quinta-feira, 31 de maio de 2018

Ana Cardoso: “A melhor mãe do mundo não existe”


 O livro está à venda nas livrarias portuguesas por 11,90 euros. © DR

Educação, depressão pós-parto, julgamento e feminismo. A brasileira Ana Cardoso, autora do novo livro "A Mãe é Top", fala de tudo um pouco. A conversa com o Observador é sobre tabus da maternidade.
Passam poucos minutos das 11h30 de um sábado quando nos encontramos com Ana Cardoso, a jornalista e socióloga brasileira que assina o bem humorado livro “A Mãe é Top” (Editorial Presença). Ana não está sozinha e traz consigo a filha mais velha, Anita. No decorrer da conversa, num café lisboeta, as duas falam com o Observador sobre as dificuldades da maternidade e também sobre a condição de ser mulher no Brasil — habituada a acompanhar a mãe nos diferentes eventos públicos, Anita tem respostas na ponta da língua e nenhum receio em fazer-se ouvir.

“A Mãe é Top” não é um livro de lamentos. Muito pelo contrário. A obra resulta de um conjunto de crónicas escritas sem filtro, onde as adversidades da maternidade são o ponto de partida e o ponto de chegada, unidas pelo humor. O nome do livro recentemente lançado em Portugal (no Brasil chama-se “A Mamãe é Rock”) pode soar familiar: Ana Cardoso é a mulher de Markus Piangers, o humorista e autor de “O Pai é Top”, motivo pelo qual já antes foi entrevistado pelo Observador. O casal, juntamente com as duas filhas, Anita e Aurora, são a família “top”, de grande sucesso no Brasil. O livro de Piangers já vendeu cerca de 200 mil exemplares e o de Ana estará a ultrapassar os 80 mil exemplares. Ambos são best-sellers — e ambos querem acabar com os mitos da maternidade e promover os pais participativos.

O livro, que chega agora a Portugal, é um best-seller no Brasil. “O Pai é Top” também. Como é que tudo aconteceu?
O primeiro livro do Markus, “O Pai é Top”, fez muito sucesso no Brasil. Recebi um convite para escrever o outro lado, sobre o que a mãe pensa sobre isso. Escrevi “A Mamãe é Rock”, no Brasil, que agora está a ser lançado em Portugal — “A Mãe é Top”. É um livro no qual mostro que, para existir um pai top, tem de existir também uma mãe top. Porque se a mãe não tiver consciência de que o pai precisa de participar mais, ela vai estar sempre frustrada porque não consegue dar conta de tudo, vai estar sempre cansada e vai estar, de uma forma ou de outra, excluindo o pai da relação com os filhos, o que torna a vida dela sobrecarregada. É muito melhor uma família que divide as tarefas e em que o pai está presente. A criança fica mais feliz. Em 2015, o meu marido lançou esse livro, que era uma compilação de crónicas que ele publicava num jornal do sul do Brasil, chamado Zero Horas. Esse livro… a gente não esperava que ele fosse fazer tanto sucesso. Eram crónicas nas quais o Markus falava da relação dele com as meninas. Eram situações muito quotidianas e que a gente não imaginava que as pessoas fossem receber isso com tanta surpresa.

O seu livro, em particular, quer tirar alguma responsabilidade de cima dos ombros das mães. Porquê?
Eu e o Markus começámos a ter filhos em 2005, quando a Anita nasceu. Isso modificou muito a nossa vida. Não tinha planeado ter filhos tão cedo. Queria ter filhos, mas pensava em tê-los mais tarde. Foi uma mudança um pouco radical. Tive uma gravidez de risco, tive de parar de trabalhar. De repente, fui privada de tudo o que conhecia como vida e liberdade. Passei a ficar em casa, cuidando da Anita. No começo, isso assustou-me um pouco. Na época não se falava em baby blues, em depressão pós-parto. Quando uma mãe não estava 100% feliz com aquele momento, as pessoas julgavam. Hoje, felizmente, pode-se falar desse assunto. É um momento lindo? É. Mas é um momento muito delicado e para ele ser lindo a mãe tem de estar bem acolhida. Desde que a Anita nasceu isso gerou muitas reflexões em mim.

