terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Até onde irão os Indignados?

Manuel Castells*

Manuel Castells aposta: ao recuar,
quando ação se desgastou,
movimento revelou maturidade surpreendente.
Assumiu novas formas.
Reemergirá,
quando crise exigir
O movimento de indignados, que surgiu em 2011 na Espanha, Europa e Estados Unidos, é uma lufada de ar fresco em um mundo que cheira a podre. Expuseram nas redes sociais e em acampamentos o que muitos pensam: que os bancos e os governos criaram a crise; que as pessoas sofrem com ela; que os políticos apenas representam a si mesmos; que os meios de comunicação estão condicionados; que não existem vias para que o protesto social se traduza em verdadeiras mudanças, porque na política tudo está amarrado – e bem amarrado, para que as mesmas pessoas de sempre continuem cobrando e as mesmas pagando.
Por isso, durante meses, dezenas de milhares de pessoas participaram de assembleias e manifestações e por isso a maioria dos cidadãos (até 73%, na Espanha) compartilha de suas críticas. E tudo isso de forma pacífica, exceto a violência resultante de ações policiais excessivas, que levaram os responsáveis a julgamento. O movimento teve a maturidade de levantar os acampamentos quando sentiu que as ocupações já não repercutiam e que só os ativistas participavam das assembleias diárias.
Mas o movimento não desapareceu. Apenas se difundiu pelo tecido social, com assembleias de bairro, ações de defesa contra injustiças – como a oposição a despejos de famílias – e extensão de práticas econômicas alternativas: cooperativas de consumo, banco ético, redes de intercâmbio e outras tantas formas de viver de maneira diferente para viver com sentido.
Ainda assim, os indignados, que em algum momento chegaram a assustar as elites pela possibilidade de contágio, sofreram perseguição midiática, policial e política. Isso criou a impressão de que o movimento se limitou a alguns jovens idealistas ou alguns poucos exaltados. Basta isolar os grupos e deixar que se cansem. Os partidos de ultra-esquerda tentaram pescar em águas turbulentas, para realimentar suas hostes minguadas, mas viram que os novos rebeldes já têm claro que por esse caminho não conseguirão as mudanças pelas quais lutam. Apesar da hostilidade dos poderosos, o movimento continuou, manteve sua deliberação em assembleias, comissões pela internet, e segue contando com participação popular quando surgem iniciativas concretas, e aparece à superfície o trabalho cotidiano daqueles que não aceitam que tudo continue igual.
A determinação de criar novas formas de ação transformadora sem liderança formal e sem organizações burocráticas traz dificuldades consideráveis. Por um lado, não valia a pena chegar até aqui para voltar a reproduzir um modelo de ativismo que já fracassou repetidamente. Por outro, o essencial é estabelecer um vínculo entre a deliberação e ação, além de conectar-se com os 99% que o movimento quer representar. Buscando novas vias, o 15-M está abrindo um debate profundo sobre como continuar agindo e inovando no que diz respeito a organização e elaboração estratégica. Em 19 de dezembro, depois de uma discussão em assembleia, a Comissão de Extensão Internacional da Porta do Sol de Madri decidiu suspender sua atividade e se declarar em reflexão ativa indefinida.
“O espaço público que havíamos redescoberto voltou a ser substituído por uma soma de espaços privados… O êxito do movimento depende de que sejamos de novo os 99%. Ainda que não tenhamos a resposta do que deve vir depois, que forma pode assumir o reinício de que necessitamos, entendemos que o primeiro passo para escapar de uma dinâmica equivocada é romper com ela: parar, deter-se e tomar perspectiva”, foi a argumentação.

"Não se trata do velho mito comunista
do súbito colapso do capitalismo,
mas simplesmente de saber que
a economia europeia afunda na recessão,
que a cobertura social se dilui,
que a política tradicional patina
 e que os cidadãos continuam indignados
e são cada vez mais conscientes."



Mesmo que esta atitude não reflita necessariamente o sentimento de outras assembleias e comissões do 15-M, é significativa. Evidencia a capacidade de autocrítica e autorreflexão que caracteriza esse movimento. Somente assim pode se constituir um novo processo de mudança que não desnaturalize seus objetivos de democracia real nas formas de sua existência. Porque onde se chega depende de como se faz para chegar, qualquer que sejam as intenções. Se a questão é como se conectar com os 99%, como se opera essa conexão?
O essencial em qualquer movimento social é a transformação mental das pessoas. Poder imaginar outras formas de vida. Romper a subordinação e a manipulação midiática. Sentir que muitos pensam como um mesmo. Esquecer o medo de afirmar seus direitos e opiniões. Nesse sentido, existem múltiplas indicações de que as pessoas estão mudando, de que o 15-M fez visível a indignação e alimentou a esperança, e que ainda que haja menos participação nas assembleias de ativistas, muitas pessoas estão buscando, de múltiplas maneiras, ocupar espaço no cotidiano e estabelecer vínculos com experiências similares.
Têm claro que a mudança não passa por eleições como as últimas, na Espanha. O triunfo da direita reunida no PP, ampliado por uma lei eleitoral não representativa do voto, foi muito menos relevante (400 mil votos a mais que em 2008), que a queda do Partido Socialista. Ela expressa o esgotamento dos que supostamente representariam os “de baixo”. Também deixa claro que a crise vai piorar, sem que ninguém saiba como lidar com ela.
Diante deste impasse, as pessoas buscam suas próprias soluções. Contando com redes de solidariedade cada vez mais numerosas. E apoiando as ações reivindicativas onde surgem. Essa transformação mental e essas múltiplas mudanças cotidianas podem ser ativadas em níveis mais amplos, em formas a ser descobertas, conforme se for quebrando a normalidade. Não se trata do velho mito comunista do súbito colapso do capitalismo, mas simplesmente de saber que a economia europeia afunda na recessão, que a cobertura social se dilui, que a política tradicional patina e que os cidadãos continuam indignados e são cada vez mais conscientes.
No 15-M existe essa consciência. Como a água, ela irá encontrando suas próprias vias até que se torne torrente – quando a situação se fizer crítica. Ainda bem: porque a alternativa a esse protesto pacífico e construtivo é uma explosão violenta e destrutiva.
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* Sociólogo espanhol. Escritor. No livro "A sociedade em rede", o autor defende o conceito de "capitalismo informacional".
Tradução: Daniela Frabasile
Fonte: http://www.outraspalavras.net/2012/01/31/
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O fim da privacidade

Carlos Eduardo Lins da Silva*
VIDA DIGITAL
Uma das transformações radicais que a internet e seus subprodutos têm operado na maneira como as pessoas vivem e se relacionam se refere a um valor cultural que se estabeleceu por pelo menos dois séculos na maior parte das sociedades do mundo ocidental: o direito à privacidade.
As empresas que exploram o ciberespaço obtêm vantagens para ampliar seu faturamento em relação diretamente proporcional à sua capacidade de invadir a privacidade do maior número possível de pessoas, de modo a poder conhecer seus hábitos e lhes oferecer produtos.
Aliás, é curioso como o ambiente da internet continua sendo enxergado por milhões como o reino da liberdade, da quase anarquia, onde tudo parece ser de graça, em contraposição ao universo da cobiça, do lucro a todo custo que é a imagem dominante da chamada “velha mídia”.
A revelação do estilo de vida dos proprietários do website Megaupload, que permite que se baixe músicas, filmes e outros conteúdos sem pagar direito autoral, após sua prisão na Nova Zelândia há alguns dias, mostra que essa gente supostamente libertária sabe fazer dinheiro com grande competência, e eles nem estão entre os maiores magnatas desse mundo.

Garantia constitucional

Grande parte das pessoas nascidas a partir de generalização da internet – e em especial das mídias sociais – parece não dar a menor importância para a sua própria privacidade e está disposta a abrir mão dela por quase qualquer coisa: acesso a filmes ou músicas, cupons de ofertas, recomendações de produtos em geral ou mesmo a simples possibilidade de fazer novos contatos pessoais na rede.
Facebook e similares conseguiram conjugar exibicionismo e voyeurismo com tanta competência que milhões de adolescentes não demonstram mínima inibição ao expor a conhecidos superficiais, ou até a estranhos, intimidades em palavras e imagens sem medir consequências potencialmente nefastas para o seu futuro profissional, doméstico ou amoroso.
Esta naturalidade com que a exposição de intimidade é encarada sem dúvida recebe considerável reforço também de veículos de comunicação tradicionais, como as emissoras de TV que transmitem reality shows, uma versão turbinada do que se pratica nas redes sociais.
Quem abre mão de sua privacidade parece não entender que além das empresas que fazem dinheiro com as informações sobre si tornadas públicas, outras entidades – inclusive do Estado – pode ter acesso a elas por meio de várias formas de tecnologia.
Na semana passada, por exemplo, a Suprema Corte dos EUA decidiu que quando a polícia coloca um aparelho de GPS no carro de um suspeito para acompanhar seus movimentos, ela está infringindo o direito à privacidade, que naquele país é garantido pela Constituição, em sua emenda número 4.

