficar trancafiado com pessoas com as quais não mantemos bons relacionamentos — ou nenhum relacionamento. Recomendo que não exija dos outros o que eles não têm para oferecer a você. Veja as qualidades e não comente os defeitos — nem consigo mesmo. Tente. Se houvesse uma pandemia viral nos celulares, na internet, nas redes sociais, talvez fosse pior. Teríamos de olhar uns para os outros, de ouvir um ao outro. Teríamos de conversar: você lembra o que era conversar?

Quem é viciado em TV está feliz. Dia e noite, a TV ligada. Quem ama jogos virtuais se ocupará com eles até enjoar. Aprenda a se desligar. Aprenda a se desconectar. Esco­lha, neste momento: quer alimentar seus vícios ou suas virtudes? Que tal praticarmos virtudes nas semanas em cativeiro? Mas quem disse que é cativeiro? Sua casa pode se tornar o paraíso, um local sagrado de práticas espirituais. Podemos nos transformar, podemos responder de forma diferente das anteriores a esta intimidade forçada. Tudo depende de suas escolhas — e só suas. Não fique pensando no que deixou de fazer. No que está atrasado. Aprecie o agora, já. Aprenda a viver o agora. Você pode. Vamos apreciar mais a vida? Deixe o celular de lado de vez em quando. Na hora de comer, apenas coma. Na hora de dormir, apenas durma. Crie uma rotina saudável com atividade física, sono, alimentação natural, meditação, boa respiração e batimentos cardíacos regulares e tranquilos.

“Deixe o celular de lado. É um momento precioso para 
repensar quanto tempo dedicamos às telas”

Este é um momento precioso para repensar quanto tempo dedicamos às telas. Podemos ser atropelados, mas não largamos nossos amigos virtuais. Na mesa, no banheiro, no escritório, no ônibus ou metrô, nos táxis, Ubers, aviões, trens e mesmo andando a pé. Acabamos com um pequeno defeito na cervical de tanto olhar para baixo, para o celular. E por quê? São tantas notícias, informações, atualizações. E, quando você tenta se comunicar, as novidades que acabou de descobrir, o outro também já leu. Que tal desconectar-se? Está preocupado com as notícias ruins por todos os lados? Por que você está me lendo agora? Você já sabe. Tudo o que eu possa escrever é passado. Há dados mais recentes que os deste texto antigo. Antigo, sim. Está sendo escrito hoje, que é ontem do ontem do anteontem. E tudo está a mudar.

Lembre-se de que nada é fixo ou permanente. Eu e você, as lojas e as ruas, os pesares e as alegrias. Nada fixo, nada permanente. Perceba. A vida é um fluir incessante e incontrolável de instantes. Você é capaz de apreciar este momento mais do que reclamar dele.

Ouviu uma briga de casal? Interfira. Bata com o cabo da vassoura nas paredes. Grite pelas janelas. Chame a polícia. Nada de ficar brigando em casa. E controle o desejo de jogar alguém pela janela. Pode dar vontade. Mas não faça isso. Respire. Sorria. Aprenda a ter discussões saudáveis. Política, religião, relacionamentos. Está na hora de ouvir a opinião do próximo, pode ser divertido, pode ser estimulante. Você pode fazer de onde está o melhor lugar do mundo: porque é onde você está. Aqui, bem dentro de você, se manifesta e se abre um caminho iluminado. Sorria. É possível, sim.

Suponha que você tenha se comportado. Aguentou e não saiu de casa. Suponha que a curva exponencial da doença não tenha subido ao ponto mais alto. Ficou um pouco mais baixa. Valeu o isolamento forçado? Valeu o período consigo mesmo? Valeu ficar com essas pessoas ao seu redor? Ter de aguentar sermões e brigas: vem comer, larga o celular? Suas escolhas terão consequências. Então, ressalto: fique em casa. Não saia. Isole-se fisicamente, mas não emocionalmente. Superar essa pandemia depende de cada um de nós. Que a compaixão ilimitada e a sabedoria perfeita sejam nossas duas companheiras. Que possamos despertar e agradecer. Cada instante da nossa vida é assim. Aprecie.
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*Monja Coen, fundadora da Comunidade Zen Budista Brasil, é autora e apresentadora do Caminho Zen, no GNT
Publicado em VEJA de 1 de abril de 2020, edição nº 2680

quarta-feira, 25 de março de 2020

Um Plano Marshall? Onde estão os líderes?

Luiz Roberto Serrano*

 

 

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“Uma parte essencial de qualquer ação bem-sucedida dos Estados Unidos é o entendimento por parte do público da essência do problema e dos remédios a serem aplicados. Não é momento para paixões políticas e preconceitos”[1]

 “Os atos grandiosos dos estadistas se baseiam no realismo não menos do que no idealismo”[2].

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Luiz Roberto Serrano -Foto: Cecília Bastos/USP Imagens





Tem-se dito que a covid-19 jogou a humanidade na maior crise desde a Segunda Guerra Mundial.
Ao se aceitar como verdadeira esta afirmação, é preciso fazer outra constatação: durante e após a Segunda Guerra o mundo tinha grandes lideranças, goste-se ou não delas ou de alguma em particular: Franklin Delano Roosevelt, que morreu em 1945, Winston Churchill, Charles de Gaulle, Josef Stalin.

Empresários aparentemente esclarecidos têm falado, também, que para evitar que o Brasil afunde econômica e socialmente com a covid-19 é preciso que o governo brasileiro lance um Plano Marshall.

O secretário de Estado dos EUA, George Marshall, liderou a elaboração e implantação do plano que leva seu nome, voltado para financiar a reconstrução da Europa Ocidental após a Segunda Guerra Mundial. Num quadro de miséria e descontentamento, os países europeus ocidentais encaravam graves problemas sociais, sendo que à leste, vinha da União Soviética o aceno de que sistemas socialistas poderiam ser um remédio para a crise. Sim, o Plano Marshall teve como destacada inspiração combater e afastar essa possibilidade.

Motivações à parte, coloca-se uma questão em relação à contenção da pandemia atual, que ameaça populações e desorganiza economias.

As duas condições colocadas nas citações que abrem este texto – ausência de paixões políticas e preconceitos e realismo e idealismo – estão presentes nas atuais lideranças mundiais?