"Na época não se falava em baby blues, em depressão pós-parto. Quando uma mãe não estava 100% feliz com aquele momento, as pessoas julgavam. Hoje, felizmente, pode-se falar desse assunto. É um momento lindo? É. Mas é um momento muito delicado e para ele ser lindo a mãe tem de estar bem acolhida." 
 
Com que tabus é que se deparou quando começou a escrever sobre a maternidade?
É difícil falar que o pai também tem de participar e que a melhor mãe do mundo não existe… Falar sobre isto deveria ser algo muito antigo, mas é muito moderno. Mesmo mulheres que são bem-sucedidas na carreira sentem muita culpa em casa, como se tivessem de compensar. Como se tivessem de ser tão boas em casa como no trabalho. [Há a ideia] de que é preciso ser a super mãe, a super dona de casa, a esposa linda, sempre bem-disposta. É muito difícil ter sucesso numa coisa… imagina em todas ao mesmo tempo.

“Um dia, o autocarro avaria-se, a chucha cai na sarjeta e os nossos ombros pesam-nos. No outro, um sorriso
 
com o olhar e um par de mãozinhas que nos apertam com força fazem-nos sentir fortes e importantes.

Um dia, já não aguentamos lavar lençóis com chichi, cheirar a vómito e ter as olheiras de um panda. No outro, dormimos agarradas à nossa prole numa cama pequena e percebemos que nunca edredão algum nos fará sentir a plenitude daquele calor humano.

Um dia, apanhamos muito trânsito e chegamos tão tarde à creche que os últimos funcionários, que ainda ali estão por nossa causa, refletem aquele sentimento misto entre ódio e pena de nós. No outro, saímos sós e, em vez de nos sentirmos livres, sentimos saudades daquelas pessoazinhas e entendemos que as nossas emoções nunca mais serão claras depois de termos passado por um processo de multiplicação.” [excerto de “A Mãe é Top”]

"É difícil falar que o pai também tem de participar e que a melhor mãe do mundo não existe… Falar sobre isto deveria ser algo muito antigo, mas é muito moderno. Mesmo mulheres que são bem-sucedidas na carreira sentem muita culpa em casa, como se tivessem de compensar." 
 
O livro aborda a contradição que existe entre a vida real e a internet, tendo em conta a maternidade. De que contradição estamos a falar?
Quando a gente mostra algo mais real, existe um julgamento na internet. São os tribunais digitais. Quando uma mãe reclama, muitas vezes ela é criticada por pessoas que não pararam para fazer uma reflexão. As pessoas preferem criticar em vez de oferecer ajuda. Tenho uma conta de Instagram: vou postar a foto da minha filha aqui linda, no café, tomando um sumo de laranja, toda bonitinha, ou vou postar a foto dela à hora em que ela acorda, toda descabelada? Não, a gente vai postar a foto bonita, porque a gente quer mostrar o lado mais bonito da nossa vida. Só que na narrativa geral da sociedade, quando tu olhas no Instagram, tu só vês coisas lindas. Ninguém mostra as coisas feias. E aí muita gente olha para a sua vida e pensa “aí, poxa”. Isso gera um sofrimento. Uma frustração.

É possível libertarmo-nos disso, dessa frustração? Acha que este discurso pode efetivamente mudar mentalidades?
No Brasil a gente vê esse movimento muito forte, não sou só eu que falo sobre isto. Quando a gente produz este tipo de conteúdo, a gente liberta as outras mães. Por exemplo, o meu livro tem crónicas que mostram o quão falível é uma mãe. Eu quero dar um lanche saudável para as minhas filhas, mas elas não querem comer. E aí? Não gosto de dirigir no trânsito. Quando estou conduzindo e elas começam a brigar, eu fico sonhando com aqueles filmes de Nova Iorque em que o táxi sobe a janela e deixa de ouvir as pessoas no banco de trás. Faz diferença quando eu admito de uma forma leve, doce e não agressiva que tem coisas que não são tão legais assim…

"Quando a gente mostra algo mais real, existe um julgamento na internet. São os tribunais digitais. Quando uma mãe reclama, muitas vezes ela é criticada por pessoas que não pararam 
para fazer uma reflexão. As pessoas preferem 
criticar em vez de oferecer ajuda."  
 