Outra sociedade

O fim da privacidade – que se verifica diariamente nas mais diversas formas, como, por exemplo, na disseminação cada vez maior de câmeras de segurança em infindáveis locais públicos – é muitas vezes justificada como um preço a pagar pelo aumento da segurança pública.
Como já muita gente não dá a menor bola mesmo para a preservação da sua própria intimidade, mesmo quando a sua segurança não está em risco, é difícil que haja uma reação social significativa contra a audácia cada vez mais ousada de aparelhos do Estado para invadir a privacidade de cidadãos.
Não é possível prever que tipo de sociedade emergirá quando a maioria de seus integrantes for formada por esses que ainda são jovens e que decidiram que a privacidade não é um valor digno de ser preservado. Mas ela certamente será muito diversa daquela que existe agora.
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* Jornalista.
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A complicada cidadania digital

 Especialista em direitos na internet critica
leis antipirataria e pede uma
‘carta magna’ para a rede
Na semana passada milhares de sites saíram do ar ou bloquearam seu conteúdo com tarja preta. Nerds foram às ruas. "Este introvertido está extrovertendo para protestar contra a censura", disse um manifestante em Nova York. Funcionou. Os políticos recuaram e as duas propostas de lei antipirataria que seriam votadas nessa semana, a Sopa (Stop Online Piracy Act) e a Pipa (Protect Intelectual Property Act), foram suspensas da pauta do Congresso americano. Mas a discussão de como legislar sobre os excessos da internet sem apelar para medidas draconianas continuou na Europa, com protestos na Polônia contra a Acta(Anti-Counterfeiting Trade Agreement), lei irmã das propostas americanas.
A jornalista americana Rebecca MacKinnon comemorou a paralisação das leis nos Estados Unidos, semelhantes, segundo ela, aos mecanismos usados pela China para bloquear a internet. Mas não é porque dessa vez usuários e empresas deram as mãos que devemos eleger as gigantes da internet como nossas "soberanas benevolentes", pondera Rebecca, pesquisadora do New American Foundation. Em outras batalhas, por exemplo, pela proteção à privacidade, à identidade e à liberdade de expressão, os interesses dos usuários e os de "Facebooquistão e Googledom" podem bem estar em lados opostos. Na quinta-feira, o Twitter anunciou que começará a restringir o conteúdo dos tweets em alguns países. "À medida que continuarmos a crescer internacionalmente, entraremos em países que têm ideias diferentes quanto aos contornos da livre expressão", justificou a empresa.
É justamente nesse terreno escorregadio que Rebecca diz ser necessário transportar o que já fazemos no mundo físico para o digital. "Precisamos entender como a tecnologia funciona para protestar contra abusos de poder e barganhar diretamente com as empresas." A autora de Consent of the Networked (Basic Books), com lançamento previsto nos EUA no fim do mês, entende que chegou o momento "carta magna" na história da internet. "Há 800 anos os barões anglo-saxões decidiram que a soberania inquestionável não funcionava mais e propuseram regras que mesmo reis tinham de seguir. Agora precisamos chegar ao consenso sobre que princípios vão forjar nossa cidadania digital".

Quais os principais problemas das leis de direito autoral para a internet discutidas nos Estados Unidos e na Europa?
Até agora, as soluções disponíveis são pouco equilibradas. Os interesses de uma indústria de lobby poderoso e modelo de negócios antiquado estãosuper-representados no texto das leis. Precisamos balancear as preocupações das empresas de entretenimento, criação e software com a visão mais ampla da sociedade, antes e não depois de as leis serem escritas. Se isso tivesse sido feito, não estaríamos perdendo tempo em Washington com propostas de leis absurdas, desprovidas de conhecimento técnico. A Sopa previa um filtro de DNS (sigla em inglês para Sistema de Nomes de Domínio), o que reverteria os esforços de engenheiros que há uma década trabalham para transformar a internet num lugar mais seguro. Isso criaria uma lista negra de sites a serem bloqueados por provedores, serviços de busca, empresas de publicidade e pagamento online. Sopa, Pipa e Acta responsabilizam os provedores pelo conteúdo que os usuários estão compartilhando em suas plataformas. O que gera a expectativa de que os provedores passem a monitorar e, em alguns casos, censurar os usuários a fim de evitar problemas judiciais. É exatamente o mesmo mecanismo usado na China para delegar ao setor privado o ônus de vigiar os usuários da rede. Por causa de medidas parecidas, o primo chinês do Twitter, Weibo, contrata milhares de funcionários para monitorar o tempo todo o conteúdo do usuário. A intenção das leis americanas não é a mesma do bloqueio chinês, um sistema nacional de censura política da rede, mas o efeito prático pode ser parecido.

Qual a melhor abordagem para proteger a propriedade intelectual sem desrespeitar os direitos do usuário da internet?
Quando se trata de desenhar qualquer lei para regular a internet, é preciso alguma compensação. Para se ter uma cidade totalmente livre de criminalidade, seria necessário colocar policiais em cada esquina. Aceitamos a força policial como legítima protetora de nossa segurança, mas nem por isso os policiais podem entrar em nossas casas a qualquer hora, para fuçar qualquer cômodo, sem motivo. Do mesmo modo, na internet, para combater crimes, às vezes mais sérios que o roubo intelectual, como ciberataques, pedofilia e pornografia infantil, não podemos permitir abusos inaceitáveis contra nossas liberdades individuais. O passo adiante na questão da proteção aos direitos autorais só pode ser dado se especialistas em tecnologia, segurança na internet e direitos humanos forem consultados no processo de redação das leis. Mas a solução definitiva vai passar, necessariamente, pela evolução das indústrias de criação e entretenimento, de modo a tornar seus modelos de negócios mais compatíveis com a tecnologia.

"As pessoas têm o direito de controlar seus dados,
mas é um argumento escorregadio,
porque o direito de ser esquecido
pode se transformar no direito de
esconder uma transgressão."
A revista Wired disse que a pirataria é um ‘custo inevitável’ da economia atual. É possível uma internet sem roubo de direito autoral?
As pessoas estão transferindo expectativas para a internet incompatíveis com o modo como a sociedade funciona. Uma internet sem pirataria é como uma São Paulo sem crime. O argumento da Wired é que estamos numa nova era, em que para fazer dinheiro é preciso abrir mão do total controle sobre o produto e aceitar compartilhar conteúdo de graça, achando outras formar de fazer dinheiro, associando novos serviços e experiências ao produto. Empresas novas estão testando esse mercado e criando alternativas. Tem gente que acha que não devemos ter nenhum tipo de lei de direito autoral. Eu discordo. Acabo de escrever um livro que vai ser publicado por uma editora tradicional. Essa editora têm funcionários que trabalharam duro e merecem ser pagos. Fazer tudo de graça não é uma opção. Mas para proteger minha propriedade intelectual não devemos passar leis que desrespeitam outros direitos.

O teórico de direitos digitais Yochai Benkler questionou se a vitória sobre a Sopa e Pipa foi dos gigantes da internet, que usaram seu predomínio na rede para reunir apoio contra leis prejudiciais ao setor, ou dos usuários, que pressionaram sites a aderir ao blecaute. De quem foi a vitória?
Foi um desses casos em que os interesses, felizmente, se alinharam. As preocupações da indústria da internet, descontente com uma legislação ruim para seu negócio, coincidiram com as da sociedade civil, preocupada com as ameaças para a liberdade de expressão. Ativistas, criadores independentes de conteúdo e wikipedianos não estão preocupados se Google ou Facebook sobreviverão, E sim com o fato de que Sopa e Pipa podem transformar os provedores de plataformas em policiais da internet. A aliança entre usuários e empresas não existe quando se discute a neutralidade na rede, por exemplo. A sociedade civil acha que a neutralidade é importante para permitir a atividade não comercial e independente, em plataformas públicas. As empresas não querem diminuir seu domínio, é claro. Movimentos sociais na internet se preocupam em como o Google coleta dados pessoais e os distribui para a publicidade dirigida. Ou como o Facebook estabelece suas políticas de identidade e privacidade. É pouco sábio pensar que, porque demos as mãos na batalha contra Sopa e Pipa, as empresas de internet serão defensores de nossos direitos na internet.

Nessa semana, a Comissão Europeia começou a discutir novas leis de privacidade. O Facebook reagiu a um dispositivo chamado ‘direito de ser esquecido na internet’, pois, segundo a empresa, ele dificultaria a inovação de seus negócios, mesmo argumento usado contra Sopa e Pipa. Qual sua opinião?
O direito de ser esquecido, que obriga as empresas de internet a deletar dados pessoais que você não quer online, pode ter duas implicações. Quem cresceu com a internet fazendo parte de sua vida tem razão para se preocupar com o vídeo embaraçoso dos seus 15 anos ou com aquelas fotos reveladoras. As pessoas têm o direito de exigir que companhias removam o conteúdo. Em outras situações esse pedido não é legítimo. Um político pode ter sido fotografado fazendo ou dizendo algo negativo que tenha implicações éticas e relevantes para a escolha do eleitor. O Facebook tem um visão extrema e advoga pela transparência radical. Acredita que todo mundo tem que ser aberto em relação a tudo, pois quando todos estivermos acostumados a detalhar a vida online, o medo, o desconforto e o estigma provocados por aquelas fotos constrangedoras irão embora, já que todos terão fotos assim na internet. Não compartilho essa visão. As pessoas têm o direito de controlar seus dados, mas é um argumento escorregadio, porque o direito de ser esquecido pode se transformar no direito de esconder uma transgressão. A Europa costuma dar mais ênfase a leis de proteção à privacidade que os Estados Unidos, onde grande parte das grandes empresas de internet estão sediadas. Na Alemanha, as pessoas ficaram um tanto traumatizadas com o fato de o Google Earth e o Street View mostrarem imagens detalhadas de seus quintais. Lá, a ferramenta foi duramente criticada como excessivamente invasiva. As companhias precisam respeitar essas diferenças culturais. Os engenheiros do Vale do Silício não podem só acordar um dia e pensar "ei, vamos criar algo legal hoje", sem refletir sobre as possíveis consequências dessas ferramentas e do modo como podem violar os direitos e a confiança dos usuários.

"As pessoas precisam se educar
sobre como a tecnologia funciona,
 como os dados que pomos na rede são usados,
e se envolver mais nas discussões fundamentais
que vão moldar nossa cidadania digital."