A China, a segunda potência global, poderia ter agido mais rapidamente do que o fez, não fosse seu regime político tão fechado? O quanto a covid-19 poderia ter sido freada nos EUA, a primeira potência, se o presidente Donald Trump tivesse desde logo levado a sério o mal, não se deixasse levar por suas inacreditáveis concepções de mundo? E o que aconteceu na Itália, tão bonita e charmosa, que se deixou surpreender de uma forma que deixa o resto do mundo espantado?

Nosso Brasil não escapa desse quadro, pois o presidente Bolsonaro parece não entender a complexidade e a gravidade do problema, o ministro da Economia, Paulo Guedes, se aferra em segurar uma economia que ameaça não se sustentar, e o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, o único a mostrar discernimento, vê sua atuação restringida por parceiros de visão curta. Sem falar das desnecessárias disputas e alfinetadas entre os poderes, que só anuviam o ambiente. Providências estão sendo adotadas, mas tardiamente e sem a dimensão necessária.

A pandemia da covid-19 tem raízes muito além do aparecimento de um novo vírus de vocação global. Há quanto tempo se brada a necessidade de serem tomadas medidas contra o aquecimento global e os passos necessários são obstaculizados por teorias estapafúrdias que defendem ferrenhamente os interesses de indústrias poluidoras secularmente estabelecidas? A ciência e as universidades nunca foram tão atacadas em todo o mundo, Brasil inclusive, porque suas pesquisas, investigações, estudos, propostas e ideias apontam soluções que mostram novos caminhos que incomodam os aferrados a tradições imobilistas. Nos sistemas de representação política ganham cada vez mais espaço os defensores de ideias mais do que conservadoras, na verdade retrógradas.

Como substrato de tudo isso, está a globalização, esse fenômeno econômico e social irreversível, com potencial para integrar e confraternizar as sociedades mundiais, mas cujos ônus, que também existem, provocam incompreensões, temores, recrudescimento de nacionalismos por toda parte – alimentados por essa incrível tecnologia que é a internet e suas redes sociais, que infelizmente abriu espaços enormes para as famigeradas e destrutivas fake news.

É verdade que na globalização saíram e estão na frente, como sempre, os países economicamente mais desenvolvidos, pois historicamente já dominavam mercados pelo mundo afora, mas a China está aí para servir como exceção a essa regra. Será impossível a países democráticos e em desenvolvimento seguir a senda por ela aberta, ao invés de patinar no atraso econômico e na desigualdade social?

Esse é o caldo de cultura em que viceja uma pandemia como a da covid-19. O caldo de cultura que possibilita que um vírus em mutação em algum canto do mundo provoque uma pandemia que põe em risco a sociedade global.

Vingança da natureza?

Aqui no Brasil, o Plano Marshall que se faz necessário não precisa de nome nem alcance semelhantes. Antes de mais nada, é preciso dar prioridade às medidas de combate à pandemia pois a saúde e a vida das pessoas, especialmente as dos menos favorecidos, devem ser a prioridade um, dois e três. Quanto à economia, que precisa de enorme atenção, pois a produção de riquezas está travada, é preciso atender primordialmente ao mundo do trabalho, formal e informal, não apenas às empresas e ao sistema financeiro.

Para que o País volte a funcionar depois da crise, a sociedade terá que estar minimamente saudável e articulada. O teto de gastos, esse truque contábil desenhado para gerar confiança nos investidores internacionais, perde o sentido diante do estrago econômico e social que a covid-19 poderá causar.
A principal lição que se deve tirar desta triste crise – espero que acabe o mais rápido possível – é que é hora de compreender o papel do Estado e da iniciativa privada no desenvolvimento do Brasil. A eterna discussão dessa equação prende o País no atoleiro de um crescimento medíocre e injusto.

O Brasil precisa de um Estado eficiente que cuide de saúde, educação, habitação e segurança e, especialmente, induza à estratégia de desenvolvimento econômico. Cabe à iniciativa privada investir e desenvolver um mercado forte e de amplo acesso aos consumidores de todas as faixas de renda. Tudo bem calçado em legislações que gerem segurança jurídica e horizonte de longo prazo.

Com um Estado eficiente teríamos um Sistema Único de Saúde (SUS) financeiramente capacitado para atender amplamente à população numa pandemia como a atual ou pelo menos melhor do que neste momento, para não dizerem que estou sendo utópico.

[1] Do discurso do secretário de Estado dos EUA, George Marshall, na Universidade de Harvard, em 5 de junho de 1947.
[2] Do livro The Marshall Plan: Dawn of the Cold War, de Benn Steil (Simon & Schuster Paperbacks, 2019).
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* Jornalista e superintendente de Comunicação Social da USP
Fonte: https://jornal.usp.br/artigos/um-plano-marshall-onde-estao-os-lideres/ 24/03/2020
Editorias: Artigos - URL Curta: jornal.usp.br/?p=3092
Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Vice-presidente da Associação de Oficiais, Glauco Carvalho diz que presidente contribui para agravar crise do coronavírus

O coronel da PM Glauco Carvalho (26/10/2012)
O coronel da PM Glauco Carvalho (26/10/2012) Foto: JOSÉ PATRÍCIO/ESTADÃO

‘Como militar me sinto envergonhado pelas ações de Bolsonaro’, diz coronel da PM paulista


“Como Militar, sinto-me envergonhado por tantas ações atabalhoadas, extravagantes, ridículas e mesquinhas.” As palavras do coronel da PM paulista coronel Glauco Carvalho sobre o presidente Jair Bolsonaro causaram um rebuliço entre seus pares. Glauco tem experiência com crise. Enfrentou os ataques do PCC e chefiava quase 30 mil homens do Comando do Policiamento da Capital quando passou para a reserva. 

Em meio à crise do coronavírus, decidiu fazer o desabafo em um grupo de policiais no WhatsApp. A postagem do coronel terminava assim: “E esse presidente, despreparado para o cargo, me comparece à manifestações e diz 'se eu pegar é responsabilidade minha'!!! Surreal. Deveria sofrer um impeachment!!!” 