Sente que há muita identificação quando conta essas histórias?
Muito. Quando lancei o livro, criei uma conta de Facebook com o nome “A  Mamãe é Rock”, para conversar com os leitores. No Facebook, a gente vê muito isso. Eu escrevo uma crónica sobre algum assunto — sei lá, sobre o peso da mochila — e muitas mães contam o que acontece na casa delas. Tu acabas chegando a várias pessoas.

Markus e Ana Cardoso, ambos autores, com as duas filhas 

No início do livro escreve sobre um blogue que chegou a ter, o qual não foi bem recebido porque “a sociedade não estava pronta para ele”…
A certa altura a gente foi morar numa cidade no sul do Brasil. Eu sou socióloga: nas cidades que passaram por guerras em algum momento, em que os homens foram lutar e as mulheres ficaram a fazer tudo, tal como aconteceu na Segunda Grande Guerra, quando os homens voltam para casa, eles são divinizados e as mulheres ficam diminuídas. Esses lugares têm muito machismo, tanto dos homens como das mulheres. Isso vai passando de geração em geração e vai mudando muito pouco. Porto Alegre passou por guerras. Eu não estava acostumada a este tipo de sociedades tão machistas, então, escrevi sobre isso. Mas isso foi antes deste blogue coletivo. Esse blogue coletivo… Eu estava grávida da Aurora e pensei “Vou fazer um blogue sobre o que estou sentido de verdade”, encontrei outras amigas e aí fomos. Do género, não aguento amamentar… A gente percebeu que quando éramos muito verdadeiras, as pessoas não gostavam e os filhos, já maiores, não queriam que as mães escrevessem sobre eles. Pensei que a sociedade ainda não estava pronta.

Mas 2012 foi ontem…
Sim, mas aconteceu uma virada muito forte. Em 2015 aconteceu o que a gente chama de “Primavera Feminista” no Brasil. As propagandas de cerveja sempre foram muito sexualizadas e misóginas. Era sempre uma mulher gostosa, de biquíni mínimo, servindo cervejas para homens. O que é que uma mulher nua tem que ver com cerveja? Como se as mulheres não bebessem cerveja, inclusive. Aí teve uma situação, no carnaval de 2015, em que uma marca de cerveja extrapolou: fez uma campanha nas paragens de onibús falando assim: “Esqueceu o não em casa”. O que significa isso, que a mulher não pode dizer não? É uma apologia à cultura do estupro. Então o carnaval é isso? Mulher só pode dizer sim? Algumas publicitárias fizeram intervenções com fita isolante e acrescentaram “e trouxe o nunca”. Essa discussão passou a estar presente não só nos grupos feministas, mas na sociedade toda. Amplificou. Depois veio uma outra situação, no Masterchef Júnior, com uma menina de 12 anos — mais nova do que a Anita. Muitos homens começaram a fazer piadas que queriam transar com a menina porque ela era bonitinha. Aí foi criada a campanha “O meu primeiro assédio” e muitas pessoas começaram a contar sobre quando tinham sofrido o primeiro assédio. Foi uma catarse nacional. A partir dali ficou muito mais fácil ser feminista no Brasil.

Anita: Mas é muito triste porque muitas pessoas ainda acham que ser feminista é odiar os homens. Quando a minha mãe diz que é feminista falam para ela que ela não gosta de homens. Aí ela diz: “Muito pelo contrário. Sou casada e tenho duas filhas”. Feminismo é só igualdade.

"A gente percebeu que quando éramos muito verdadeiras, as pessoas não gostavam e os filhos, já maiores, não queriam que as mães escrevessem sobre eles. Pensei que a sociedade 
ainda não estava pronta." 
 
Está a educar as suas filhas para serem feministas?
Aos 10 anos, a Anita era uma feminista autodeclarada. Era até cedo demais. É claro que as educo para serem feministas porque não quero que elas sofram opressão de género. Quero que entendam que é mais difícil ser mulher e que, por isso, a gente tem de lutar todo o dia, por igualdade de salário, por igualdade de direitos. Mas tem coisas que a gente ensina mais pelo exemplo, não adianta ter todo um discurso afirmativo e, na prática, não agir assim. O que faço muito em casa é… Hoje em dia, eu sei dar nome aos meus desconfortos. Se existe alguma situação que eu não gosto, que acho que tem machismo, educadamente converso com o Markus. Acho que isso é muito importante. A gente vive numa prisão, na qual não tem vocabulário para explicar as coisas. Os homens são ensinados a deslegitimar os sentimentos das mulheres, acusando-as de loucas e isso é extremamente cruel.

