José de Souza
Martins*
O acúmulo de
gestos, atos, atitudes, palavras, palavrões, nestas últimas semanas do Brasil
transfigurado, o novo Brasil surpreendente e, mesmo, assustador, provoca o
temor de que algo está sendo tramado. O que pode transformá-lo em algo bem
diverso do que o povo brasileiro conhece e respeita.
A alegação
presidencial de que o governante se apoia em 31 milhões de pessoas com as quais
se comunica pelas redes sociais e, portanto, não pelo “Diário Oficial”, mostra
que o Brasil político é hoje dominado por uma fonte alternativa de
legitimidade, fora do marco das instituições e da Constituição. Diversa da
legitimidade procedente do voto popular que se expressa em duas fontes
complementares de poder, as casas do Legislativo e o Executivo. Este mesmo,
descaracterizado por um discutível presidencialismo de condomínio familiar,
escorregadio em face da lei e da ordem. Os guardiões das instituições calam-se
na cumplicidade do silêncio.
O apoio
presidencial à convocação de manifestações contra o Congresso Nacional e o
Supremo Tribunal Federal reforça temor de que as instituições estão
concretamente ameaçadas. Pescadores de águas turvas têm tido uma função
antidemocrática na história política do Brasil e já não há como não notar que a
pátria está sendo de nós todos usurpada.
Pode-se dizer que
tudo isso é apenas um conjunto de acasos, expressões de imprudência, de falta
de educação, de carência de civilidade dos que se aboletaram na organização do
Estado a partir de 1º de janeiro de 2019. O Brasil é assim mesmo, disse-me
alguém. Melhor não perder tempo com essa gente. Ora, é isso mesmo que essa
gente quer, que não prestemos atenção naquilo que destoa do que deveria ser.
Tudo vai para a
conta do acaso. Por acaso, o presidente é assim mesmo. Por acaso as coisas
acontecem fora da pauta cívica e do que é próprio da organização e da liturgia
do Estado brasileiro.
O acaso é frequente
nas tradições brasileiras. Por acaso, o Brasil foi descoberto, em abril de
1500, embora não tão por acaso, pois numa das primeiras cartas enviadas ao rei
de Portugal, o missivista lhe sugere que mande buscar um mapa na casa de
alguém, porque ali a nova terra já estava localizada. Aqui o acaso produz
consequências não casuais.
Por acaso, a
independência do Brasil foi proclamada pelo príncipe Dom Pedro. Ele achava que
estava proclamando uma coisa quando estava proclamando outra. Na tarde de 7 de
setembro de 1822, na colina do Ipiranga, pensava estar consolidando o lugar do
Brasil no Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve.
À noite, na Casa da
Ópera, no hoje Pátio do Colégio, ao ser inesperadamente aclamado rei do Brasil,
ficou sabendo que havia proclamado a Independência e a saída do Brasil do Reino
Unido de Portugal. Uma trama de jovens paulistas, ligados a José Bonifácio de
Andrada e Silva, resolvera colocá-lo na situação de fato de fundador do
Império.
A República foi
proclamada por acaso, contra o Partido Republicano. O marechal Deodoro
imaginava estar depondo o ministério quando de fato estava proclamando a República.
Levou um dia inteiro para descobrir isso. Até que o imperador, aprisionado com
sua família, desde cedo, decidiu propor aos carcereiros, oficiais do Exército,
sua saída do país, com a família, desde que assegurados a ela os meios
materiais de sobrevivência. Com isso, viabilizava a República sem derramamento
de sangue. Dom Pedro II foi o verdadeiro republicano daquele hora de incerteza.
O acaso fincou pé
na política brasileira, subjacente às peculiaridades de nossa estrutura
política. O Brasil não é, politicamente, um único país. Mas ao menos dois,
superpostos: o Brasil municipal e o Brasil nacional. O país dos municípios que,
já nos primeiros tempos do período colonial, eram chamados de República e mesmo
definidos como pátria, como fizeram os paulistas quando da Guerra dos Emboabas,
no século XVIII. Nele nasceu nosso nativismo e nosso ímpeto de independência.
O Brasil nacional
foi forjado pela metrópole, consolidou-se na unidade do Império. Na República
ganhou uma cara unitária, que se tornou também uma cara autoritária ou de
tendências autoritárias. Nas eleições de 2018, um traço dessa duplicidade
ganhou relevo. Os municípios colocaram entre parênteses sua tradição
democrática e elegeram um Congresso Nacional que abdica de seu poder e de seu
dever em face da legitimidade ilegal das ruas, manipuladas pelo afã do poder
absoluto.
Para votar,
compreensivelmente, contra o Partido dos Trabalhadores, o eleitorado cansado e
desiludido votou no autoritarismo do candidato residual do sistema político
degradado. Foi um voto contra, e não um voto a favor. Por acaso, elegeu as
almas penadas que sobraram do regime de 1964.
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* José de Souza
Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP.
Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre
outros livros, autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê Editorial).
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