Hoje Glauco é o vice-presidente do Clube dos Oficiais da PM. E desde quinta-feira, 19,  dia de sua manifestação, tornou-se uma voz dissonante em um meio que majoritariamente apoia o presidente. Acabou criticado por colegas bolsonaristas, mas também recebeu apoios, principalmente de civis. Glauco conheceu Bolsonaro quando trabalhava na assessoria parlamentar da PM no Congresso, nos anos 1990. Eis sua entrevista:

Por que o senhor decidiu se manifestar agora?

No meu entender há uma postura muito frágil do presidente da República em relação à gravidade da difusão dessa doença em solo brasileiro. E a inação dele vai gerar muitas mortes no Brasil - eu espero estar sinceramente equivocado. Essa postura dele de minimizar o quadro só vai agravar a situação e levar à perda de vidas. Isso me levou a me envergonhar de ser militar como ele e sermos preparados para crises graves. Fiz essa postagem me desculpando perante um grupo de pessoas pela postura de um presidente que eu entendo não estar apto a exercer o cargo político mais importante do País.

Qual a importância do planejamento e da gestão de uma crise para o senhor? E de que forma o presidente não estaria agindo segundo o que se esperava de um militar?

O militar é formado para evitar as crises e, entrando nas crises, achar alternativas para sair delas. O grande problema do Bolsonaro é minimizar e desprezar a crise. E ao desprezá-la, não toma medidas.
Vou dar um exemplo concreto: fui oficial de Estado-Maior da Polícia Militar por 15 anos. Você prepara cenários e, sempre, prepara-se para o cenário mais agudo, o mais grave. Neste momento, eu tenho certeza de que os oficiais e as praças do Centro de Inteligência e do Departamento de Operações da PM de São Paulo devem estar fazendo planejamentos para o pior cenário. Devem estar trabalhando com as seguintes hipóteses: proteção de supermercados; proteção de hospitais, pois em um caso de agravamento as pessoas podem desacatar médicos e agredir enfermeiros; prevenção de saques; transporte de cadáveres; incorporação de novos policiais, pois não vamos poder parar de formar policiais; armazenamento de corpos, pois pode não haver locais suficientes para mantê-los; cremação de cadáveres, como em Bergamo, na Itália; infecção de policiais, pois eles estão na rua e terão contato com pessoas; mecanismos de controle de pessoas e controle de portos, aeroportos e rodoviárias, acompanhando enfermeiros para fazer exames em quem chega a São Paulo; requisições de bens; check point com isolamento total de determinadas áreas e outras medidas que contribuam para controlar a doença. 

Tenho a convicção plena de que meus companheiros da ativa estão trabalhando com o pior cenário. Se vier o melhor cenário, ótimo. Se não vier, a sociedade estará trabalhando para enfrentá-lo. O mais grave erro de Bolsonaro é desprezar o quadro que a sociedade está passando.

Prever esse cenário serve para se preparar se ele acontecer. É isso?

Eu participei das crises contra o PCC de 1999, 2001, 2006 e 2012. Há um grande temor no governo de como transmitir informações para a população sem criar alarme. Por outro lado, a omissão pode gerar consequências drásticas e um posicionamento contrário da sociedade em relação ao governo. Em 2006, se fez isso, atrasou-se o aviso aos policiais do que estava para acontecer (os ataques do PCC). E há quem atribua a morte de policiais a essa decisão. 

Eu não quero dizer que essas medidas vão ser tomadas. Mas elas têm de estar preparadas e escritas em um plano de operações. Se o quadro se agravar onde estão os hospitais, onde estão as farmácias e os supermercados? Esse é o momento de se preparar para o pior, pois se o caso se agravar você já tem plano de ações pré-definidos. E é exatamente o que Angela Merkel está fazendo na Alemanha, que está tomando medidas gradativas desde janeiro. Em que pese terem pouco menos de 90 mortes, eles estão tomando medidas gradativas de controle.

Nesse cenário, no pior dele, o presidente estaria errado em pensar em Estado de Sítio?

Eu acho que ele não estaria errado, tanto que a região Leste dos Estados Unidos admite adotar lei marcial caso as medidas de isolamento forem descumpridas, mas para adotar o Estado de Sítio, Bolsonaro terá de contar com grande legitimidade. A impressão que eu tenho é que a legitimidade do presidente se esvai rapidamente. 

Quando ele compara um surto desse com uma “gripezinha”, quando ele autoriza que os cultos e missas continuem ocorrendo e se põe contrário a governadores que estão tomando medidas para conter a evolução da crise e difusão da doença, e quando ele, principalmente, comparece a um ato público que é um ato que se constitui em uma tragédia para a democracia - e não só do ponto de vista político, no sentido de comparecer a um ato que atenta contra outros Poderes, pois ele poderia estar com a gripe transmitindo para outras pessoas -, ele perde a legitimidade. E, para aplicar o Estado de Sítio numa democracia, você pressupõe uma legitimidade grande de um presidente; e eu tenho a impressão de que ele terá sérios problemas daqui para frente.

Qual seria o papel dos militares numa situação como essa?

Tenho a impressão de que a Polícia Militar e a classe médica, esses dois segmentos, vão ser os grandes líderes da saída institucional da crise que se vislumbra. As pessoas ainda não têm ideia do que está ocorrendo no dia a dia dos hospitais, entre os médicos e os policiais. Os médicos serão os líderes no primeiro momento, e a PM vai assumir relevância grande no segundo momento.
Só para lembrar: em 1904, a Força Pública de São Paulo mandou dois batalhões para o Rio de Janeiro para impor a vacina obrigatória, uma vez que a população do Rio não aceitava ser vacinada. Nós temos história no tratamento de questões ligadas à saúde pública. Os médicos para curar as pessoas, e a PM, no segundo momento, pois acredito que pode haver desorganização social em função do quadro econômico que se vislumbra para o Brasil.

Como um policial vai impor a ordem, se esse impor a ordem implica às vezes contato físico com quem pode estar doente. A polícia tem equipamento para isso? Está preparada para esse tipo de baixa?

A polícia nesse momento não está, tanto quanto a área médica. Talvez a sociedade não saiba, mas há grande aflição na área médica, pois nem todos têm condições, equipamentos para seus profissionais, como avental impermeável, óculos de proteção, luvas e toca e máscara N95. Se nos hospitais não têm, imagina o policial, uma vez que se demorou a tomar medidas. A minha grande insatisfação com o governo Bolsonaro, afora sua postura autoritária, é o fato de ele ter demorado três meses para agir. Nesse momento, já era para nós estarmos entrando em uma segunda fase. 