Seu livro sugere ser este o momento de uma ‘nova carta magna’. Como esse contrato social da internet está sendo negociado?
Há 800 anos os barões anglo-saxões decidiram que a soberania inquestionável não funcionava mais e propuseram regras que mesmo reis tinham que seguir. Escreveram a Carta Magna. Centenas de anos depois, pensadores políticos amadureceram a ideia e estabeleceram o consenso dos governados, um novo contrato social para um governo representativo dos interesses da maioria. Precisamos definir agora quais os princípios do consenso da internet. Apple, Facebook, Twitter e Google estão virando impérios globais. Essas empresas criam leis privadas, que mudam de uma hora para outra, para governar as plataformas que usamos. Na Primavera Árabe vimos o poder político que essas plataformas podem ter ao desafiar um líder soberano nacional. O problema é que essas empresas se autointitulam soberanas benevolentes do mundo digital sem, contudo, procurar o consentimento dos cidadãos digitais, dos "netizens". Em paralelo, vemos que um Estado-nação não é suficiente para legislar sobre o mundo global da internet. Se o Congresso americano aprovar a Sopa, ou uma versão modificada da lei, para proteger os interesses dos americanos, ou melhor, de um setor da indústria americana, isso vai afetar a vida dos usuários da internet em todo o mundo. Não só daqueles que votaram nos congressistas americanos. O consenso nacional não funciona mais quando se trata de internet, mas não estou propondo um governo global. Estamos num momento de "carta magna" do mundo digital, não de Revolução Americana e da redação de uma Constituição. Só agora começamos a perceber que o antigo sistema não funciona mais. Não chegamos ao ponto da história em que sabemos qual será o novo modelo de governança. Para chegar lá, será preciso maior ativismo na internet. As pessoas precisam se engajar nas discussões sobre como governos e grandes empresas estão esculpindo nossas vidas digitais.

Qual o papel do setor privado na censura da rede e como responsabilizar as corporações pelos abusos de poder?
Há muitas formas de fazer isso. Na Europa, as pessoas estão recorrendo aos governos para regular a ação das empresas. Nem sempre esse é o modelo mais eficiente. As pessoas podem se organizar e barganhar diretamente com as empresas. Começamos a ver usuários do Google +, a rede social do Google, pressionando a empresa a mudar a política de identidade e permitir que você use um apelido. Isso é extremamente importante em países com regimes opressores. O Facebook ainda não está respondendo a isso. Outra forma de pressionar as empresas é pelo controle acionário. Aqueles de nós que investiram em fundos e ações precisam se perguntar, assim como já se faz com a questão ambiental ou o trabalho escravo, se essa ou aquela empresa é responsável no mundo digital e respeita os direitos de liberdade de expressão de seus usuários. No mundo físico estamos acostumados a pensar que, se eu não gosto da maneira como meu país está sendo governado, há coisas que posso fazer, como eleitor, manifestante, líder comunitário. As pessoas precisam se educar sobre como a tecnologia funciona, como os dados que pomos na rede são usados, e se envolver mais nas discussões fundamentais que vão moldar nossa cidadania digital.

Vint Cert, reconhecido por alguns como o pai da internet por ter criado o modelo TCP/IP, disse que ‘internet não é um direito humano’. Você concorda?
Acho que Vint foi infeliz em sua opinião. Tomado em sentido literal, ter uma conexão de banda larga de graça pode não ser um direito fundamental do homem. Mas é bastante evidente que, num mundo como o nosso, se um cidadão não tem acesso a uma internet sem filtro e relativamente eficiente, ele estará em desvantagem. O acesso à internet se tornou um pré-requisito para que alguns de nossos direitos humanos sejam exercidos e expandidos. Acho que Vint não discorda disso, mas sua fala literal é prejudicial num momento em que se luta contra o monopólio de provedores de internet e tentando conseguir financiamento público para que comunidades pobres ou remotas conectadas possam participar política e economicamente da sociedade global.
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Reportagem por Carolina Rossetti - O Estado de S.Paulo
Fonte: Estadão on line, 28/01/2012

A culpa é dos telômeros

Juremir Machado da Silva*
Crédito: ARTE PEDRO DREHER SOBRE FOTOS CP MEMÓRIA
Li que já nasceu a criança que viverá 150 anos. Ainda não se sabe quem é nem se isso será um ganho ou um pesadelo para ela. Certo é que a ciência está no encalço do aumento da expectativa de vida e também do bloqueio ao envelhecimento. Dentro de algum tempo, a adolescência terminará aos 45 anos, quando, então, o pessoal sairá de casa e tentará arranjar um emprego. O grande problema continua sendo o maldito desgaste do corpo e das células. Já é praticamente certo que existe um vilão. E esse vilão não é o Naji Nahas, embora não fosse má ideia meter essa culpa nas costas dele também e do juiz que concedeu reintegração da posse à sua massa falida em Pinheirinho. O vilão pode ter sido identificado pelos cientistas. Ele tem nome. Não sei se tem sobrenome também. No Brasil, com certeza, terá apelido: Tel. Os vilões podem ser os telômeros. Isso mesmo. Nem desconfiava? Nem eu, claro.
Utilidade pública só prestada por uma coluna como esta, que oferece serviços inestimáveis aos leitores: os 23 pares de cromossomos possuem extremidades protegidas por fileiras de DNA (se dependesse de mim, seria ADN). Essas estruturas são os telômeros. Ah, bom! Muito prazer. E daí? Bem, daí que cada vez que uma célula se divide - elas são piores do que alguns partidos brasileiros em se tratando de divisões -, os telômeros encolhem um pouco. O sujeito morre quando não há mais como dividir seus telômeros. A proximidade da morte é quando aparece um telômero com perna curta. Assim fica mais claro entender como marchamos para o fim. Estou levando na brincadeira, mas é sério. A gente sempre culpa o coração, os pulmões, os rins, o fígado e por aí afora pela morte. Pois é hora de pensar nos telômeros. A identificação dos vilões é um bom caminho para tentar se chegar a uma solução. Só espero que os cientistas, se conseguirem controlar o encurtamento mortal dos telômeros, não venham a ser culpados pelo rombo da Previdência do futuro próximo.
Nossos netos viverão o dobro do tempo. Poderão ver o BBB148 e o centésimo título brasileiro consecutivo do Corinthians, salvo se houver alternância com o Flamengo. Nem tudo, porém, será assustador assim. Haverá mais tempo para vadiar, ver o pôr do sol, não necessariamente o do Guaíba, e conversar com os amigos. Será que os nossos descendentes verão outros episódios lamentáveis como o de Pinheirinho? Depois de Eldorado do Carajás, do massacre da Cinelândia e do Carandiru - a lista pode ser interminável -, Pinheirinho entra na galeria da barbárie verde-amarela em lugar de destaque. Parece que os telômeros dos que cometem brutalidades injustificadas como essa encurtam lentamente. Deveria ser o contrário.
Vamos viver mais. Para chegar lá, precisamos lutar contra a divisão desenfreada das nossas células, contra o encurtamento dos nossos telômeros, contra a especulação financeira internacional, contra as decisões absurdas de justiça e até contra a falta de sensibilidade dos donos do poder. Estamos avançando muito quanto aos telômeros.
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*Sociólogo. Escritor. Tradutor. Prof. Universitário. Colunista do Correio do Povojuremir@correiodopovo.com.br
Fonte: Correio do Povo on line, 31/01/2012

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Ribamar

LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL*

Este Ribamar de que falamos é o título de um belíssimo livro de José Castello, saído pela Bertrand do Brasil. O autor é um dos mais importantes intelectuais da cena literária brasileira, e eis que isso é pouco, pois o adjetivo “literária” é muito restrito para designar uma obra que passa pela crítica, pelo jornalismo, pelo ensaísmo, pela crônica e, em grande estilo, pela ampla reflexão artística. Com sua dicção mansa, José Castello nos convence de seus juízos sem apelar para teorias ou modelos interpretativos, e assim ele se insere numa importante vertente da crítica literária brasileira, aquela que situa a obra dentro de um quadro maior e ancorado no tempo e no espaço. Mas José Castello, com sua inventividade, é também romancista, e premiado em certames dos mais prestigiados, como o Jabuti – que não lhe falhou no livro de que nos ocupamos.
Ribamar, se quisermos – e não queremos – reduzir a um breve conceito, seria o romance da paciência. A paciência já começa pelo tempo de escrita que, parece, levou uns quatro anos inteiros. É preciso que o livro decante, que as palavras se acomodem umas às outras. É o romance da paciência, também, porque tratar de uma relação pai e filho, ainda que no plano ficcional, é preciso muito tempo, o tempo para desfazer as amarguras e as incompreensões. O autor, que assume um narrador em primeira pessoa, cita Kafka, especialmente o Kafka do Carta ao Pai, obra que tem um extraordinário papel no romance. Acompanhamos, com alvoroçada parcimônia – passe a contradição –, o crescer do filho à medida em que entende melhor o pai, ou melhor, sai à busca dos elementos para entendê-lo, o que o leva a um labirinto em que não há um minotauro à espera, mas uma figura humana a ser discutida, detestada e amada. A percorrer os vários capítulos, há fragmentos de uma mesma canção versada em fragmentos do pentagrama, escrita numa linguagem redonda, infantil, que era a canção Cala a Boca, que lhe cantava o pai.
A linguagem, por ser de um filho, sempre terá um timbre de dependência, mas que é capaz de dizer, de maneira comovente, referindo-se à relação com o pai: “Talvez eu tenha escolhido armas inadequadas, como um boxeador que, ao subir ao ringue, em vez de vestir luvas, porta um sabre”.
Belo, sim – e terrível. E apenas um grande livro é capaz de dizer tudo isso.
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* Escritor. Prof. Universitário. Colunista da ZH
Fonte: ZH on line, 30/01/2012
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Salvar vidas ou o capital?