"Mas é muito triste porque muitas pessoas ainda acham que ser feminista é odiar os homens. Quando a minha mãe diz que é feminista falam para ela que ela não gosta de homens. Aí ela diz 'Muito pelo contrário. Sou casada e tenho duas filhas'. Feminismo é só igualdade."
Anita, filha mais velha de Ana Cardoso 
 
Existem desvantagens de ser mulher/menina?
Ana Cardoso:
Na maternidade, o que se cobra de uma mãe e de um pai é absolutamente diferente. Não deveria ser assim.
Anita: Uma coisa que me incomoda no dia a dia é que, na escola, a partir do 6º ano, as meninas já não podem usar shorts, saia ou camisola de alças. Os meninos não têm restrições.
Ana Cardoso: Em Porto Alegre, umas meninas fizeram o movimento “Vai ter shortinho” porque o short foi proibido nas escolas e lá é muito quente. Não é a roupa que define se vai ter ou não estupro. Se roupa definisse alguma coisa, nos países onde as mulheres andam tapadas da cabeça aos pés não haveria violência contra as mulheres. E nós sabemos que existe. O que define um ato de violência é a presença de um estuprador.

Ana Cardoso, ao centro, com as duas filhas: Aurora e Anita 

Tens redes sociais, Anita?
Anita:
Tenho Snapchat, Instagram, Twitter, que não uso, Facebook e Skype. Mas o que uso mais é o Instagram, mas não uso como rede social.
Ana Cardoso: Ela não publica, ela consome, gosta de ver vídeos.

Que regras foram definidas para começares a usar o Instagram?
Anita:
A conta é privada, só aceito quem conheço.

Ana Cardoso: Essa é uma regra. Não aceitar estranhos, não conversar com estranhos. Mas não senti grande necessidade de colocar regras. A Anita não publica quase nada.

Qual é a sua opinião sobre a exposição das crianças nas redes sociais?
Entendo que a gente tem de proteger as crianças. Tem gente que não publica fotos dos filhos e tem gente que publica fotos deles sem roupa ou com o uniforme da escola. É muito fácil descobrir tudo de uma pessoa que publica demais. Mas a gente sabe que esta questão dos dados… Uma foto é a ponta do icebergue.

"Quando você tem um filho, o tempo todo você está ensinando. E vejo as pessoas reclamar muito das escolas, como se as escolas fossem o espaço de educação. Para educar bem o filho, temos de estar bastante tempo com ele. Ser mãe e ser pai é uma oportunidade para nos tornarmos uma pessoa melhor." 
 
Mas deve ser um desafio acrescido educar um pré-adolescente numa altura destas…
A nossa mais pequena gosta de ver vídeos no YouTube — combinei com ela que pode ver desenhos, mas que tenham roteiro, isto é, começo, meio e fim. Agora esses youtubers abrindo presentes como se eles nascessem em árvores, não é legal. As marcas também mandam muitas coisas para nós, mas a gente não faz isso. A gente vive num mundo em que nem todos têm as mesmas condições.

No livro escreve que ter um filho é ter superpoderes, na medida em que os pais são o derradeiro exemplo…
Tem uma questão muito simples, que não tem que ver com os superpoderes, mas sim com as mentirinhas que contamos. Muitas vezes as crianças são inteligentes, são espertas, elas percebem logo. Mais, quando estou com a Anita tenho preocupação com a minha linguagem e não vou ter uma atitude imoral. Quando você tem um filho, o tempo todo você está ensinando. E vejo as pessoas reclamar muito das escolas, como se as escolas fossem o espaço de educação. Para educar bem o filho, temos de estar bastante tempo com ele. Ser mãe e ser pai é uma oportunidade para nos tornarmos uma pessoa melhor.
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Reportagem por  Ana Cristina Marques
Fonte:  https://observador.pt/especiais/ana-cardoso-a-melhor-mae-do-mundo-nao-existe/ 31/05/2018

quarta-feira, 30 de maio de 2018

A BURGUESIA: um fenômeno que todos querem e todos atacam


António Alçada Baptista*
 Imagem relacionada

Não me importa nada por ser burguês, mas se o não fosse não seria para aderir ao proletariado. O contrário de burguês é o boêmio e o marginal.

