sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Literatura e ignorância

José Castello*

 

          Volta-me, de repente, a célebre sentença do poeta alemão Friedrich Hölderlin: "O homem é um deus quando sonha e um mendigo quando pensa". Ela me adverte a respeito da arrogância. Da importância de dizer, saber dizer "não sei", "não consigo entender", "estou perplexo". Ela nos aponta para os dolorosos limites do saber. Vão no qual a literatura _ que é sonho _ se acomoda, não para explicar, ou dar uma solução, mas para alargar o campo fértil da dúvida.

          Lembranças, soltas, incoerentes, me tomam. Recordo aqui de uma das visitas que fiz a Hilda Hilst em sua Casa do Sol, sítio na periferia de Campinas em que se isolou do mundo. Levou- me à cozinha. Enquanto eu tomava uma inocente cerveja, ela se garrava, com força e fé, a uma garrafa de uísque, que saboreou puro e sem gelo. "Sabe por que me apego ao uísque?", me perguntou de repente. "Porque ele me faz esquecer. Esquecer que não sei".

          Naquele fim de manhã, quente e luminosa, conversamos justamente sobre isso: como é difícil aceitar que não sabemos; como é doloroso encarar as fronteiras de novo pequeno saber; como é importante considerar que, mesmo quando sabemos, ainda sabemos muito pouco. Falamos então sobre a literatura que, despida de arrogância, se
acomoda nesse vão da ignorância para dele fazer uma terra fértil. A literatura que é feita daquilo que não sabemos. Que os escritores praticam não para mostrar o que sabem, mas para mostrar o que não sabem. (Estarei relembrando o real, ou apenas um sonho que produzi para encobrir meu esquecimento do real?)

          Por isso, sempre me assusto quando encontro especialistas cheios de si, que se julgam senhores de suas ideias, que acreditam manejar como frieza e brilho as estruturas de seu miserável saber. Que não suportam a ideia de um saber miserável. Inútil? Não. É o que temos. Muito útil portanto, mas ainda assim miserável, insuficiente, cheio de lacunas e de falhas. Parcial e humano.

          Em tudo isso, a literatura, que é pura ronda delicada em torno da verdade, nos leva a pensar. Como sabemos pouco. Quantos são os caminhos à nossa disposição que nunca consideramos percorrer. Como é impossível saber tudo e, portanto, como são necessárias prudência e delicadeza no manejo de qualquer saber. Mesmo no manejo da literatura que, dizia Hölderlin, é antes de tudo sonho e, portanto, é pura fragilidade também.
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* Jornalista e escritor.
Fonte: O Globo online, 27/02/2014
Imagem da Internet

O AMOR FEITO DE BYTES

 

Theodoreo filme, o personagem de Joaquin Phoenix busca uma relação idealizada, sem sofrimento, que ele também 
procura e não encontra na vida real,
 com evidente motivação narcísica
Twombly, o protagonista de "Ela" ("Her"), um dos candidatos ao Oscar de melhor filme deste ano, existe de verdade. Ele pode não ter o bigode característico do personagem interpretado por Joaquin Phoenix, nem morar em Los Angeles, que serve de cenário à história passada em um futuro indeterminado. Não precisa nem ser homem, ou adulto. Adolescentes e crianças de ambos os sexos, e mulheres de diversas faixas etárias, também têm estrelado dramas pessoais que lembram muito o que se vê na tela. São histórias de pessoas que deixaram a tecnologia assumir um papel tão crítico em seus relacionamentos afetivos que não conseguem mais ir adiante sem essa intermediação. É o amor nos tempos dos bytes.

No filme, conduzido pelo diretor americano Spike Jonze, o fictício sistema operacional OS1 torna-se alvo do afeto de Twombly, um recém-divorciado que escreve cartas por encomenda de outras pessoas. Samantha, o nome que o software dá a si mesmo, é a voz da atriz Scarlett Johannson. O relacionamento avança aos poucos, até dar lugar a um romance.

Os sistemas atuais não são páreo para Samantha. Seria impossível se apaixonar por um software como o Windows, que faz funcionar a maioria dos computadores, ou o Android, o mais usado em smartphones. Esses programas nunca tiveram o propósito de simular uma existência humana. Mas isso está mudando. As grandes companhias de tecnologia têm avançado na direção de softwares que usam inteligência artificial para tentar descobrir a vontade dos usuários e, dessa forma, se "relacionar" com eles. A Apple criou o assistente pessoal Siri, para o iPhone, enquanto o sistema Android conta com o Google Now.

