José de Souza Martins*
Foto Carvall
O Brasil aceitou
naturalmente a informação de que a perturbação nacional do processo
democrático, que culminou com os surpreendentes resultados das eleições de
outubro de 2018, tivesse sido decidida pela intervenção das redes sociais na
formação da opinião eleitoral.
Um único dedo, de
uma única mão, o dedo indicador das digitações, armou a subversão política da
frágil República e colocou no desvio nosso destino como povo e nação. Pelo fato
elementar de que a mudança resultante passou a ser expressão de uma vontade
única, a de um pequeno grupo de pessoas que agem como uma só e personificam uma
só. A que resulta de caprichos ideológicos e sectários e deformações de uma
mente autoritária, antipolítica, que trata o povo e a democracia como estorvos.
A força subversiva
do dedo antidemocrático refabrica o país, relativiza a força legítima das
instituições políticas, o modo da interferência popular no traçado do destino
da nação, reformula direitos políticos, cria uma nova categoria de brasileiros
de terceira classe, os que votam sem saber no que estão votando, os que já não
são considerados sujeitos de direito e de vontade política.
O sociólogo e
filósofo francês Henri Lefebvre (1901-1991), há algumas décadas, já havia
chamado a atenção para o renascimento do caráter estamental, pré-moderno e
pré-capitalista, na sociedade moderna. Nesse sentido, uma sociedade resultante
de um novo peneiramento social, que exclui multidões das possibilidades que o
capitalismo é capaz de criar e não é politicamente capaz de distribuir e
realizar.
As pessoas já não
são o que conseguem com seu esforço, o trabalho e o estudo, mas o que seu
nascimento permite que sejam. Mesmo que não sejam nascimentos da incubadora
hereditária de direitos feudais.
Uma nova classe
média conspira para ser o que não é nem nunca foi. Pauta-se pela suposição de
que o oxigênio da democracia, do direito e da liberdade não existe em
quantidade suficiente para assegurar a sobrevivência de todos com base no
princípio da igualdade jurídica e da igualdade de direitos.
Com isso, as novas
gerações, a dos que estão chegando agora, estão condenadas a não ser o que
poderiam ser e o que têm direito de ser. Esta já não é mais a sociedade da
liberdade e da igualdade, mas tão somente a sociedade da iniquidade, a dos que
quem pode mais chora menos.
Todos os dias, em
todos os cantos, vemos e ouvimos afirmações e discursos sobre a naturalidade de
que os jovens se conformem em ser aquilo para o que nasceram. É claro, como se
ouviu num recente discurso de formatura no Rio Grande do Sul, que isso quer dizer
que o oxigênio do saber e dos direitos devem ser racionados e reduzidos a
privilégio da minoria rica e dos estratos mais privilegiados da classe média. O
resto é só resto.
Há algum tempo, a
premiada jornalista e escritora inglesa Carole Jane Cadwalladr fez uma
conferência sobre “o papel do Facebook no Brexit e a ameaça à democracia”. É
assustador que um dos países mais politizados do mundo e com maior discernimento
político tenha sido induzido a tomar uma decisão, provavelmente equivocada e
irremediável, com base em subinformação, no desconhecimento e não no
conhecimento.
Tratou-se de um
experimento político para colocar um cabresto na democracia e transformá-la
numa ilusão digital. Violência que poderá disseminar-se por vários países e que
já se dissemina por alguns, como o Brasil, citado pela conferencista. Aqui,
operam variantes da mesma máquina de restrição e relativização da democracia.
Não sei se a
subversão eleitoral de 2018 faz parte da mesma trama, mas faz parte do mesmo
gênero de trama. Ou se os nativos da delinquência política fizeram uma inovação
à brasileira para confinar no curral de uma nova sujeição a já pobre
consciência política do povo brasileiro.
A conspiração
digital tem à sua disposição várias portas e vários nomes, vários recursos,
várias caras. Se o dedo indicador já serviu para moleque tirar meleca do nariz,
agora é instrumento para colocar meleca na democracia brasileira.
Gente sem mandato
digita a esmo o que quer fazer de todos nós. Mesmo o dedo do governante quando
digita as opiniões que quer impor ao país, é um dedo ilegal e inconstitucional.
A mão presidencial tem que ser uma mão alfabetizada e politizada, capaz de
escrever as coisas por extenso, legíveis e compreensíveis. Não é isso que
estamos vendo.
Outras formas de
atravessamento dos direitos do cidadão estão ativos no Brasil do dedo iníquo.
Foi aqui legalizada a prática do lobby. O eleitorado elege senadores e
deputados, mas os lobistas podem abordar os eleitos para seduzi-los em favor de
suas causas particulares e, até, mesmo anticidadãs, fora da pauta de quem os
elegeu.
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* José de Souza
Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP.
Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre
outros livros, autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê Editorial).
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