Um burguês é um senhor integrado numa sociedade com uma estrutura que lhe permite ter uma casinha, uma comida a tempo e horas, uma capacidade de escolher o que quer vestir. Um automóvel e assim. Estes desejos são perfeitamente legítimos e a sociedade devia organizar-se de maneira que todos tivéssemos essa participação no reino das coisas. A verdade é que a reivindicação dos homens anda sempre à roda do mundo das coisas e com muita dificuldade encontramos alguém que faça reivindicações: no amor, na paz, na fraternidade, numa data de coisas de que a intelligentsia fala nos seculos XIX e XX e que pouco tinham a ver com as coisas.

Não quero dizer que tenhamos que por de parte as coisas. Gandhi é que ficou muito contente porque numa de suas caminhadas partiu o espelho de fazer a barba, mas quando chegou a um lugar onde se vendiam espelhos, ele já não precisava porque tinha aprendido a fazer a barba sem espelho. O verdadeiro despojamento é das coisas, mas eu confesso, que tive algumas amarras que me ligaram ao mundo das coisas. Eram os livros. Um menino burguês tinha livros e a sua vida andava à volta dos livros que já tinha, dos que que lhe faltavam, dos que tinha de comprar de qualquer maneira. Na minha juventude havia muitos assim era uma espécie de confraria de meninos que compravam livros, não sei se os liam, mas era um comportamento que está inerente à nossa condição. Fartei-me de comprar livros ao ponto de não poder ler os livros que comprava. “Ficam para a minha velhice”, dizia eu na tentativa de ter um fim de vida enobrecido.

“A reivindicação dos homens anda sempre 
à roda do mundo das coisas. Com dificuldade 
encontramos amor, paz, fraternidade.”

Acontece é que, a certa altura, não se trata já de comprar livros mas de ter onde os arrumar. A minha casa de Lisboa, as minhas salas da quinta vivem assim, rodeadas de livros, como eu sonhava na minha meninice. Este interesse fundamental pelos livros, que iria coroar a minha velhice, não se vai realizar porque difícil em minha casa é encontrar um livro e já não tenho a minha vida encaminhada para essas cerimônias.

O grave é eu não ter outros interesses nesta altura da vida. Um amigo meu, com 82 anos, foi muito contente com a mulher à Argentina, exatamente com o espírito e o rito de quem vai viajar. Também não pendo para aí. Viajei pela França e pela Itália quando era novo e depois passei para o Brasil, para Cabo Verde, por Goa e assim. Fiquei bastante preso aos países de língua portuguesa e sempre me encontrei lá como se fosse a minha própria Pátria. “A minha Pátria é a língua portuguesa” é uma frase de Fernando Pessoa em que acredito em que acredito muito. Isto porque as línguas devem manter sempre um poder de criação e não há nada como a convivência linguística para acordar uma língua destinada a morrer. Por todos esses lugares da língua portuguesa encontrei pessoas que tinham da linguagem uma intenção próxima da minha.

Isso começou pelo mundo das coisas em que eu disse que não acreditava porque não vibrava com elas. Falei nos livros que comprava como se fosse um pecado que me enobrecia. Imaginei grandes serões de leitura para quando chegasse ao Outono dos meus dias. Já não leio os livros, aqueles que tenho lá por casa e que eu julgava que iriam fazer a minha felicidade, quando não tivesse já nada para fazer. Estou assim como alguém a quem correu tudo ao contrário mas persisto em não estar arrependido de nada do que fiz.

*Escritor. Advogado. Romancista português.

Imagem da Internet

terça-feira, 29 de maio de 2018

O universo de Philip Roth, segundo seus tradutores no Brasil



 Foto: Eric Thayer /Reuters O escritor americano Philip Roth, 
 
Em entrevistas ao ‘Nexo’, Paulo Henriques Britto e Jorio Dauster analisam a obra do autor americano, que morreu aos 85 anos

De 1959, ano do lançamento de “Adeus, Columbus”, até meados de 2010, com “Nêmesis”, Philip Roth escreveu quase 30 romances, além de ensaios e textos críticos. Considerado por muitos o maior escritor americano em atividade, Roth morreu na noite de terça-feira (22), vítima de insuficiência cardíaca.