Frei Betto*

O melhor Papai-Noel do mundo mereceram 523 instituições financeiras europeias quatro dias antes do Natal: 489 bilhões de euros (o equivalente a R$ 1,23 trilhão), emprestados pelo BCE (Banco Central Europeu) a juros de 1% ao ano!
Curiosa a lógica que rege o sistema capitalista: nunca há recursos para salvar vidas, erradicar a fome, reduzir a degradação ambiental, produzir medicamentos e distribuí-los gratuitamente. Em se tratando da saúde dos bancos, o dinheiro aparece num passe de mágica!
Há, contudo, um aspecto preocupante em tamanha generosidade: se tantas instituições financeiras entraram na fila do bolsa-BCE, é sinal de que não andam bem das pernas…
Quais os fundamentos dessa lógica que considera mais importante salvar o Mercado que vidas humanas? Um deles é este mito de nossa cultura: o sacrifício de Isaac por Abraão (Gênesis 22, 1-19).
No relato bíblico, Abraão deve provar a sua fé sacrificando a Javé seu único filho, Isaac. No exato momento em que, no alto da montanha, prepara a faca para matar o filho, o anjo intervém e impede Abraão de consumar o ato. A prova de fé fora dada pela disposição de matar. Em recompensa, Javé cobre Abraão de bênçãos e multiplica-lhe a descendência como as estrelas do céu e as areias do mar.
Essa leitura, pela ótica do poder, aponta a morte como caminho para a vida. Toda grande causa - como a fé em Javé - exige pequenos sacrifícios que acentuem a magnitude dos ideais abraçados. Assim, a morte provocada, fruto do desinteresse do Mercado por vidas humanas, passa a integrar a lógica do poder, como o sacrifício "necessário” do filho Isaac pelo pai Abraão, em obediência à vontade soberana de Deus.
Abraão era o intermediário entre o filho e Deus, assim como o FMI e o BCE fazem a ponte entre os bancos e os ideais de prosperidade capitalista dos governos europeus - que, para escapar da crise, devem promover sacrifícios.
Essa mesma lógica informa o inconsciente do patrão que sonega o salário de seus empregados sob pretexto de capitalizar e multiplicar a prosperidade geral, e criar mais empregos. Também leva o governo a acusar as greves de responsáveis pelo caos econômico, mesmo sabendo que resultam dos baixos salários pagos aos que tanto trabalham sem ao menos a recompensa de uma vida digna.
O deus da razão do Mercado merece, como prova de fidelidade, o sacrifício de todo um povo. Todos os ideais estão prenhes de promessas de vida: a prosperidade dos bancos credores, a capitalização das empresas ou o ajuste fiscal do governo. Salva-se o abstrato em detrimento do concreto, a vida humana.
O espantoso dessa lógica é admitir, como mediação, a morte anunciada. Mata-se cruelmente através do corte de subsídios a programas sociais; da desregulamentação das relações trabalhistas; do incentivo ao desemprego; dos ajustes fiscais draconianos; da recusa de conceder aos aposentados a qualidade de uma velhice decente.
A lógica cotidiana do assassinato é sutil e esmerada. Aqueles que têm admitem como natural a despossessão dos que não têm. Qualquer ameaça à lógica cumulativa do sistema é uma ofensa ao deus da liberdade ocidental ou da livre iniciativa. Exige-se o sacrifício como prova de fidelidade. Não importa que Isaac seja filho único. Abraão deve provar sua fidelidade a Javé. E não há maior prova do que a disposição de matar a vida mais querida.
A lógica da vida encara o relato bíblico pelos olhos de Isaac. Este não sabia que seria assassinado, tanto que indagou ao pai onde se encontrava o cordeiro destinado ao sacrifício. Abraão cumpriu todas as condições para matar o filho. Subjugou-o, amarrou-o, colocou-o sobre a lenha preparada para a fogueira e empunhou a faca para degolá-lo.
No entanto, inspirado pelo anjo, Abraão recuou. Não aceitou a lógica da morte. Subverteu o preceito que obrigava os pais a sacrificarem seus primogênitos. Rejeitou as razões do poder. À lei que exigia a morte, Abraão respondeu com a vida e pôs em risco a sua própria, o que o forçou a mudar de território.
Se não mudarmos de território – sobretudo no modo de encarar a realidade -, como Abraão, continuaremos a prestar culto e adoração a Mamom. Continuaremos empenhados em salvar o capital, não vidas, e muito menos a saúde do planeta.
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*Frade Dominicano. Escritor e assessor de movimentos sociais. Autor de "Sinfonia Universal – a cosmovisão de Teilhard de Chardin” (Vozes), entre outros livros. http://www.freibetto.org/> twitter:@freibetto.
Fonte:Adital, 30/01/2012
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Filósofo Alain de Botton propõe templo para ateus em Londres

Arquiteto Tom Greenall e designer Jordan Hodgson criaram projeto para ideia de Alain de Botton

O filósofo e escritor suíço Alain de Botton
propôs a construção de um prédio de
mais de 45 metros de altura que serviria
como uma espécie de templo para ateus.
O templo seria construído no coração
financeiro de Londres.

Segundo o filósofo, o templo seria usado para celebrar uma nova forma de ateísmo, que seria um contraponto ao ateísmo proposto pelos pensadores Richard Dawkins e Christopher Hitchens.
De Botton argumenta que o ateísmo proposto pelos dois pensadores é "destrutivo", por atacar as religiões, ao contrário de sua proposta de harmonia entre as religiões.
"Em geral, um templo é feito para Jesus, Maria ou Buda, mas é possível construir um templo para qualquer coisa positiva e boa", disse De Botton ao jornal britânico Guardian.
"Isso poderia significar um templo ao amor, amizade, tranquilidade e perspectiva. Porque o ateísmo de Richard Dawkins e Christopher Hitchens ficou conhecido como uma força destrutiva. Mas há muitas pessoas que não acreditam [em Deus] e não são agressivas contra outras religiões."

Polêmica
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A proposta de Alain de Botton provocou uma polêmica entre os pensadores, com declarações publicadas na imprensa britânica.
Richard Dawkins criticou o plano do filósofo suíço, dizendo que isso seria um desperdício de dinheiro. Para ele, um templo para ateus é uma contradição.
"Ateus não precisam de templos", disse Dawkins. "Eu acho que já formas melhores de se gastar este tipo de dinheiro. Se você vai gastar dinheiro com ateísmo, você poderia melhorar a educação secular e construir escolas não-religiosas que ensinam pensamentos racionais, céticos e críticos."
Allain de Botton está lançando um livro novo sobre ateísmo, chamado Religion for Atheists: A Non-believer's Guide to the Uses of Religion (ou Religião para Ateus: Um guia para Não-crentes sobre as Utilidades da Religião, em tradução livre)*.
Em fevereiro de 2010, o filósofo encomendou um projeto ao arquiteto Tom Greenall para a criação do templo.
"Com 46 metros de altura e no coração da City londrina, o templo representa toda a história da vida na Terra: cada centímetro da sua altura equivale a um milhão de anos de vida [do planeta]", afirma o arquiteto, em seu site.
"A um metro a partir do solo, uma fina linha de ouro – com não mais que um milímetro – representa toda a existência da humanidade. A visita ao templo serve dar outra perspectiva [da vida] aos visitantes."
O filósofo afirmou ao Guardian que já captou metade dos recursos necessários para o templo, mas que os doadores preferem o anonimato. O templo começaria a ser construído no final de 2013, caso seja aprovado pela prefeitura.
Ele disse que escolheu o centro financeiro da cidade porque seria onde as pessoas mais "perderam perspectiva" sobre as prioridades da vida.
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* Livro traduzido no Brasil pela Editora Intrínseca. Tradução de Vitor Paolozzi. RJ, 2011
Fonte: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/01/120130_templo_ateu_londres_dg.shtml

O orgulho de nossos Estados

Renato Janine Ribeiro*
Há um traço curioso na sociedade brasileira: a maior parte das pessoas se orgulha de seus Estados. Num passado recente, passamos por um período de sérias crises econômicas e políticas, no qual se alternavam o orgulho e a vergonha de ser brasileiro. Ele findou graças em parte ao fim da inflação (governo FHC) e em parte ao avanço da inclusão social (governo Lula). Orgulhávamo-nos do país no futebol e nos envergonhávamos da inflação e muitas outras mazelas, a começar pela corrupção que, aliás, disputa com a miséria o título de maior vergonha nacional. Mas esse movimento ciclotímico, como era chamado, reduziu-se. Com a estabilidade monetária e os avanços sociais, ficamos mais estáveis em nossa nacionalidade, que hoje vivemos melhor do que na fase de inflação recrudescida, digamos, os quinze anos de 1979 a 1994. Tivemos um forte pessimismo em relação ao Brasil. Mas o curioso é que mesmo nos períodos máximos de instabilidade em escala nacional, no plano que os militares denominavam "psicossocial" (palavra que felizmente sumiu do vocabulário!) não foi ameaçado esse orgulho de que falei acima - um orgulho estadual. O Brasil podia gerar otimismo ou, em maior dose, pessimismo, a partir de suas realizações ou fracassos, mas os Estados passavam - e passam - incólumes por seu sucesso ou insucesso. Gostamos deles como são.

Gostamos dos Estados
como eles são

Isso é ainda mais curioso porque os Estados significam pouco, do ponto de vista do poder, num país cada vez menos federalista e mais unitário. Na verdade, a tradição que a colônia nos legou foi a da autonomia dos municípios, não das - então - capitanias. Pouco após a independência, foram criadas assembleias legislativas nas províncias, mas o poder executivo, nelas, era exercido por nomeação do governo sediado na Corte. Só com a República tivemos autonomia dos Estados - e, por razões difíceis de entender, talvez por importação de costumes norte-americanos, talvez para se contrapor ao centralismo imperial, ela foi exagerada. Basta ler o que Erico Veríssimo escreve sobre as guerras civis gaúchas da República Velha: enquanto tropas de um lado e outro se matam, as guarnições federais permanecem neutras. Hoje, é impossível imaginar que haja uma rebelião contra um governador e o Exército apenas assista, impassível, aos combates.
Desde 1930, vemos um gradual mas constante fortalecimento do poder federal às custas dos Estados. Nos períodos ditatoriais, com Getúlio Vargas ou sob o regime militar, obviamente foram afastados os governantes estaduais que divergissem do poder central. Mas mesmo nos períodos democráticos, como o que vivemos ininterruptamente desde 1985, as competências dos Estados diminuem. Enquanto o controle central se exercia, nas ditaduras, pela força, hoje ele passa pelo papel predominante da política econômica. Esta é competência da União, e determina quase tudo o que se pode fazer na Federação. Daí que a situação dos Estados se torne paradoxal. Por um lado, ser governador ou senador é importante. Aliás, uns e outros, escolhidos em eleições majoritárias, costumam trocar de posições. O Senado é uma casa de ex- ou futuros governadores - ou, pelo menos, eles assim se veem. Não é fortuito que o Senado seja tão mais importante que a Câmara. Lá, os Estados ou seus imaginários futuros ou passados governantes falam alto.