"A inteligência artificial ainda é muito rudimentar e não consegue enganar as pessoas, mas quando a experiência virtual mostrar-se tão substantiva quanto a real, todos vão caminhar para o virtual", afirma o psiquiatra Aderbal Vieira Jr., do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Para muita gente, nem é preciso esperar por algo parecido com Samantha para se enamorar no mundo digital. O psicólogo Cristiano Nabuco já atendeu a uma paciente apaixonada por um personagem do Second Life. O site, que fez muito sucesso anos atrás, reproduz cidades nas quais as pessoas assumem a aparência que quiserem na forma de figuras virtuais, seus avatares. "Ela tinha problemas de relacionamento por causa da obesidade", conta Nabuco, do Grupo de Dependências Tecnológicas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. Curiosamente, no Second Life a paciente tinha a mesma profissão do mundo real. Depois de um tempo, porém, ela - ou melhor, seu avatar - passou a se prostituir. Com o dinheiro, a mulher comprou um apartamento luxuoso (o Second Life tem sua própria moeda) e foi viver com seu amado, tudo no ambiente virtual.

Parece um caso isolado, mas no Japão esse tipo de ocorrência tem assumido proporções tão grandes que começa a preocupar os responsáveis pela demografia no país. Uma pesquisa feita em 2010 pelo Ministério da Saúde, do Trabalho e da Previdência Social mostrou que 36% dos homens japoneses entre 16 e 19 anos não demonstravam nenhum interesse em sexo, informou a BBC. Eles são os otaku, uma geração de fanáticos por tecnologia que cresceu em meio às dificuldades econômicas no país, e preferiu se refugiar em um universo povoado por personagens de histórias em quadrinhos, séries de TV e jogos de videogame.

Nem o Windows nem o Android pretendem simular uma existência humana, como no filme de Spike Jonze,
 mas isso está mudando

Um dos maiores sucessos entre os otaku é o "Love Plus", um jogo para o console portátil Nintendo DS. O jogador escolhe uma entre duas garotas possíveis, ambas na faixa dos 15 anos, e assume o papel de um adolescente. Os fãs mais ardorosos levam seus pares virtuais, de grandes olhos e roupa de colegial - uma estética típica dos mangás, os quadrinhos nipônicos - para passear ou tirar fotos. Alguns vão além. Em 2009, um homem conhecido apenas por seu apelido, Sal 9000, casou-se com a namorada digital, Nene Anegasaki, em uma cerimônia em Guam, transmitida pela internet. Ele tinha 27 anos na época.

Ao eleger pares perfeitos, a tentativa é de buscar uma relação idealizada, sem sofrimento, "como se isso fosse possível", afirma o psiquiatra Daniel Tornaim Spritzer, fundador e coordenador do Grupo de Estudos sobre Adições Tecnológicas (Geat), do Rio Grande do Sul. "É como no filme. O relacionamento do protagonista com Samantha é parecido com o que ele mantém com as mulheres reais", diz Spritzer. "Quando a mulher se comporta do mesmo jeito que ele, há uma aproximação, mas quando ela manifesta seus próprios desejos, ele cai fora." O narcisismo dessas relações virtuais é indisfarçável.

Mas nem sempre o que acontece na web fica na web. Pessoas com dificuldades para estabelecer relacionamentos mais longos têm usado aplicativos de namoro para encontrar sexo casual - e de verdade, não virtual. Entre os aplicativos mais populares estão o Tinder, destinado a heterossexuais, e o Grindr, para gays e lésbicas. Excetuando os EUA, o Brasil é o país que cresce mais rapidamente em número de usuários do Tinder, ao lado do Reino Unido. Para o Grindr, é o sétimo mais importante, com quase 220 mil adeptos.

É preciso conectar os programas a um perfil em redes sociais como o Facebook. Por geolocalização, os softwares identificam onde estão os parceiros potenciais mais próximos, identificam a quantos metros está o candidato e exibem seu perfil. Fotos sensuais são comuns na apresentação. A pessoa então faz o convite para um encontro e espera a resposta. "Tenho uma paciente que afirma só obter sexo pelo Tinder", diz Nabuco. "A justificativa é que dessa maneira ela consegue ser de um jeito que não é possível no mundo real."

Spike Jonze - que também é autor do roteiro de "Ela" - tem repetido em entrevistas que o filme é sobre a dificuldade de criar intimidade e não sobre tecnologia. É difícil, porém, separar as duas coisas. Com a disseminação de celulares e tablets, muitos especialistas avaliam que o fluxo de comunicação aumentou significativamente, mas tende a ser superficial, embora isso varie de pessoa para pessoa.