Minha maior preocupação é com as vidas das pessoas que podem morrer por falta de atenção do serviço público de saúde e com a vida de policiais militares, de médicos e enfermeiras. São os cabos e soldados, tenentes e capitães, que estão na ponta de linha que muito provavelmente vão contrair o vírus e vão transmitir às suas famílias. Teremos um agravamento da crise. Temos de pensar na ponta da linha, no policial que está no serviço. Temos de pensar no serviço operacional. O atraso em tomar medidas pelo presidente da República e as suas atitudes erráticas e contraditórias vão levar a uma dimensão da crise que o País não tem ideia. Fui criticado por colegas, mas eu temo pelo pior.

Mas o que o presidente poderia ter feito há três meses?

O surto na China teve início em novembro. Em dezembro, já sabendo da dimensão do problema na China, ele já deveria ter adotado uma série de medidas em relação ao fluxo de pessoas que entrava e saía do Brasil. Até agora nós não temos quantidade de exames suficientes, equipamentos e testes para atender à população. Se ele tivesse tomado algumas medidas naquela época, provavelmente, agora já estaríamos em segundo etapa. Teríamos testes, máscaras, luvas, aventais, esses EPIs (Equipamentos de Proteção Individual) que as pessoas veem na televisão na China e na Itália. Os nossos médicos e os nossos policiais e bombeiros estão completamente vulneráveis. 

Eu espero estar errado, temos 40 milhões de trabalhadores informais e temos de pensar nessa população vulnerável. Se você me perguntar, se Bolsonaro tivesse agido antes, se poderia ter contido (a covid-19), é uma incógnita, mas eu sei que a inação dele levou ao que a gente está vivendo hoje. Mas as pessoas estão cegas pela ideologia. Tanto quanto o PT criou a ideologia do Lula livre e do Lula inocente, criou-se agora a do Bolsonaro salvador da Pátria. Elas são apenas versões divergentes, mas no fundo são a mesma coisa, e o tempo vai dizer isso para todos nós.

O senhor é filiado ao partido Novo e João Amoêdo fez uma declaração forte contra Bolsonaro. Essa posição do senhor tem relação com isso?

Nenhuma. Eu estou há dois anos afastado do partido Novo por uma série de circunstâncias puramente pessoais. Particularmente, acompanhei de longe as declarações do Amoêdo. Mas isso mostra a fragilidade do governo Bolsonaro. Ele tem perdido apoio gradativamente dos liberais e dos conservadores, como a deputada Janaína Paschoal. A legitimidade dele está entrando em erosão.
Por enquanto, sou voz minoritária na Polícia Militar, mas temos efetivo de 90 mil pessoas que vai trabalhar cotidianamente. Um efetivo extremamente exposto à doença, tanto quanto o segmento evangélico. Haverá corrosão da legitimidade dele nos segmentos que lhe deram sustentação. Meu posicionamento independe do ex-presidente do Novo, que eu respeito muito. Meus posicionamentos em relação ao Bolsonaro já eram críticos desde o ano passado, mas se avolumaram agora porque eu acho que a inação dele vai gerar uma crise gravíssima no Brasil.

O senhor conheceu Bolsonaro nos anos 1990?

Eu tive contato com ele quando eu era assessor parlamentar da PM em Brasília, nos anos 1990. Naquele momento, havia a PEC 46, da Zulaiê Cobra, e a do Hélio Bicudo, que extinguiam as Polícias Militares. E ele (Bolsonaro) nunca foi um parlamentar atuante para conter o avanço tanto dessas PECs.

Quer dizer que no passado ele nada fez para impedir a extinção das PMs?

Nada fez. Eram outros parlamentares, de Minas, do Rio Grande do Sul e de São Paulo, o Hélio Rosas entre eles, que fizeram uma frente para impedir a extinção das PMs. Além do que havia uma contrariedade imensa nas Forças Armadas em relação a Bolsonaro.

Por quê?

Porque eles consideravam o Bolsonaro uma pessoa desordeira, uma pessoa desqualificada e indisciplinada. Essa era a visão das Forças Armadas.

E qual é a visão do senhor sobre Bolsonaro?

Essa é também a minha visão sobre Bolsonaro. Na minha opinião, ele é uma pessoa despreparada para ser o primeiro mandatário do País. Lamentavelmente, o desgoverno do PT e a posição dúbia do partido em relação aos que transgrediram as regras legais levaram à eleição dele. Tanto que meus colegas dizem: ‘E se fosse o Lula, e se fosse o fulano ou o beltrano?’ Mas nós não temos só essas alternativas. O Brasil se radicalizou. Não existe só o preto e o branco. O Brasil se radicalizou em razão do quadro grave e agudo. Bolsonaro era a alternativa que tinha. As pessoas não queriam mais alguém que fosse do establishment e saiu o Bolsonaro. Há que aparecer uma nova liderança de centro que tenha condições de aglutinar a Nação e fazer com que a Nação ache solução para seus problemas.

O senhor disse que Bolsonaro é autoritário. Por quê?

O presidente Bolsonaro tem atitudes radicais e autoritárias. Na literatura sobre o populismo dos anos 1970 e 1980 veremos que o quadro se agravou na América Latina em razão de lideranças carismáticas que desprezaram as instituições e os poderes de representação e se arvoraram no papel de salvadores da pátria. Essa é uma literatura sólida e nós assistimos à mesma coisa agora com uma roupagem um pouco diferente. Ele é ainda autoritário porque representa setores autoritários da sociedade brasileira. 

Eu lembro o cientista político Guillermo O’Donnell, que se radicou nos Estados Unidos, e que tem a teoria do autoritarismo socialmente implantado nas sociedades latino-americanas. Bolsonaro é resultado desse autoritarismo que existe no seio da sociedade, que faz as pessoas não respeitarem regras, as pessoas se sentirem acima da lei e desprezarem umas às outras e quererem impor de forma dramática e descomunal sua vontade umas às outras. O Bolsonaro é um pouco o resultado de tudo isso; e o Brasil não precisa disso. O Brasil tem outros segmentos importantes da sociedade que não se coadunam com esse tipo de comportamento. 