"O curioso é que esse nativismo tardio
mal tenha tradução política.
É um fenômeno social forte, mas
que não resulta em união
pelo Estado..."

Mas, por outro lado, no poder legislativo brasileiro, haverá órgão menos importante do que as assembleias estaduais, justamente as únicas que portam "legislativo" no nome mas, estranhamente, têm menos assuntos para regular sob forma de lei? O Congresso legisla sobre praticamente todos os assuntos. As Câmaras Municipais decidem o plano diretor e podem regular qualquer tema que afete a vida cotidiana, o que é muita coisa. Aos deputados estaduais, pouco resta. Algumas assembleias fazem esforços enormes de imaginação para ocupar um espaço político. É digno de nota que a assembleia do Rio de Janeiro seja, das 28 que há no Brasil, a que maior presença tem; realiza eventos e até dispõe de uma sigla conhecida de todos os fluminenses, Alerj. Nos demais Estados, a sigla é só para iniciados; no Rio, todos sabem o que é. É curioso que a popularidade da Alerj - onde foram, em junho de 2011, se manifestar os bombeiros revoltados contra o governo local - subsista embora o governador, como mostrou o "Valor", tenha reduzido a oposição a menos de 15% das cadeiras. A Câmara Distrital de Brasília é outra exceção, pois soma às competências estaduais as municipais e por isso conta com muitos assuntos para legislar. É só. Um vereador de capital perde em importância ao se tornar deputado estadual, a não ser que mostre, como os verdes Carlos Minc e Aspásia Camargo (não por acaso, ambos verdes, ambos do Rio), muita criatividade.
Então, por que o orgulho? Um Estado como o Rio Grande do Sul, que há anos enfrenta uma crise econômica e fiscal, é um dos mais altivos quanto a seu modo de ser. E eu, que já estive em praticamente todas as Unidades da Federação, senti em todas elas o orgulho de sua comida, de seu falar, de sua alegria - ou de sua seriedade. Evidentemente, há quem não compartilhe esse orgulho, mas falo de um sentimento majoritário. O curioso é que esse nativismo tardio mal tenha tradução política. É um fenômeno social forte, mas que não resulta em união pelo Estado, em posição única ante os problemas que enfrente, em nada disso - salvo em casos extremos, como o dos royalties que alguns Estados recebem pelo petróleo no mar. Por que será? Será justamente porque, do Estado, não esperamos política econômica e então podemos ser, gostosamente, bairristas?
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* Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras
Fonte: Valor Econômico on line, 30/01/2012
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E-mail rjanine@usp.br

Se você precisa mesmo me recusar, pelo menos seja direto

Lucy Kellaway*

Em dezembro, Elly Nowell foi entrevistada como candidata a uma vaga na faculdade Magdalen, de Oxford, para estudar direito. Quando chegou em casa, sentou-se e redigiu uma carta para a instituição ancestral. "Lamento muito informá-los que vou retirar minha candidatura", escreveu. "Entendo que possam ficar decepcionados com essa decisão, mas vocês concorriam com muitas universidades fabulosas, e, depois de sua entrevista, temo que vocês não correspondam ao padrão de universidade que será alvo de minhas considerações."
Essa garota de 19 anos me ensinou duas coisas importantes sobre cartas de recusa. A primeira é como elas funcionam bem na direção contrária: do candidato para o entrevistador. A rejeição do poderoso pelo sem poder não só faz muito bem para a alma como pode fazer sentido do ponto de vista tático. Dispensar um namorado excessivamente autoconfiante é uma manobra consagrada; não vejo por que o mesmo não valeria para empregos e vagas na universidade.
Se existe alguém que possui alguma centelha, por menor que seja, na faculdade de direito de Magdalen, estará certamente lamentando o afastamento dessa garota corajosa e engraçada (embora talvez se pergunte se o direito, o mais chato de todos os cursos chatos, seria o certo para ela).
Em segundo lugar, ao imitar a carta padrão de rejeição, Nowell revela quão patética essa forma de comunicação é. Arrogantemente paternalista, hipócrita e brutal. Só existe uma maneira aceita de escrever essas coisas, empregada por todas as organizações do mundo, e ela é composta de três partes que dizem o seguinte: "Obrigada por seu interesse em...", começam todas elas. "Tivemos um número recorde de candidatos altamente qualificados e lamentamos que..." E depois, um fecho otimista: "Desejamos-lhe tudo de bom para o seu futuro".
Todos os três componentes são elementos de choque - longe de abrandar o golpe, eles o intensificam.
Primeiramente, como um rejeitado, você não quer receber agradecimentos por seu "interesse", uma vez que o que você demonstrava não era interesse, e sim desejo de obter um cargo. Também não é, nem de longe, consolador saber quantos outros ótimos candidatos havia. E, pior de tudo, ninguém gosta de bons votos vazios vindos de alguém que os está mandando cair fora.
Quando se formula uma recusa em palavras, o quanto menos, melhor. Quando um dos meus filhos foi recusado por uma universidade foi menos desgastante ver a palavra nua e crua REPROVADO em seu formulário de candidatura on-line do que ler a carta que chegou alguns dias depois com suas más notícias rotineiramente embaladas com falsos bons votos.

"A questão é que nenhuma carta padronizada
jamais consegue atenuar
qualquer golpe.
Recusa é recusa,
e dói."
Pode-se pensar que há maneiras melhores de dizer não. Howard Junker, o fundador da revista literária ZYZZYVA, devolvia contos acompanhados de uma carta que começava assim: "nobre autor, perdoe-me por devolver sua obra sem oferecer comentários. Gostaria de imaginar alguma coisa que neutralizasse minha grosseria, mas acho que algumas observações rápidas não serão, na verdade, de qualquer ajuda." Ele assinava com um "Toca para a frente! J".
Que encantador, pensei. Mas aí li um blog de um autor não tão nobre que recebera essa mesma carta várias vezes e a achava tudo menos encantadora. A questão é que nenhuma carta padronizada jamais consegue atenuar qualquer golpe.
Recusa é recusa, e dói.
Na verdade, às vezes uma rejeição brutal é melhor. O ator Sir Antony Sher descreveu muitas vezes a carta que recebeu da Royal Academy of Dramatic Art que dizia:
"Você não apenas foi reprovado no teste, e não queremos que você faça uma nova tentativa, como recomendamos seriamente que pense em outra profissão".
No mesmo sentido, cerca de 30 anos atrás, um destacado colega meu se candidatou a um emprego na "The Economist" e recebeu uma carta de rejeição do secretário do editor que lhe pedia que não voltasse a contatar o editor. Essa indelicadeza só pode fazer o destinatário pensar "vá se danar" e enchê-lo exatamente do tipo certo de espírito de porco para continuar lutando até conseguir.
O único tipo de carta de recusa meritório é o que cita os motivos. Nowell disse à Magdalen que a considerava arrogante e pouco amistosa para com candidatos não provenientes de escolas consideradas de primeira linha, um argumento que a faculdade poderia fazer bem em considerar.
Ao oferecer uma explicação, ela não estava imitando o estilo comum: os empregadores quase nunca dão motivos, por medo de serem processados, porque não querem comprar uma briga ou porque seus processos de contratação são tão nebulosos que nem eles sabem a explicação.
A melhor carta de recusa que já recebi trazia um motivo que nunca esquecerei. Eu tinha escrito a um certo Ivan Sallon, editor de "Cidades" do "Sunday Telegraph", pedindo emprego. Ele respondeu que não havia vagas e foi além: "Posso lhe dar um conselho? Ao se candidatar a um emprego, tenha o cuidado de grafar os nomes corretamente". A carta estava assinada: Ivan Fallon.
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*A britânica Lucy Kellaway é jornalista do Financial Times. Na coluna Banda Executiva, ela comenta, com bom humor, perspicácia e ironia, diversos assuntos relacionados ao mundo corporativo e à vida executiva como a gestão de pessoas, o dia a dia no escritório e os modismos na área de recursos humanos. Lucy Kellaway também é autora de livros como “Sense and Nonsense in the Office”, “Who Moved My BlackBerry” e “In Office Hours” e recebeu, em 2006, o prêmio de colunista do ano pelo British Press Awards.
Fonte: Valor Econômico on line, 30/01/2012
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Mudanças Didáticas e Pedagógicas na Construção Social do Conhecimento: a autonomia do aluno no novo milênio

Silvio Profírio*
Durante muito tempo, a prática docente foi guiada por uma concepção de ensino puramente tradicional. Com isso, o processo de ensino e de aprendizagem ocorria em função de uma grande quantidade de conceitos e definições, que deveriam ser reproduzidos pelos alunos. Ainda com base nessa linha metodológica, a prática da interação entre docente e discente não ocorria, na medida em que ambos não eram concebidos como interlocutores. Nesse processo de ensino e aprendizagem, era elencado ao aluno um papel passivo e, em virtude disso, ele deveria abdicar de seus posicionamentos diante dos argumentos inquestionáveis do professor. Essa postura esteve presente durante décadas em nas escolas brasileiras, alçando, assim, o ensino a um papel reprodutório.
Em face desse contexto educativo, em meados da década de 80, ocorreu uma intensa produção e disseminação de estudos na Area da Educação. Estudiosos de diversas áreas, tais como: das Ciências da Linguagem [Linguística], das Ciências Educativas [Pedagogia], das Ciências Psicológicas [Psicologia e Psicologia Cognitiva] e de outros campos de estudos [Filosofia, Sociologia], conforme ressaltam Albuquerque et al (2008)., produzem inúmeros pressupostos e fundamentos teóricos, buscando, assim, romper com as práticas obsoletas presentes nas unidades escolares brasileiras. Tendo como pano de fundo esse contexto de difusão dos postulados do âmbito educacional, surgem novas estratégias e metodologias de ensino, como também novos papeis para os sujeitos envolvidos na construção social do conhecimento (KOCH & ELIAS, 2006).