 Sua prosa criou personagens icônicos e retratou tipos que simbolizam a sociedade americana do século 20, em suas idiossincrasias e fobias. Sexo e culpa, identidade e ruptura, a vida provinciana e o desejo de se descolar dela são elementos fundadores da obra de Roth, que decidiu parar de escrever em 2010, considerando ter feito o melhor que pôde.

Sobre a própria obra, escreveu: “[John] Updike e [Saul] Bellow seguram suas lanternas no mundo, revelam o mundo como ele é agora. Eu cavo um buraco e miro minha lanterna para o buraco”.

Boa parte da obra de Philip Roth editada no Brasil foi vertida para o português por dois cariocas, Paulo Henriques Britto e Jorio Dauster. No total, Britto traduziu nove livros do autor – o primeiro deles foi “A Marca Humana”, em 2002, tido por muitos como o ponto alto da carreira do americano.

Jorio Dauster começou a trabalhar com a obra de Roth em “Indignação”, de 2009, e foi responsável por outras cinco traduções, entre elas a de “Patrimônio” (romance de tom autobiográfico, onde o escritor narra a conflituosa relação com o próprio pai).

O Nexo formulou seis perguntas sobre Roth e lançou-as aos dois tradutores. Abaixo, as reflexões de Britto e Dauster sobre o traço inconfundível da obra de Philip Roth.

Qual o lugar de Roth na literatura do século 20?

Paulo Henriques Britto
Roth é um dos maiores nomes da ficção em língua inglesa. Ele se situa basicamente no campo do realismo, mas se permite algumas incursões pelo fantástico.

Jorio Dauster
Muitas vezes comparado a Saul Bellow, John Updike e Norman Mailer, Roth certamente está entre os maiores autores americanos da segunda metade do século 20, mesmo que coloquemos nessa lista meus preferidos, J.D. Salinger e Vladimir Nabokov. Com exceção do Bellow, nenhum dos citados, assim como Roth, recebeu o prêmio Nobel de Literatura, mas agora se sabe que havia algo de podre no reino da... Noruega.

Qual a marca literária de Roth?

Paulo Henriques Britto
O que sobressai na obra de Roth é sem dúvida a intensidade de sua prosa. Ele não tem medo de surtar. Mesmo dentro da chave realista, ele envereda para o insólito, o que o liga de certa forma a um Dostoiévski. Outros autores dessa linhagem realista, como John Updike, acabam falando sobre vidas que não saem muito daquele mesmo lugar. Ele se permite excessos de todos os tipos, levando a narrativa realista às raias do fantástico, e vez por outra rompe com esses limites. Talvez por ter uma filiação ao que quase poderia se chamar de ‘escola judaica’ de escrita, que formou tantos escritores americanos, ele faz uso mais lúdico e destemido da linguagem.

Jorio Dauster
Ao contrário de um [Vladimir] Nabokov, mestre em ourivesaria verbal, Roth tem um estilo forte mas escorreito. Nos seus últimos livros, a linguagem é mais contida e a própria narrativa é mais compacta, talvez porque ele já não se sentisse capaz de enfrentar a “humilhação” que significava produzir uma obra, tal era a intensidade com que escrevia.

Como o autor explora a identidade judaica?

Paulo Henriques Britto
Mais especificamente, a identidade de um judeu norte-americano de sua época, sem nenhuma intenção de chegar a nenhuma essência judaica. Dentro da melhor tradição realista, ele trabalha com o meio e o tempo em que viveu, mas consegue extrapolar daí para o plano do universalmente humano, como todo escritor realmente grande.

Jorio Dauster
Não creio que Roth seja relevante para entender a identidade judaica no mundo. Seu foco - e seu problema existencial - estava na sociedade americana e em como a terceira geração dos imigrantes judeus poderia alcançar a aculturação plena. A partir dos avós que chegaram na metade do século 19 e foram viver nos guetos aceitando salários miseráveis, ele tinha visto como a segunda geração já era capaz de funcionar relativamente bem no seu país de nascimento por falar inglês e conhecer os costumes locais, embora frequentemente falasse iídiche em casa e o comparecimento à sinagoga fosse compulsório. No entanto, os judeus continuavam a viver em comunidades fechadas e, como aconteceu com seu pai, por mais que se esforçassem, os homens jamais puderam galgar os escalões mais altos das empresas em que trabalhavam porque esses estavam reservados aos góis. A história pessoal e a obra literária de Roth são o testemunho do que lhe custou escapar desse confinamento físico e mental.