Precisamos achar alternativas, pois o radicalismo nunca é uma alternativa. Nós precisamos achar alternativas democráticas, dentro do jogo institucional. Não podemos agravar o descontrole social com o institucional; e ele não tem estatura para isso. Esse é o grande problema. Precisamos achar alternativas que levem à solução pacífica e dentro do quadro institucional e da Constituição para que a nação possa continuar dentro de seu destino histórico.

O presidente da associação, coronel Antonio Chiari, disse que o senhor não fala em nome da associação?

Eu respeito a opinião do presidente. Mas sou vice-presidente da associação, pois fui eleito. Vamos passar por período complexo e, em que pese a descortesia de ele não me consultar antes de se manifestar, vamos ter de unir esforços para enfrentar esse período. Meu pronunciamento, de fato, desde o começo foi e é em caráter pessoal e não como vice-presidente da associação. 
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 REPORTAGEM Por Marcelo Godoy, O Estado de S.Paulo
25 de março de 2020 | 17h10 
Fonte:  https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,como-militar-me-sinto-envergonhado-pelas-acoes-de-bolsonaro-diz-coronel-da-pm-paulista,70003244358

domingo, 22 de março de 2020

Yuval Noah Harari: o mundo após o coronavírus | Financial Times

Yuval Noah Harari

Yuval Noah Harari: o mundo após o coronavírus |  Financial Times
Foto: Reprodução/ TV Cultura
 
Neste momento de crise, enfrentamos duas escolhas particularmente importantes. O primeiro é entre vigilância totalitária e empoderamento do cidadão. O segundo é entre isolamento nacionalista e solidariedade global.

VIGILÂNCIA TOTALITÁRIA X EMPODERAMENTO DO CIDADÃO

Para interromper a epidemia, populações inteiras precisam obedecer a certas diretrizes. Existem duas maneiras principais de conseguir isso. Um método é o governo monitorar as pessoas e punir aqueles que violarem as regras.

Divisor de águas na história da vigilância. Se já havia uso de informações para nós monitorar, agora intensifica. Na crise, testes e experiências serão aceleradas e feitas em cobaias humanas. O estado de emergência justificará passar por cima de decisões políticas de proteção à privacidade. Vamos monitorar não só “sobre a pele”, mas também “sob a pele”. Seu dedo no celular não só vai informar onde vc está, onde você navega, mas também qual a sua temperatura e pressão.

E cruzando os dados do que nós vemos com o que nós sentimos (tipo, sou de direita e a globo me irrita ou adoro filmes de amor, eles me emocionam), ao longo do tempo estes algoritmos podem gerar informações que tanto podem nos previnir de uma pandemia como esta, quanto nós expor à manipulações emocionais pelos governos. Imagine o lider Da Coreia do Norte sabendo por um bracelete colocado nas pessoas que o seus discursos alteram o organismo dessa pessoa gerando raiva?

Podem ser medidas tomadas só e tempos de crise. Mas os governos pode prever novas crises para perpetuar esse tipo de comportamento.

A crise do coronavírus pode ser o ponto de inflexão da batalha da informação x privacidade, pois quando as pessoas podem escolher entre privacidade e saúde, geralmente escolhem a saúde.

Pedir às pessoas que escolham entre privacidade e saúde é, de fato, a própria raiz do problema. Porque esta é uma escolha falsa. Podemos e devemos desfrutar de privacidade e saúde. Podemos optar por proteger nossa saúde e impedir a epidemia de coronavírus, não instituindo regimes totalitários de vigilância, mas empoderando os cidadãos.

O monitoramento centralizado e punições severas não são a única maneira de fazer as pessoas cumprirem diretrizes benéficas. Quando as pessoas são informadas dos fatos científicos e quando as pessoas confiam nas autoridades públicas para lhes contar esses fatos, os cidadãos podem fazer a coisa certa, mesmo sem um Big Brother vigiando seus ombros. Uma população motivada e bem informada é geralmente muito mais poderosa e eficaz do que uma população ignorada e policiada.

Tipo lavar as mãos... até pouco tempo nem médicos lavavam como agora. Depois que descobriram que mata vírus e bactérias, não só médicos, mas todos fazem antes de comer ou depois de ir ao banheiro. Fazem por consciência e não porque o governo obrigou e monitora.

Mas para isso precisa haver confiança na ciência, na mídia e nos governos. E eles precisam confiar nos cidadão. Essa confiança mútua geralmente não acontece.

Normalmente, a confiança que foi corroída por anos não pode ser reconstruída da noite para o dia. Mas estes não são tempos normais. Em um momento de crise, as mentes também podem mudar rapidamente. Você pode ter discussões amargas com seus irmãos por anos, mas quando ocorre uma emergência, você descobre subitamente um reservatório oculto de confiança e amizade e se apressa para ajudar um ao outro. Em vez de construir um regime de vigilância, não é tarde demais para recuperar a confiança das pessoas na ciência, nas autoridades públicas e na mídia. Definitivamente, também devemos fazer uso de novas tecnologias, mas essas tecnologias devem capacitar os cidadãos.

Sou totalmente a favor de monitorar a temperatura corporal e a pressão sanguínea, mas esses dados não devem ser usados ??para criar um governo todo-poderoso. Em vez disso, esses dados devem permitir que eu faça escolhas pessoais mais informadas e também responsabilize o governo por suas decisões.

Se eu pudesse rastrear minha própria condição médica 24 horas por dia, aprenderia não apenas se me tornei um risco à saúde de outras pessoas, mas também quais hábitos contribuem para minha saúde. E se eu pudesse acessar e analisar estatísticas confiáveis ??sobre a disseminação do coronavírus, seria capaz de julgar se o governo está me dizendo a verdade e se está adotando as políticas corretas para combater a epidemia. Sempre que as pessoas falam sobre vigilância, lembre-se de que a mesma tecnologia de vigilância geralmente pode ser usada não apenas pelos governos para monitorar indivíduos - mas também por indivíduos para monitorar governos.

A epidemia de coronavírus é, portanto, um grande teste de cidadania. Nos próximos dias, cada um de nós deve optar por confiar em dados científicos e especialistas em saúde em detrimento de teorias infundadas da conspiração e de políticos que servem a si mesmos. Se não conseguirmos fazer a escolha certa, poderemos encontrar nossas mais preciosas liberdades, pensando que essa é a única maneira de proteger nossa saúde.