"O docente é, nesse novo contexto paradigmático,
aquele que propicia articulação no encontro
entre o aluno e o saber [a forma em que se
dá sentido às informações recebidas,
elaborando significação a partir
 de tais informações]."

Diante desse cenário, ocorre uma intensa alteração nas relações tradicionais de ensino. Surgem, agora, novas funções sociais. Primeiramente, abordamos a mudança na função social do docente. O professor não é mais aquele que detém o conhecimento, repassando-o para o aluno de forma dogmática [não admitindo questionamentos]. O docente é, nesse novo contexto paradigmático, aquele que propicia articulação no encontro entre o aluno e o saber [a forma em que se dá sentido às informações recebidas, elaborando significação a partir de tais informações]. Nessa ótica, o professor é alçado à condição de mediador, deixando de lado a postura de transmissor de conteúdo, assumindo, dessa forma, o papel de orientador e de estimulador na construção social do conhecimento do discente. Este, por sua vez, assume um papel ativo, que transcende a perspectiva da reprodução. Ambos, nessa nova perspectiva de ensino, são concebidos como atores sociais, envolvidos em práticas pedagógicas sociointeracionistas pautadas em perspectivas interativas e dialógicas, conforme sinalizam Koch & Elias (2006).
Esses novos paradigmas aplicados ao campo do ensino, propiciam o surgimento de novas metodologias que têm por objetivo levar o educando não só a compreender conteúdos teóricos, mas, sobretudo, a aplicar esses conteúdos no âmbito social. O que, por sua vez, culmina na questão da autonomia do discente. Com isso, o ensino, em uma perspectiva geral, passa a girar em torno de uma concepção de ensino enquanto elemento de conscientização, o que, por conseguinte, promove a ampliação da visão de mundo, rumo à atuação social desse novo aluno que é alçado à condição de sujeito ativo e autônomo na atual sociedade competitiva do novo milênio.
Referências
ALBUQUERQUE, E. B. C. ; MORAIS, A. G. ; FERREIRA, A. T. B. . As práticas cotidianas de alfabetização: o que fazem as professoras? Revista Brasileira de Educação, v. 13, p. 252-264, 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v13n38/05.pdf. Acesso em: 21 out. 2011.
KOCH, I. G. V.; ELIAS, V. M. . Ler e compreender: os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2006.
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*Silvio Profirio da Silva é graduando em Letras pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Artigo enviado ao JC Email pelo autor.

Fonte: http://www.jornaldaciencia.org.br/30/01/2012
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A mulher, o bebê e o intelectual

Luiz Felipe Pondé*
As pessoas não gostam de vagabundos,
ladrões e drogados travestidos
de revolucionários
Os comunistas mataram muito mais gente no século 20 do que o nazismo, o que é óbvio para qualquer pessoa minimamente alfabetizada em história contemporânea.
Disse isso recentemente num programa de televisão. Alguns telespectadores indignados (hoje em dia ficar indignado facilmente é quase índice de mau-caratismo) se revoltaram contra o que eu disse.
Claro, a maior parte dos intelectuais de esquerda mente sobre isso para continuar sua pregação evangélica (no mau sentido) e fazer a cabeça dos coitados dos alunos. Junto com eles, também estão os partidos políticos como os que se aproveitam, por exemplo, do caso Pinheirinho para "armar" a população.
O desespero da esquerda no Brasil se dá pelo fato de que, depois da melhoria econômica do país, fica ainda mais claro que as pessoas não gostam de vagabundos, ladrões e drogados travestidos de revolucionários. Bandido bom é bandido preso. A esquerda torce para o mundo dar errado e assim poder exercer seu terror de sempre.
Mas voltemos ao fato histórico sobre o qual os intelectuais de esquerda mentem: os comunistas (Stálin, Lênin, Trótski, Mao Tse-tung, Pol Pot e caterva) mataram mais do que Hitler e em nome das mesmas coisas que nossos intelectuais/políticos radicais de esquerda hoje pregam.
Caro leitor, peço licença para pedir a você que leia com atenção o trecho abaixo e depois explico o que é. Peço principalmente para as meninas que respirem fundo.

"...provavelmente tinha como professor
um desses intelectuais (do tipo Alain Badiou e Slavoj Zizek)
que tomam vinho chique num ambiente burguês seguro,
mas que falam para seus alunos e seguidores
que devem "mudar o mundo".



"(...) um novo interrogador, um que eu não tinha visto antes, descia a alameda das árvores segurando uma faca longa e afiada. Eu não conseguia ouvir suas palavras, mas ele falava com uma mulher grávida e ela respondia pra ele. O que aconteceu em seguida me dá náuseas só em pensar. (...): Ele tira as roupas dela, abre seu estômago, e arranca o bebê. Eu fugi, mas era impossível escapar do som de sua agonia, os gritos que lentamente deram lugar a gemidos e depois caíram no piedoso silêncio da morte. O assassino passou por mim calmamente segurando o feto pelo pescoço. Quando ele chegou à prisão, (...), amarrou um cordão ao redor do feto e o pendurou junto com outros, que estavam secos e negros e encolhidos."
Este trecho é citado pelo psiquiatra inglês Theodore Dalrymple em seu livro "Anything Goes - The Death of Honesty", Londres, Monday Books, 2011. Trata-se de um relato contido na coletânea organizada pelo "scholar" Paul Hollander, "From Gulag to the Killing Fields", que trata dos massacres cometidos pela esquerda na União Soviética, Leste Europeu, China, Vietnã, Camboja (este relato citado está na parte dedicada a este país), Cuba e Etiópia.
Dalrymple devia ser leitura obrigatória para todo mundo que tem um professor ou segue um guru de esquerda que fala como o mundo é mau e que devemos transformá-lo a todo custo. Ou que a sociedade devia ser "gerida" por filósofos e cientistas sociais.
Pol Pot, o assassino de esquerda e líder responsável por este interrogador descrito no trecho ao lado, estudou na França com filósofos e cientistas sociais (que fizeram sua cabeça) antes de fazer sua revolução, e provavelmente tinha como professor um desses intelectuais (do tipo Alain Badiou e Slavoj Zizek) que tomam vinho chique num ambiente burguês seguro, mas que falam para seus alunos e seguidores que devem "mudar o mundo".
De início, se mostram amantes da "democracia e da liberdade", mas logo, quando podem, revelam que sua democracia ("real", como dizem) não passa de matar quem não concorda com eles ou destruir toda oposição a sua utopia. O século 20 é a prova cabal deste fato.
Escondem isso dos jovens a fim de não ter que enfrentar sua ascendência histórica criminosa, como qualquer idiota nazista careca racista tem que enfrentar seu parentesco com Auschwitz.
Proponho uma "comissão da verdade" para todas as escolas e universidades (trata-se apenas de uma ironia de minha parte), onde se mente dizendo que Stálin foi um louco raro na horda de revolucionários da esquerda no século 20. Não, ele foi a regra.
Com a crise do euro e a Primavera Árabe, o "coro das utopias" está de volta.
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* Filósofo. Escritor. Prof. Universitário. Colunista da Folhaponde.folha@uol.com.br
Fonte: Folha on line, 30/01/2012
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COMPOSTURA E CALDO DE GALINHA

LYA LUFT*
Vejo no noticioso que estamos em último lugar quanto ao retorno,para cada cidadão, dos gigantescos impostos que pagamos mesmo num cafezinho. Em muitas coisas andamos lá na rabeira do mundo, mas parece que nosso ufanismo continua pulsante. Vai daí, acompanho meio distraída a celeuma em torno de alguma cena tórrida numa das camas do Big Brother, programa a que assisti há anos, quando ele se iniciava, achando bobamente que aquilo não iria durar. Depois, vi fragmento e ouvi comentários, o suficiente para notar que a vulgaridade se perpetua e torna sem que se perceba: fica natural. Há quem vá me achar antiquada, alienada, severa. Não imagino que a gente deva usar saia comprida, manga idem, feito freiras de antigamente. Detesto a antiga hipocrisia em assuntos sexuais. Naturalidade e liberdade são positivas, mas a gente não precisa exagerar... Precisamos, já grandinhas, usar saia tão curta que a maioria fica tentando puxar um centímetro mais para baixo, num desconforto idiota? Precisamos, homens e mulheres, fingir que sexo é só o que importa, ou em idade avançada expor peles murchas em profundíssimos decotes como se o tempo nos tivesse ignorado? Um pouco de recato é questão de higiene, dia uma amiga minha, jovem e sensata. Mas haja coragem para nadar contra a correnteza, em quase todos os assuntos e modismos deste nosso tempo.
Aí vem o tal programa BBB, que virou manchete, no qual um casal (nada original, pois a isso eu mesma assisti nos primeiros tempos) faz ou finge fazer sexo embaixo da coberta sabendo que é filmado. Nada novo, isso já se viu ali com alguns parceiros a mais na cama, ou no sofá espiando, pois, se é o olhar voraz do BB que tudo espreita, por que não? Alguém ousou reclamar, mas parece que a maioria achou tudo bobagem, todos estavam gostando, o povo espectador aplaudindo, por que não, por que não? Afinal, não somos tropicais, liberados, avançados, modernos, embora digam que somos Terceiro Mundo – ou exatamente porque somos?

"Minha esperança é que, apesar de tudo,
 se afirme e se espalhe a velha mania
do bom gosto e da compostura,
que, como caldo de galinha,
nunca fez mal a ninguém."

