terça-feira, 29 de maio de 2018

O universo de Philip Roth, segundo seus tradutores no Brasil



 Foto: Eric Thayer /Reuters O escritor americano Philip Roth, 
 
Em entrevistas ao ‘Nexo’, Paulo Henriques Britto e Jorio Dauster analisam a obra do autor americano, que morreu aos 85 anos

De 1959, ano do lançamento de “Adeus, Columbus”, até meados de 2010, com “Nêmesis”, Philip Roth escreveu quase 30 romances, além de ensaios e textos críticos. Considerado por muitos o maior escritor americano em atividade, Roth morreu na noite de terça-feira (22), vítima de insuficiência cardíaca.

 Sua prosa criou personagens icônicos e retratou tipos que simbolizam a sociedade americana do século 20, em suas idiossincrasias e fobias. Sexo e culpa, identidade e ruptura, a vida provinciana e o desejo de se descolar dela são elementos fundadores da obra de Roth, que decidiu parar de escrever em 2010, considerando ter feito o melhor que pôde.

Sobre a própria obra, escreveu: “[John] Updike e [Saul] Bellow seguram suas lanternas no mundo, revelam o mundo como ele é agora. Eu cavo um buraco e miro minha lanterna para o buraco”.

Boa parte da obra de Philip Roth editada no Brasil foi vertida para o português por dois cariocas, Paulo Henriques Britto e Jorio Dauster. No total, Britto traduziu nove livros do autor – o primeiro deles foi “A Marca Humana”, em 2002, tido por muitos como o ponto alto da carreira do americano.

Jorio Dauster começou a trabalhar com a obra de Roth em “Indignação”, de 2009, e foi responsável por outras cinco traduções, entre elas a de “Patrimônio” (romance de tom autobiográfico, onde o escritor narra a conflituosa relação com o próprio pai).

O Nexo formulou seis perguntas sobre Roth e lançou-as aos dois tradutores. Abaixo, as reflexões de Britto e Dauster sobre o traço inconfundível da obra de Philip Roth.

Qual o lugar de Roth na literatura do século 20?

Paulo Henriques Britto
Roth é um dos maiores nomes da ficção em língua inglesa. Ele se situa basicamente no campo do realismo, mas se permite algumas incursões pelo fantástico.

Jorio Dauster
Muitas vezes comparado a Saul Bellow, John Updike e Norman Mailer, Roth certamente está entre os maiores autores americanos da segunda metade do século 20, mesmo que coloquemos nessa lista meus preferidos, J.D. Salinger e Vladimir Nabokov. Com exceção do Bellow, nenhum dos citados, assim como Roth, recebeu o prêmio Nobel de Literatura, mas agora se sabe que havia algo de podre no reino da... Noruega.

Qual a marca literária de Roth?

Paulo Henriques Britto
O que sobressai na obra de Roth é sem dúvida a intensidade de sua prosa. Ele não tem medo de surtar. Mesmo dentro da chave realista, ele envereda para o insólito, o que o liga de certa forma a um Dostoiévski. Outros autores dessa linhagem realista, como John Updike, acabam falando sobre vidas que não saem muito daquele mesmo lugar. Ele se permite excessos de todos os tipos, levando a narrativa realista às raias do fantástico, e vez por outra rompe com esses limites. Talvez por ter uma filiação ao que quase poderia se chamar de ‘escola judaica’ de escrita, que formou tantos escritores americanos, ele faz uso mais lúdico e destemido da linguagem.

Jorio Dauster
Ao contrário de um [Vladimir] Nabokov, mestre em ourivesaria verbal, Roth tem um estilo forte mas escorreito. Nos seus últimos livros, a linguagem é mais contida e a própria narrativa é mais compacta, talvez porque ele já não se sentisse capaz de enfrentar a “humilhação” que significava produzir uma obra, tal era a intensidade com que escrevia.

Como o autor explora a identidade judaica?

Paulo Henriques Britto
Mais especificamente, a identidade de um judeu norte-americano de sua época, sem nenhuma intenção de chegar a nenhuma essência judaica. Dentro da melhor tradição realista, ele trabalha com o meio e o tempo em que viveu, mas consegue extrapolar daí para o plano do universalmente humano, como todo escritor realmente grande.