ISOLAMENTO NACIONALISTA X SOLIDARIEDADE GLOBAL

Tanto a epidemia em si quanto a crise econômica resultante são problemas globais. Eles podem ser resolvidos efetivamente apenas pela cooperação global.

Para derrotar o vírus, precisamos compartilhar informações globalmente. Essa é a grande vantagem dos humanos sobre os vírus. Um coronavírus na China e um coronavírus nos EUA não podem trocar dicas sobre como infectar humanos. Mas a China pode ensinar aos EUA muitas lições valiosas sobre o coronavírus e como lidar com isso. O que um médico italiano descobre em Milão no início da manhã pode muito bem salvar vidas em Teerã à noite. Quando o governo do Reino Unido hesita entre várias políticas, pode obter conselhos dos coreanos que já enfrentaram um dilema semelhante há um mês. Mas, para que isso aconteça, precisamos de um espírito de cooperação global e confiança.

Os países devem estar dispostos a compartilhar informações de maneira aberta e humilde, procurar aconselhamento e devem poder confiar nos dados e nas idéias que recebem. Também precisamos de um esforço global para produzir e distribuir equipamentos médicos, principalmente testes de kits e máquinas respiratórias. Em vez de cada país tentar fazê-lo localmente e acumular qualquer equipamento que possa obter, um esforço global coordenado poderá acelerar bastante a produção e garantir a vida o equipamento de economia de energia é distribuído de maneira mais justa Assim como os países nacionalizam as principais indústrias durante uma guerra, a guerra humana contra o coronavírus pode exigir que "humanizemos" as linhas de produção cruciais. Um país rico com poucos casos de coronavírus deve estar disposto a enviar equipamentos preciosos para um país mais pobre com muitos casos, confiando que, se e quando posteriormente precisar de ajuda, outros países o ajudarão.

Também é de vital importância a cooperação global na frente econômica. Dada a natureza global da economia e das cadeias de suprimentos, se cada governo fizer suas próprias coisas em total desconsideração dos demais, o resultado será um caos e uma crise cada vez mais profunda. Precisamos de um plano de ação global e precisamos dele rapidamente. Outro requisito é chegar a um acordo global sobre viagens. Suspender todas as viagens internacionais por meses causará enormes dificuldades e dificultará a guerra contra o coronavírus. Os países precisam cooperar para permitir que pelo menos um bando de viajantes essenciais continue atravessando as fronteiras: cientistas, médicos, jornalistas, políticos, empresários. Isso pode ser feito alcançando um acordo global sobre a pré-seleção dos viajantes pelo país de origem. Se você souber que apenas viajantes cuidadosamente selecionados foram permitidos em um avião, estaria mais disposto a aceitá-los em seu país.

Infelizmente, atualmente os países dificilmente fazem alguma dessas coisas. Uma paralisia coletiva tomou conta da comunidade internacional. Parece não haver adultos na sala. Esperávamos ver, há algumas semanas, uma reunião de emergência de líderes globais para elaborar um plano de ação comum. Os líderes do G7 conseguiram organizar uma videoconferência apenas nesta semana, e não resultou em nenhum plano desse tipo.

Nas crises globais anteriores - como a crise financeira de 2008 e a epidemia de Ebola de 2014 - os EUA assumiram o papel de líder global. Mas o atual governo dos EUA abdicou do cargo de líder. Deixou bem claro que se preocupa muito mais com a grandeza da América do que com o futuro da humanidade.

Este governo abandonou até seus aliados mais próximos. Quando proibiu todas as viagens da UE, nem se deu ao trabalho de avisar a UE com antecedência - quanto mais consultar a UE sobre essa medida drástica. Ele escandalizou a Alemanha ao oferecer supostamente US $ 1 bilhão a uma empresa farmacêutica alemã para comprar direitos de monopólio de uma nova vacina Covid-19.

Mesmo que a administração atual acabe, muda de posição e apresente um plano de ação global, poucos seguirão um líder que nunca assume responsabilidade, que nunca admite erros e que rotineiramente assume todo o crédito por si mesmo, deixando toda a culpa para os outros.

Se o vazio deixado pelos EUA não for preenchido por outros países, não só será muito mais difícil interromper a epidemia atual, mas seu legado continuará envenenando as relações internacionais nos próximos anos.

No entanto, toda crise também é uma oportunidade. Devemos esperar que a epidemia atual ajude a humanidade a perceber o grave perigo que representa a desunião global.

A humanidade precisa fazer uma escolha: iremos percorrer o caminho da desunião ou adotaremos o caminho da solidariedade global? Se escolhermos a desunião, isso não apenas prolongará a crise, mas provavelmente resultará em catástrofes ainda piores no futuro. Se escolhermos a solidariedade global, será uma vitória não apenas contra o coronavírus, mas contra todas as futuras epidemias e crises que possam assaltar a humanidade no século XXI.
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*Yuval Noah Harari é um professor israelense de História e autor do best-seller internacional Sapiens: Uma breve história da humanidade e também de Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã
Fonte:  https://www.publico.pt/2020/03/21/mundo/noticia/parece-nao-haver-adultos-sala-1908745

sexta-feira, 20 de março de 2020

ROBERTO GIANNETTI DA FONSECA: Política externa brasileira é ingênua ao ver os EUA como redenção

Roberto Giannetti da Fonseca*
 
 FOTO Nelson Provazi

Atual política externa brasileira é dominada por uma posição infantil e ingênua de pensar os EUA como uma redenção. Não podemos adotar posicionamento de entrega cega

“The world turns and the world changes...” T. S. Eliot

Ao ler o brilhante e lúcido ensaio intitulado “O que o Brasil quer da China?”, de Philip Yang, publicado no Valor em 14 de fevereiro, foi possível realizar uma intensa reflexão sobre o conjunto de políticas públicas que em sintonia com empreendedores privados poderiam certamente ajudar o país a sair do embotamento econômico em que se encontra nas últimas décadas. De início ao fim desse longo ensaio, com forte componente da sua experiência pessoal e profissional, o autor perpassa em seu texto um sentimento de perplexidade, incômodo, inquietação e, sobretudo, de dúvida em relação ao nosso futuro e aos cursos de ação possíveis com relação às cidades, aos investimentos públicos e privados, ao  papel da diplomacia, aos símbolos e narrativas que podem nos unir como uma sociedade coesa e moderna.