Não sei se progresso se mede pela vulgaridade. Não sei se avanço se calcula conforme a deselegância, e se ascender socialmente implica baixar as calças, levantar a saia, tirar o que sobrou do sutiã. Tenho dúvidas. Tenho insegurança a respeito do que representam essas drásticas mudanças, do antigo primeiro tímido beijo na boca cheio de encantamento e mistério, e esse ficar atual, muitas vezes ainda na infância, no qual vale quase tudo e meninas engravidam sem saber – e sem saber de quem – nesses falsamente inocentes joguinhos eróticos em salões de festa, quando a luz diminui, ou dentro de piscinas sem adulto por perto, ma com bebida.
Escrevi há tempos dois artigos dizendo que família deveria ser careta: cada dia me convenço mais de que toda a sociedade deveria ser um pouquinho mais careta. Com jovens menos pressionados a enveredar precocemente por uma sexualidade que ainda não é a deles nem psíquicas nem biologicamente. Com adultos que não precisam inventar uma modernidade fictícia, mas ser amorosos e responsáveis – mais naturalmente alegres, não tendo de se expor de corpo e alma, feito, diz minha amiga Lygia Fagundes Telles, “carne em gancho de açougue”. Essa aceleração no escrachado, no pretensamente liberado, essa ânsia de ser uma celebridade, de ser notado (não necessariamente amado), essa exigência de ter imediatamente um emprego bom, fácil, muito bem pago, e todas as sensações que o mundo (da fantasia) pode oferecer, depressa, logo, agora, não têm volta. Pois a construção de uma vida, uma profissão, uma pessoa, importo pouco diante da onde de caricaturas de mulheres, homens ou gays que invade nossas telinhas e respinga no nosso colo. E o mundo gira para a frente. Tudo está virando um grande cenário de reality show? Que reality, aliás? Pois não me parece que essa seja a realidade concreta. E é isso que alimenta minha esperança de que, apesar de tudo, se afirme e espalhe a velha mania do bom gosto e da compostura, que, como caldo de galinha, nunca fez mal a ninguém.
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* Escritora. Tradutora. Colunista da VEJA
Fonte: Revista VEJA impressa, ed. 2254, nº 5 - 01 de fevereiro de 2012.
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domingo, 29 de janeiro de 2012

Crítica ao modelo-padrão de sustentabilidade

Leonardo Boff*
Os documentos oficiais da ONU e também o atual borrador para a Rio+20 encamparam o modelo padrão de desenvolvimento sustentável: deve ser economicamente viável, socialmente justo e ambientalmente correto. É o famoso tripé chamado de Triple Botton Line (a linha das três pilastras), criado em 1990 pelo britânico John Elkington, fundador da ONG SustainAbility. Esse modelo não resiste a uma crítica séria.
Desenvolvimento economicamente viável: Na linguagem política dos governos e das empresas, desenvolvimento equivale ao Produto Interno Bruto (PIB). Ai da empresa e do pais que não ostentem taxas positivas de crescimento anuais! Entram em crise ou em recessão com conseqüente diminuição do consumo e geração de desemprego: no mundo dos negócios, o negócio é ganhar dinheiro, com o menor investimento possível, com a máxima rentabilidade possível, com a concorrência mais forte possível e no menor tempo possível.
Quando falamos aqui de desenvolvimento não é qualquer um, mas o realmente existente que é aquele industrialista/capitalista/consumista. Este é antropocêntrico, contraditório e equivocado. Explico-me.
É antropocêntrico pois está centrado somente no ser humano, como se não existisse a comunidade de vida (flora e fauna e outros organismos vivos) que também precisa da biosfera e demanda igualmente sustentabilidade. É contraditório, pois, desenvolvimento e sustentabilidade obedecem a lógicas que se contrapõem. O desenvolvimento realmente existente é linear, crescente, explora a natureza e privilegia a acumulação privada. É a economia política de viés capitalista. A categoria sustentabilidade, ao contrário, provém das ciências da vida e da ecologia, cuja lógica é circular e includente. Representa a tendência dos ecossisstemas ao equilíbrio dinâmico, à interdependência e à cooperação de todos com todos. Como se depreende: são lógicas que se auto-negam: uma privilegia o indivíduo, a outra o coletivo, uma enfatiza a competição, a outra a cooperação, uma a evolução do mais apto, a outra a co-evolução de todos interconectados.
É equivocado, porque alega que a pobreza é causa da degradação ecológica. Portanto: quanto menos pobreza, mais desenvolvimento sustentável haveria e menos degradação, o que é equivocado. Analisando, porém, criticamente, as causas reais da pobreza e da degradação da natureza, vê-se que resultam, não exclusiva, mas principalmente, do tipo de desenvolvimento praticado. É ele que produz degradação, pois delapida a natureza, paga baixos salários e gera assim pobreza.
A expressão desenvolvimento sustentável representa uma armadilha do sistema imperante: assume os termos da ecologia (sustentabilidade) para esvaziá-los. Assume o ideal da economia (crescimento) mascarando, a pobreza que ele mesmo produz.
Socialmente justo: se há uma coisa que o atual desenvolvimento industrial/capitalista não pode dizer de si mesmo é que seja socialmente justo. Se assim fosse não haveria 1,4 bilhões de famintos no mundo e a maioria das nações na pobreza. Fiquemos apenas com o caso do Brasil. O Atlas Social do Brasil de 2010 (IPEA) refere que cinco mil famílias controlam 46% do PIB. O governo repassa anualmente 125 bihões de reais ao sistema financeiro para pagar com juros os empréstimos feitos e aplica apenas 40 bilhões para os programas sociais que beneficiam as grandes maiorias pobres Tudo isso denuncia a falsidade da retórica de um desenvolvimento socialmente justo, impossível dentro do atual paradigma econômico.
Ambientalmente correto: O atual tipo de desenvolvimento se faz movendo uma guerra irrefreável contra Gaia, arrancando dela tudo o que lhe for útil e objeto de lucro, especialmente, para aquelas minorias que controlam o processo. Em menos de quarenta anos, segundo o Índice Planeta Vivo da ONU (2010) a biodiversidade global sofreu uma queda de 30%. Apenas de 1998 para cá houve um salto de 35% nas emissões de gases de efeito estufa. Ao invés de falarmos nos limites do crescimento melhor faríamos falar nos limites da agressão à Terra.
Em conclusão, o modelo padrão de desenvolvimento que se quer sustentável, é retórico. Aqui e acolá se verificam avanços na produção de baixo carbono, na utilização de energias alternativas, no reflorestamento de regiões degradadas e na criação de melhores sumidouros de dejetos. Mas reparemos bem: tudo é realizado desde que não se afetem os lucros, nem se enfraqueça a competição. Aqui a utilização da expressão “desenvolvimento sustentável”possui uma significação política importante: representa uma maneira hábil de desviar a atenção para a mudança necessária de paradigma econômico se quisermos uma real sustentabilidade. Dentro do atual, a sustentabilidade é ou retórica ou localizada ou inexistente.
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* Teólogo. Escritor. Acaba de lançar o livro Sustentabilidade: o que é e o que não é pela Editora Vozes, Petropolis 2012.
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O FUTURO MODESTO DA EUROPA

Walter Laqueur - Entrevista
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O historiador alemão naturalizado americano
diz que a atual crise econômica na região
não é grave o suficiente para forçar os europeus
a aprofundar a união
de suas nações.
Em 2007, o historiador Walter Laqueur escreveu que a Europa enfrentava problemas estruturais graves que levariam à sua decadência num futuro próximo. Foi acusado de excesso de pessimismo. “Agora, as mesmas vozes que contestaram minhas ideias produzem manchetes apocalípticas sobre a Europa", diz Laqueur, de 90 anos. Nascido na Alemanha e naturalizado americano, o autor de mais de 25 livros sobre Europa, Oriente Médio e holocausto acaba de lançar nos Estados Unidos a obra Depois da Queda: o Fim do Sonho Europeu e o Declínio de um Continente. Ex-diretor do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, em Washington, ele falou a VEJA de Londres, onde moram seus filhos, sobre como a Europa pode reencontrar seu lugar no mundo.

(...)

O que esse declínio significará para a ordem global?
A região já havia deixado de ser o centro do mundo depois da II Guerra, mas ainda era uma fonte de inspiração por seus valores civilizatórios. Agora, ficará mais difícil para a Europa promover a liberdade e os direitos humanos para o resto do mundo. Mesmo internamente, será um desafio preservar a democracia em um momento em que, em meio a uma recessão, se tornou inevitável a adoção da austeridade nos gastos públicos. Pobres em recursos naturais e energéticos, os europeus lutarão para manter seu padrão de vida e suas conquistas sociais. A opção por solucionar questões externas com base na convivência pacífica e na cooperação também será posta à prova, pois entre 2020 e 2030 a proliferação de armas de destruição em massa de longo alcance terá se consolidado em países do Oriente Médio.

Como a Europa enfrentará essas ameaças?
A origem de muitos problemas da região está na resistência dos membros da União Europeia em rumar para a integração completa, para a criação dos Estados Unidos da Europa, ou seja, uma configuração política semelhante ao sistema federativo americano. Para poder fazer frente aos desafios externos será imperativo adotar uma política de defesa comum, da mesma forma que para resolver os problemas estruturais será preciso centralizar as decisões sobre as questões econômicas. Para seguirem esse caminho, contudo, os países europeus teriam de fazer concessões radicais de soberania. Mas não existem muitas opções ao alcance. Ou a União Europeia se desintegra de vez, liberando os países para tomar seu próprio rumo, ou tenta atravessar as turbulências atuais do jeito que dá, sem mexer muito na atual configuração institucional do bloco. Essa segunda opção é a mais provável, porque a história mostra que as instituições, uma vez instaladas, tendem a se manter por inércia. O mais preocupante, contudo, é que mesmo um continente europeu unido pode não reunir a fortaleza necessária para sustentar de modo consistente uma posição relevante nos assuntos mundiais. Talvez optar por uma postura modesta seja o mais fácil e menos arriscado para a Europa. As ambições dos países europeus, antes acostumados a ser fortes e influentes, terão de ser reduzidas.

"... os jovens europeus não têm ambição
e não estão preocupados em criar riquezas.
(...) Querem curtir a vida e esperam
que o estado os sustente."