O tom crítico sobre os EUA: que país ele retratou?

Paulo Henriques Britto Roth nunca foi de esquerda: é um americano liberal que se orgulha das realizações do seu país e se envergonha do que há de mal resolvido na cultura americana, em particular a institucionalização do racismo, como fica claro em “A Marca Humana” e “Complô contra a América”. No primeiro, ele entra na pele de um negro para mostrar o racismo institucional, muito antes de problematizarmos ‘lugar de fala’. No último, ele fala de um país que concentra a maior parte dos judeus do mundo e onde, ao mesmo tempo, sobrevive um antissemitismo forte, nem sempre mascarado. Os Estados Unidos demoraram para entrar na Segunda Guerra Mundial, um pouco em função desse preconceito.

Jorio Dauster
Ele retratou um país ainda castigado pela recessão, logo depois torturado pelas guerras, e em que sua raça era vítima de um forte preconceito. Mais tarde, o que ele viu foi o desmoronar do “American dream” (sonho americano), de onde brota um sentimento nostálgico com relação ao passado, e felizmente ainda teve tempo de chamar publicamente Trump de bufão! Não obstante, sempre sentiu imenso orgulho de ser um cidadão dos Estados Unidos.

Qual a inovação nas descrições que ele fez do sexo e da velhice?

Paulo Henriques Britto
Está no fato de ele não ter medo do excesso, do exagero, da caricatura, de levar um estereótipo até as raias da loucura. Seus últimos quatro livros são curtos e compõem uma safra concisa sobre a velhice. Nem são tão bons assim, o que é até permitido para um autor como Roth, que produziu outros tantos livros bons. Essas obras sobre a velhice são livros de velho para velho, com uma obsessão pelo sexo nessa idade e na ideia de finitude. Em “Fantasma sai de cena”, ele confunde realidade e fantasia, a ponto de o leitor não saber discernir ambas, ao final do romance.

Jorio Dauster
Em matéria sexual, a única coisa realmente inovadora para mim foi uma peça de fígado, comprada no açougue para uso da família no jantar, ser usada a caminho de casa para a prática do onanismo. De resto, como se pode ver em “O professor do desejo”, o que existe é uma forte obsessão que ele extravasa inclusive através de seu alter ego, David Kepesh, e envolve as tradicionais ménages à trois, sadomasoquismo etc. Quanto à velhice, que ele definia como um “massacre”, não encontrei nada de revolucionariamente original, mas sim páginas antológicas onde ele retrata toda a angústia do ser humano diante da deterioração física e da morte. Traduzi muitas passagens de “O patrimônio”, onde ele relata a enfermidade fatal do pai, com lágrimas nos olhos.

As acusações de misoginia: questão geracional?

Paulo Henriques Britto
Sua obra reflete os preconceitos e limitações de um homem de sua geração e com a sua formação. A misoginia está lá, mas a abordagem dele é impiedosa com tudo e com todos. Ele não poupa ninguém nem nada, muito menos ele próprio, como homem, branco, judeu e americano.

Jorio Dauster
Ele fez tudo para se livrar de uma típica mãe judia, para quem a limpeza era uma graça divina, e caiu nos braços de uma megera branca, anglo-saxã e protestante que infernizou sua vida durante muitos anos e com quem só se casou quando ela trouxe uma prova falsa de que estava grávida. Mais tarde, viveu com a grande atriz Claire Bloom, o que deve ter alimentado uma guerra de egos que só fez se agravar quando ele passou a viver na Inglaterra a fim de passar mais tempo com ela. Mas, em “Quando ela era boa”, Roth aproveita elementos da vida da primeira esposa para – no único livro em que a protagonista principal é uma mulher e onde não aparece um só judeu – fazer um retrato devastador de uma família pequeno-burguesa do Centro-Oeste e de uma moralista americana que se destrói ao tentar reformar os homens ao seu redor. As mulheres sem dúvida não saem bem em suas fotos, mas será por misoginia ou simplesmente por vingança existencial?
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