Não se tratou, portanto, de um artigo de política externa em si. Compõe o texto um conjunto de reflexões sobre o etos brasileiro em contraste com o chinês, o processo de desenvolvimento econômico e social de cada um dos dois países, especialmente a importância do meio urbano para a inserção internacional do Brasil, em parceria estratégica com a China, no ambiente da nova economia.

Diante da abrangência do texto de Yang, li, surpreso, a reação do Itamaraty publicada na edição da semana passada do Valor, sob a forma de artigo assinado pelo diplomata Alberto Coelho Fonseca, responsável pela gestão estratégica do gabinete do ministro das Relações Exteriores. Curiosa reação a do Ministério das Relações Exteriores (MRE) ao decidir  se posicionar sobre um ensaio de reflexões livres com temas amplos de políticas públicas. Supõe-se que o MRE, ou o chanceler, se sentiu atingido pelas conjecturas contidas no texto original.

Na verdade, o amplo escopo temático e o arco temporal da crítica contida no texto de Yang, que envolve diferentes períodos e governos ao longo de décadas, já cumpriu um bom papel ao provocar um posicionamento oficial. Lamenta-se apenas que o MRE assumiu uma atitude defensiva e reducionista ao criticar o ensaio exclusivamente pela ótica burocrática e sem realmente buscar entender a abrangência do ensaio.

Dado que a reação governamental foi feita, comentarei então, pela importância do debate democrático, os elementos de seu conteúdo, uma vez que carregam informações relevantes acerca da visão de mundo do atual governo e me permitem assim compartilhar com o leitor as tantas indagações que, à luz da força original do ensaio de Yang, o texto burocrático do Itamaraty me suscita.

A resposta do governo, como era de se esperar de qualquer posicionamento institucional, é firme e carregada de certezas oficiais. Não poderia ser diferente. Numa resposta institucional, é natural e imperativo que o poder público se manifeste de maneira inequívoca, decidida e peremptória. Mas tamanha convicção de infalibilidade, embora incisiva, não deixa de, ao mesmo tempo, gerar dúvidas, ante a estreita compreensão que o texto ministerial demonstrou carregar.

A crítica de Coelho Fonseca, escrita na forma de promoção das políticas levadas a efeito pelo governo Bolsonaro, está dividida em duas partes. Na primeira, o texto comenta as relações Brasil-EUA a partir de registro de um suposto sucesso da aproximação com Washington empreendida pela diplomacia externa do atual governo. Na parte seguinte, para refutar crítica de Yang à política brasileira para a China, passa em revista os diversos eventos recentes que teriam configurado uma “parceria estratégica bilateral” com os chineses. Tomo esta oportunidade para comentar esses dois temas.

A ansiedade defensiva do representante do Itamaraty parece prejudicar ou distorcer a sua leitura do passado, do presente como das tendências do futuro. Quanto ao passado, escapa a Coelho Fonseca que a aproximação com os EUA deixou de acontecer não por nossa falta de vontade, mas porque fomos recorrentemente preteridos pelos EUA. Foi assim, por exemplo, quando Washington deu prioridade a outros temas da agenda internacional, sobretudo nos derivados da longínqua Guerra Fria do século XX, como nos conflitos do Oriente Médio, nos quais tivemos papel marginal em função de nossa condição geopolítica periférica, conforme nos recorda Yang no seu enfático ensaio.

Por pertencer a uma instituição exemplo, quando Washington deu prioridade a outros temas da agenda internacional, sobretudo nos derivados da longínqua Guerra Fria do século XX, como nos conflitos do Oriente Médio, nos quais tivemos papel marginal em função de nossa condição geopolítica periférica, conforme nos recorda Yang no seu enfático ensaio.

Por pertencer a uma instituição que tem a obrigação de prezar pela defesa de interesses permanentes da nação, é estranho da parte do diplomata Coelho Fonseca desconhecer os esforços do passado, mesmo que incompletos, ao afirmar que “foi-se meio século de experimentos de política externa que pouco rendeu ao país em termos de resultados concretos de prosperidade e qualidade de vida para o cidadão comum”.

Sabemos todos que, no passado, a busca de relacionamento preferencial com os Estados Unidos só foi abandonada pelo Brasil quando constatamos que tal desejo não era compartilhado por Washington. Como em qualquer relacionamento, uma parceria envolve ao menos duas vontades. Não podemos esquecer a célebre frase de Juracy Magalhães(1905-2001), ex-embaixador do Brasil em Washington e depois chanceler, que expressou a busca desesperada e subserviente de uma aproximação com os EUA: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.

A análise do presente parece igualmente turva. O texto se inicia com um enaltecimento dos resultados do recente encontro Trump-Bolsonaro e prossegue com afirmação de que “é uma relação especial (...) que o Brasil hoje busca consolidar com os EUA, ainda que com quase 50 anos de atraso” (grifo meu). É nesta afirmação resoluta do diplomata que reside a precariedade central para o leitor refletir por si mesmo: 1. Não estará o atual chanceler apenas repetindo algo tentado várias vezes e reiteradamente fracassado no passado?; 2. Considerando esses “quase 50 anos de atraso”, não seria mais sábio buscarmos outras parcerias considerando que (a) o eixo de poder mundial se desloca de forma evidente para a Ásia e (b) fomos historicamente preteridos em diversas ocasiões pelos EUA?; 3. Tudo indica que a atual direção do Itamaraty não se deu conta ou prefere omitir de que o mundo mudou profundamente nestas cinco décadas.

E, olhando criticamente as posições da diplomacia brasileira e americana hoje, nada do que está em jogo parece constituir um movimento equiparável a uma ação de alta estratégia. Nesse contexto, talvez as questões sobre as quais devamos refletir sejam as seguintes: - Será que os acenos de contrapartida que a administração Trump nos faz são de alguma relevância transformadora? De que vale, por exemplo, um status de aliado extra-Otan quando, do ponto de vista geoestratégico, não sofremos nenhum tipo de ameaça externa grave?

Num outro exemplo, os EUA nos acenam com apoio para o acesso do Brasil à OCDE. O apoio que nos é agora oferecido ocorre depois de Washington ter-nos preterido em favor da Argentina, gesto extremamente adverso a pretensa parceria bilateral e que só foi revertido em função da recente eleição de Alberto Fernández no país vizinho.