Crises econômicas, como se sabe, são cíclicas. Passada a atual fase, os europeus não podem reaver seu antigo poder de alguma forma?
A crise que a Europa enfrenta é grave, talvez a mais profunda desde o fim da II Guerra, mas não é de vida ou morte. A recessão de 2008 teve certo efeito, pois induziu a Alemanha e a França a criar um fundo de estabilidade financeira para resgatar a Grécia e a Irlanda. Isso é suficiente para evitar o desastre iminente, mas não basta.
A meu ver, só uma crise de sobrevivência levaria os europeus a sair do estado coletivo de abulia em que se encontram.

Como assim?
A abulia era uma expressão consagrada pelos psiquiatras na França do fim do século XIX para descrever a total falta de ânimo e de vontade de um paciente. Os países europeus, alguns mais do que os outros, perderam o ímpeto de empreender e de exercer o poder político. A Europa sofre de abulia política e econômica. O desejo de ter poder e de exercê-lo se esvaneceu.
O nacionalismo agressivo que prevaleceu na região até 1950 se converteu em um nacionalismo passivo. Até os fascistas de hoje são defensivos. Os países europeus não sonham, como no passado, em se expandir territorialmente, mas sim em se fechar para o mundo.
Os europeus querem ser deixados em paz. A história mostra que as grandes mudanças muitas vezes ocorrem quando há a ascensão de uma nova geração otimista e ambiciosa. Isso não está ocorrendo na Europa.

Por quê?
Primeiro, porque a sociedade europeia está envelhecendo. As pessoas vivem mais e a parcela da população economicamente ativa diminuiu, o que explica em parte o fato de o sistema de bem-estar social ser cada vez menos viável. Segundo, porque os jovens europeus não têm ambição e não estão preocupados em criar riqueza. Eles também sofrem da mesma abulia coletiva. Querem curtir a vida e esperam que o estado os sustente. Eis o dilema dos países europeus: eles precisam que seus jovens trabalhem em dobro para pagar o custo das aposentadorias, mas a rapaziada também só quer viver dos benefícios sociais. A conta não fecha.

Como tirar a Europa dessa apatia?
Uma saída seria o surgimento de um nacionalismo europeu forte, mas esse sentimento é incipiente. Uma pesquisa de opinião mostrou que apenas a metade dos europeus se sentem “europeus”.
O nacionalismo pressupõe que um cidadão esteja disposto a se sacrificar por aqueles com quem compartilha da mesma identidade. Quanto maior o vínculo emocional, maior a propensão à solidariedade. O fato de os alemães não gastarem da ideia de pagar para salvar da falência outros cidadãos que abusaram dos benefícios sociais, como os gregos, mostra que a solidariedade europeia é mera ficção. Prevalece lealdade do indivíduo ao país em que ele nasceu. Várias tentativas foram feitas para fortalecer o sentimento da herança cultural comum, incluindo a criação de uma bandeira e de um hino europeu. Tudo em vão. A solidariedade e o sentimento nacional europeus podem se desenvolver a longo prazo, se impulsionados pela pura necessidade ou pela pressão econômica e política. Por essa razão, repito, só mesmo uma crise que ameace para valer seu existência fará a Europa se mexer.

Como seria essa crise?
Acho que a população europeia se uniria caso seis países entrassem em falência simultaneamente e outros tantos afundassem em dificuldades financeiras, com a duplicação das taxas de desemprego atuais.

Afinal, o que os europeus têm em comum?
Os valores democráticos, a tolerância, a promoção dos direitos humanos e o bem-estar social Muitas nações europeias enfrentam também os mesmos problemas, com a imigração descontrolada, que impõe desafios à identidade nacional. Alguns demógrafos preferem que, em um futuro não muito distante, os imigrantes e seus descendentes serão maioria nas cidades de Marselha, na França, Amsterdã, na Holanda, Bruxelas, na Bélgica, e Birmingham, na Inglaterra. A Europa precisa de imigrante, mas ainda não encontrou uma maneira de atrair aqueles com a qualificação adequada e dispostos a se submeter às normas e aos costumes locais.

"... o futuro da Europa deve ser focado
na vanguarda da tecnologia,
 da ciência e
dos produtos de luxo".

A União Europeia e o euro podem desaparecer?
Isso é improvável. A ideia de uma moeda comum não foi ruim. O euro não foi a principal causa da atual crise e, mesmo se desmoronasse agora, é provável que depois de alguns anos haveria outra tentativa de criar uma moeda única. O problema é que o euro não deveria ter sido criado sem que houvesse um governo unificado responsável por sua coordenação. Não é possível ter uma moeda comum quando os países do bloco decidem individualmente seu orçamento anual. Como as opções de reverter a integração dos países europeus e de acabar com o euro sairiam mais caras do que seguir em frente, o melhor a fazer agora é intensificar ainda mais a unificação política e econômica da região. A criação de um governo europeu que possa ditar os rumos da economia parece o mais provável, ainda que as negociações para isso demorem muito. Sem um controle central, o euro não seria capaz de sobreviver.

Que lugar na economia mundial o futuro reserva para a Europa?
A indústria de alguns países europeus ainda pode competir com os mercados emergentes, exportando bens de luxo e itens de alta tecnologia. A Alemanha é um exemplo notável de como a recuperação é possível. Depois de se reerguer da devastação da II Guerra, a Alemanha voltou a enfrentar um momento desafiador, em 1990, ao absorver sua porção oriental, comunista e empobrecida. Como consequência da reunificação, os alemães enfrentaram o desemprego e salários não competitivos. Parte da imprensa europeia passou a se referir ao país como o “homem doente da Europa”. Com o passar dos anos, as empresas alemãs fizeram ajustes estruturais, reduzindo custos e se tornando mais flexíveis. A situação hoje é completamente diferente. A Alemanha é um dos maiores exportadores do mundo. Já as nações menores da região precisam repensar a sua economia. Como não contam com recursos naturais para exportar nem com indústrias de ponta, aquelas que basearam sua fonte de renda em manufatura com mão de obra barata não podem mais competir com o custo agressivamente menor de países como a China. É por essa razão que o futuro econômico da Europa deve ser focado na vanguarda da tecnologia, da ciência e dos produtos de luxo. A região também tem vocação para se tornar um grande parque temático.

Parque temático?
Esse cenário pode parecer fantástico neste momento, mas é uma possibilidade que não pode ser descartada. Em vários países da região, o setor turístico tem se tornado o mais vibrante da economia e o principal receptor de moeda estrangeira. A capital francesa, por exemplo, virou uma espécie de Disneylândia de alto padrão para visitantes ricos de países emergentes como China e Índia, que já estão entre os que mais compram nas lojas de grifes parisienses. Nesses estabelecimentos, ter vendedores fluentes em mandarim já é quase uma obrigação. Os chineses recentemente superaram os russos como os maiores compradores de bens de luxo da Europa Ocidental. Muitos outros chineses virão. Esse pode ser o lugar da Europa na nova ordem mundial. Um lugar mais modesto, mas ainda respeitável.
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Fonte: Revista VEJA impressa, Ed. 2254, nº 5, 1º de fevereiro de 2012, pp.15/19 para ler a entrevista completa.

Para saber mais
Livros
Uma visão norte-americana sobre o declínio europeu


Apesar de seus exageros,
'After the Fall', de Walter Laqueur,
tem vários bons momentos em
sua análise da decadência europeia
Um importante historiador europeu que agora vive e trabalha nos Estados Unidos, Walter Laqueur se transformou no principal profeta do declínio europeu. Seu novo livro, After the Fall: The End of the European Dream and the Decline of a Continent (“Após a Queda: O Fim do Sonho Europeu e o Declínio de um Continente”), se parece com um sumário de muitos de seus temas favoritos: a Europa tem uma economia fraca, com um estado de bem-estar social excessivo, e pouca capacidade de reforma, além de uma população em declínio, e o pior de tudo, muitos imigrantes muçulmanos.
Laqueur faz muito em sentido em vários momentos. A crise do euro (que, como muitos observadores, ele não previu) expôs muitos dos males econômicos do continente. Ela confirmou a indiferença dos países mediterrâneos quanto à necessidade de melhorar sua competitividade. O cenário demográfico da Europa é preocupante, com uma população envelhecida e dependente de uma força de trabalho cada vez menor – e esse cenário piora nos países mais ao leste. E nenhum país europeu conseguiu ter sucesso na assimilação dos imigrantes, especialmente daqueles vindos de países muçulmanos.
Ainda assim, seu tom sombrio ainda é excessivo. O desempenho econômico da Europa na última década não foi particularmente pior que o dos Estados Unidos. Embora alguns países estejam em situações preocupantes, o continente tem algumas das economias mais fortes e mais competitivas do planeta. Além disso, a crise do euro está gerando reformas mais extensivas para reparar as arrasadas finanças públicas, aumentar o liberalismo e impulsionar a competição que poderia ter sido possível anos atrás.
Um grande problema do livro é a repetitiva e excessiva ênfase nos supostamente prejudiciais efeitos da imigração muçulmana, e Laqueur chega perto de se render aos piores temores da “Eurábia”, um termo que já foi comum entre a direita norte-americana. Mas ele exagera a expansão do islã (existem 20 milhões de muçulmanos na Europa, o que seria equivalente a 4% da população do continente). E ele certamente está errado ao afirmar que os muçulmanos não podem ser assimilados, de que a sharia se espalhará ou de grandes partes das cidades europeias vão se assemelhar ao norte da África. Um continente envelhecido precisa de imigrantes. Além disso, tanto a Turquia (de quem Laqueur fala mal na maior parte do tempo) e a Primavera Árabe (que ele menciona brevemente) sugerem que reformas e uma democracia liberal podem, ainda que com uma certa dificuldade, ser compatíveis com o islã.
Na sua conclusão, Laqueur reconhece que “os profetas do declinismo têm feito previsões erradas com frequência”, antes de afirmar que a União Europeia pode se desintegrar. Ainda que suas previsões sejam um tanto duvidosas, sua análise merece ser lida e refletida, especialmente por aqueles que, antes da crise do euro, gostavam de afirmar que a Europa estava mostrando ao mundo o caminho para um futuro melhor.
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Fontes: The Economist - A declinist’s case