Jorio Dauster
Não creio que Roth seja relevante para entender a identidade judaica no mundo. Seu foco - e seu problema existencial - estava na sociedade americana e em como a terceira geração dos imigrantes judeus poderia alcançar a aculturação plena. A partir dos avós que chegaram na metade do século 19 e foram viver nos guetos aceitando salários miseráveis, ele tinha visto como a segunda geração já era capaz de funcionar relativamente bem no seu país de nascimento por falar inglês e conhecer os costumes locais, embora frequentemente falasse iídiche em casa e o comparecimento à sinagoga fosse compulsório. No entanto, os judeus continuavam a viver em comunidades fechadas e, como aconteceu com seu pai, por mais que se esforçassem, os homens jamais puderam galgar os escalões mais altos das empresas em que trabalhavam porque esses estavam reservados aos góis. A história pessoal e a obra literária de Roth são o testemunho do que lhe custou escapar desse confinamento físico e mental.

O tom crítico sobre os EUA: que país ele retratou?

Paulo Henriques Britto Roth nunca foi de esquerda: é um americano liberal que se orgulha das realizações do seu país e se envergonha do que há de mal resolvido na cultura americana, em particular a institucionalização do racismo, como fica claro em “A Marca Humana” e “Complô contra a América”. No primeiro, ele entra na pele de um negro para mostrar o racismo institucional, muito antes de problematizarmos ‘lugar de fala’. No último, ele fala de um país que concentra a maior parte dos judeus do mundo e onde, ao mesmo tempo, sobrevive um antissemitismo forte, nem sempre mascarado. Os Estados Unidos demoraram para entrar na Segunda Guerra Mundial, um pouco em função desse preconceito.

Jorio Dauster
Ele retratou um país ainda castigado pela recessão, logo depois torturado pelas guerras, e em que sua raça era vítima de um forte preconceito. Mais tarde, o que ele viu foi o desmoronar do “American dream” (sonho americano), de onde brota um sentimento nostálgico com relação ao passado, e felizmente ainda teve tempo de chamar publicamente Trump de bufão! Não obstante, sempre sentiu imenso orgulho de ser um cidadão dos Estados Unidos.

Qual a inovação nas descrições que ele fez do sexo e da velhice?

Paulo Henriques Britto
Está no fato de ele não ter medo do excesso, do exagero, da caricatura, de levar um estereótipo até as raias da loucura. Seus últimos quatro livros são curtos e compõem uma safra concisa sobre a velhice. Nem são tão bons assim, o que é até permitido para um autor como Roth, que produziu outros tantos livros bons. Essas obras sobre a velhice são livros de velho para velho, com uma obsessão pelo sexo nessa idade e na ideia de finitude. Em “Fantasma sai de cena”, ele confunde realidade e fantasia, a ponto de o leitor não saber discernir ambas, ao final do romance.

Jorio Dauster
Em matéria sexual, a única coisa realmente inovadora para mim foi uma peça de fígado, comprada no açougue para uso da família no jantar, ser usada a caminho de casa para a prática do onanismo. De resto, como se pode ver em “O professor do desejo”, o que existe é uma forte obsessão que ele extravasa inclusive através de seu alter ego, David Kepesh, e envolve as tradicionais ménages à trois, sadomasoquismo etc. Quanto à velhice, que ele definia como um “massacre”, não encontrei nada de revolucionariamente original, mas sim páginas antológicas onde ele retrata toda a angústia do ser humano diante da deterioração física e da morte. Traduzi muitas passagens de “O patrimônio”, onde ele relata a enfermidade fatal do pai, com lágrimas nos olhos.

As acusações de misoginia: questão geracional?

Paulo Henriques Britto
Sua obra reflete os preconceitos e limitações de um homem de sua geração e com a sua formação. A misoginia está lá, mas a abordagem dele é impiedosa com tudo e com todos. Ele não poupa ninguém nem nada, muito menos ele próprio, como homem, branco, judeu e americano.

Jorio Dauster
Ele fez tudo para se livrar de uma típica mãe judia, para quem a limpeza era uma graça divina, e caiu nos braços de uma megera branca, anglo-saxã e protestante que infernizou sua vida durante muitos anos e com quem só se casou quando ela trouxe uma prova falsa de que estava grávida. Mais tarde, viveu com a grande atriz Claire Bloom, o que deve ter alimentado uma guerra de egos que só fez se agravar quando ele passou a viver na Inglaterra a fim de passar mais tempo com ela. Mas, em “Quando ela era boa”, Roth aproveita elementos da vida da primeira esposa para – no único livro em que a protagonista principal é uma mulher e onde não aparece um só judeu – fazer um retrato devastador de uma família pequeno-burguesa do Centro-Oeste e de uma moralista americana que se destrói ao tentar reformar os homens ao seu redor. As mulheres sem dúvida não saem bem em suas fotos, mas será por misoginia ou simplesmente por vingança existencial?
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