Me choca pensar que, como em tantos outros episódios recentes (apoio brasileiro ao candidato apoiado pelos EUA à OMPI, isenção unilateral de vistos a americanos, abandono da condição de país em desenvolvimento nas negociações da OMC), façamos uma concessão gratuita aos americanos em detrimento de nossos interesses nacionais de longo prazo. Entre eles, o mais sensível para o futuro do país se refere hoje à implantação da infraestrutura 5G, tecnologia fundamental para a inserção do Brasil na Revolução Industrial 4.0. Corremos o risco de ver nossa diplomacia presidencial sucumbir às pressões de Trump para que fechemos as portas à concorrência chinesa? Tal decisão faria sentido para o Brasil? Os EUA nem sequer dispõem ainda de soluções tecnológicas convincentes para o 5G. Eis outra questão central que o ensaio de Yang evoca e está ausente na crítica do Itamaraty.

No tocante ao futuro, tampouco parece estar presente na diplomacia atual uma leitura de tendências de longo prazo. Fazia bastante sentido buscar um relacionamento privilegiado com os EUA na passagem do século XIX para o século XX, quando o país da América do Norte emergia como grande potência. Um século mais tarde, a política externa bolsonarista busca a qualquer custo esse mesmo alinhamento a Washington, tantas vezes fracassado no passado.

Tal ação diplomática, como hoje empreendida, não faz mais nenhum sentido. Num mundo que tem a China como potência econômica emergente e líder de inovação em diversos segmentos da nova economia, num sistema internacional com diversos polos de poder, a propalada aproximação Bolsonaro-Trump estaria refletindo o melhor curso de ação internacional? Eis a questão suscitada por Yang e que precisa ser permanentemente levada em consideração na formulação de nossas políticas, nos diversos domínios da vida pública e privada.

O ataque mais contundente de Coelho Fonseca foi dirigido à crítica que Yang desferiu à atual condução da política externa brasileira para a China. Mais uma vez, ao fazer uma defesa burocrática do posicionamento brasileiro, o assessor do chanceler arrola listagem de ações meramente protocolares que compõem a pauta sino-brasileira. Limito-me aqui a convidar o leitor a distinguir, entre os tantos tópicos indicados, quais são os itens meramente retóricos e quais poderiam ser considerados de efetivo impacto estratégico ou que, de alguma forma, possam alterar a dinâmica das relações bilaterais ou, ainda, as condições de inserção internacional do Brasil. O leitor terá em mãos um exemplo clássico de agenda vazia, preenchida apenas de palavrório inerte e destituído de substância.

Cito apenas um exemplo. De forma veemente, Coelho Fonseca defende o atual governo da crítica feita à condução da política brasileira para a China, caracterizada por Yang como “utilitarista e tacanha” e “destituída de valores civilizacionais”. Ao fazê-lo, o assessor do chanceler indica, por exemplo, que na recente declaração conjunta firmada pelos presidentes Jair Bolsonaro e Xi Jinping, o atual governo “defende intercâmbio mais intenso de cientistas e realização de pesquisas e projetos conjuntos em ciência, tecnologia e inovação”.

Talvez tenha escapado ao representante do Itamaraty que, semanas após o “compromisso” perante os chineses, uma portaria publicada pelo Ministério da Educação limitou drasticamente as viagens de cientistas e acadêmicos, inviabilizando qualquer intercâmbio conforme prometido aos chineses. (A portaria foi depois cancelada diante dos protestos e da revolta da comunidade científica brasileira, porém persistem diversas limitações para as atividades científicas e acadêmicas, num vai e vem claro que temos uma completa desarticulação entre o que se assina e o que se pratica)

O ensaio de Yang deixa claro que uma nova relação realmente estratégica com a China não poderá nem deverá limitar nossas interações livres e soberanas com outras nações. Muito pelo contrário, só devemos seguir o que possa nos fortalecer, inclusive para aumentar nosso potencial de relacionamento com outros países e regiões. Também sublinhou que, objetivamente, os Estados Unidos são nossos concorrentes e competem conosco nas principais pautas do nosso comércio exterior, sobretudo no setor no qual somos uma grande potência econômica, o agropecuário.

Outro ponto central: o que o Brasil mais necessita é de investimentos, sobretudo em infraestrutura, tanto urbana, enfatizada por Yang, mas com urgência em logística geral, incluindo portos e ferrovias, até mesmo para reduzir os custos dos nossos produtos agropecuários e assim competir em condições ainda melhores com nosso maior concorrente, os Estados Unidos.

Nesse contexto da nossa necessidade de investimentos, cabe indicar, em primeiro lugar, que os EUA têm uma estrutura econômica e institucional onde o governo não detém poder efetivo para viabilizar programas e projetos produtivos. Em contraste, a China é o país do mundo com a maior capacidade efetiva para decidir e implementar programas e projetos de investimento sob decisão governamental.

Em segundo lugar, os Estados Unidos não têm disponibilidade de capital próprio por apresentar, como o Brasil, baixíssima taxa de poupança, sendo inclusive o maior importador global de capital, sendo a China o seu maior financiador, tanto público quanto privado; aqui mais uma vez os EUA competem com o Brasil.

Tendo em vista essas e outras razões objetivas, a atual política externa brasileira é dominada por uma posição infantil e ingênua de pensar os Estados Unidos como uma redenção. Não podemos adotar posicionamento de entrega cega, de juras a bandeiras de quem quer que seja, ainda mais sendo os EUA claramente nossos maiores concorrentes, mesmo que “amigos” e parceiros em diversos setores relevantes.

Parece não haver no atual Itamaraty a distinção entre a grande e a pequena política, o retórico e o efetivo, o burocrático e o estratégico, o conjuntural e o estrutural, a ideologia e os reais interesses da nação. Fica pois aqui a recomendação de lerem o ensaio original de Philip Yang.
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* Roberto Giannetti da Fonseca é economista pela USP, dirigente  e consultor da Kaduna Consultoria. Foi diretor titular de Relações Internacionais e Comércio Exterior da Fiesp; secretário-executivo da Camex no governo FHC (2000-2002) e presidente da Funcex (2004-2009), um dos pioneiros nas relações econômicas do Brasil com a China.