terça-feira, 31 de março de 2020

CARTA AOS MEUS NETOS

MARIA CARPI*
 3 Formas de Enviar uma Carta - wikiHow

Já vivi 81 anos, já passei pela Segunda Guerra Mundial na infância e não havia experimentado nunca esse estado de exceção. Exceção é o que acontece uma vez e exige atitudes extremas como a de ficar longe de vocês, meus pequenos netos.

Maior do que a coragem de viver, o tempo requer a coragem de sobreviver. Sobreviver como pessoa e como cidade. Sobreviver como cultura e como país. Sobreviver mantendo os valores de solidariedade e de empatia, jamais cedendo ao egoísmo de se salvar sozinho e que o resto se vire.

Estamos atravessando dias difíceis por causa de um vírus que teria começado na longínqua China. E todas as famílias têm o dever de muito zelo de uns com os outros. Começa com cuidados simples de lavar bem as mãos e ficar em casa. Chamam essa medida de quarentena. E por coincidência estamos num período de 40 dias que antecede a Páscoa dos Ovinhos, chamado quaresma.

Esse período foi ensinado para mim, quando pequena, como sendo a passagem de Jesus pela Terra, desde os seus ensinamentos de amor até ser condenado injustamente a morrer na cruz. Algo muito difícil. Insuportável - até hoje, já velha, pretendo tirá-lo dos pregos.

E os adultos suportavam restrições durante a quaresma, que consistiam em não comer carne às sextas-feiras, principalmente na Sexta-feira Santa, dia da morte do bom Jesus, ser sóbrio, não cantar, não dançar ou outras distrações.

Uma coisa triste era a Via- Crúcis. A maioria das crianças fugia. Mas, finalmente, os sinos tocavam a Ressurreição de Cristo, e nas cestas o coelho, que não é galinha, depositava os ovinhos.

Como sabem, fui criada num hotel e o sacrifício de não comer carne era substituído por bacalhau e tortéi de abóbora. Uma delícia feita pela nonna Eliza. Justamente o que eu mais gostava. Então, eu dava glória ao castigo.

Pois bem, agora a minha enorme penitência não é não sair de casa, mas não poder, meus pequenos, abraçá-los forte com ambos os braços e cheirar os seus cangotes.

Tenho que segurar a saudade dentro de mim.

Minha saudade é como um passarinho amarelo que veio à minha varanda. Tentava levar um cisco para armar o ninho no alto.

Quando estava perto, o raminho ao bico caía.

Pois ele voltou três vezes e conseguiu.

Ele nos ensina a nunca desistir. Passarinho professor.

Bênção a vocês!
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* Poeta e patrona da Feira do Livro de Porto Alegre 2018 mariacarpi@terra.com.br
FONTE:
 https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=759cd8a709025b4da08baa831374cdd1
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