A questão é mais grave entre os adolescentes. É nessa etapa que se aprende como se relacionar com o outro, inclusive do ponto de vista afetivo e sexual, diz Spritzer. "O problema é que esse aprendizado pode ser tão facilitado pela internet que o indivíduo não desenvolve seu potencial pleno", afirma o psiquiatra.

O fenômeno é chamado de "emotional numbing" ou anestesia emocional. Sem desenvolver completamente a capacidade de "ler" o outro, a pessoa vê o mundo como um lugar mais ameaçador, refugiando-se na tecnologia. Em pesquisas feitas nos EUA, rapazes revelaram-se sexualmente agressivos em seu contato com as meninas, na internet. "Quando colocados frente a frente, no entanto, eles se mostravam tímidos", diz Nabuco.

Algo diz que a primeira empresa que desenvolver um sistema como Samantha vai ganhar muito dinheiro no futuro.
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Reportagem por João Luiz Rosa
Fonte: Valor Econômico online, 28/02/2014

O PAÍS DOS ANOS A MAIS

 David Pilling*
 Bloomberg / Bloomberg
 A despesa total com saúde no Japão é de 9,3% do PIB, enquanto nos Estados Unidos chega a 18% 
(na foto, idosos fazem ginástica calistênica num parque de Tóquio)

À primeira vista, Akira Kawahito e Shigenobu Kambayashi não parecem médicos. Mesmo sob o gélido céu azul do inverno, Kambayashi usa sandálias e sobre sua camiseta balança despreocupadamente um estetoscópio, como se fora um acessório de moda. Kawahito, 66 anos, tem os cabelos negros. Os de Kambayashi, 71, são de um cinza prateado. Em ambos, a expressão fisionômica é de quem tem uma boa noção do mundo - e de quem gostou da maior parte do que viu. Apesar de passarem grande parte do tempo ocupados com doença e morte, parecem curtir o lado engraçado das coisas, alternando-se em fazer piadas ou cutucarem-se de um jeito brincalhão.

Kawahito, autor do livro "Eu Quero Morrer em Casa", é um batalhador pela causa de acompanhamento médico domiciliar, que tem uma longa tradição no Japão. A atratividade de cuidados comunitários decorre, em parte, de um estigma associado a internar membros da família em asilos - instituições consideradas, pelo menos até recentemente, como apenas para os infelizes abandonados por parentes indiferentes. Esses "exilados" eram por vezes alcunhados de "avozinhos descartados na montanha", por referência a uma suposta prática de outros tempos.

Os filhos, e não o Estado, são considerados os responsáveis por cuidar dos pais idosos, e a responsabilidade muitas vezes recai sobre as noras. Mas com o esgarçamento da estrutura familiar japonesa, que se fez extensiva a vários graus de parentesco, e à medida que mais mulheres passaram a trabalhar fora, o Estado teve que buscar alternativas. Hospitais, por vezes, preenchem a lacuna. O fato de que idosos pagam apenas 10% a 20% de despesas médicas com dinheiro de seu bolso tornou o esquema relativamente acessível às pessoas, embora não para um governo endividado que tenta conter custos. Em resposta, o Estado aumentou os pagamentos que os médicos recebem por visitas domiciliares, num esforço para incentivar o atendimento em casa.

Não é de hoje que Kawahito está convencido de que é melhor para os pacientes passar seus últimos anos e meses em um ambiente familiar do que em algum hospital com atendimento despersonalizado. "Nossa filosofia, ao dispensar cuidados aos idosos, é contribuir para a qualidade de vida deles", diz. "Queremos assegurar que tenham momentos de alegria, que possam comer boa comida e passar mais tempo com os amigos e a família que amam. Estamos menos preocupados com o prolongamento da vida do que com a preservação de sua qualidade." Cerca de um terço dos pacientes de que Kawaito trata é "neta-kiri" (presos ao leito). Muitos têm alguma doença terminal. No último mês de vida, diz, os hospitais frequentemente gastam enormes quantias de dinheiro tentando prolongar vidas. Alguns pacientes e suas famílias querem ganhar cada dia adicional, e isso é bom. Mas alguns não. "Muitos pacientes dizem: 'Por favor, deixem-me ir' ".

A comunidade em que Kawaito trabalha é chamada Yanagihara, uma área desprovida de atrativos, nas planícies do leste de Tóquio. No total, seis médicos revezam-se em turnos, quando dormem na pequena clínica de Kawahito, de onde prestam um serviço de emergência durante 24 horas. "Fazemos parte desta comunidade", diz, movendo o dedo sobre um mapa na parede onde há um pequeno ponto colorido para cada casa visitada. "Ser capaz de curar os males de uma comunidade não é apenas enfrentar doenças, mas olhar todas as coisas em torno."

O envelhecimento do Japão - na verdade, de qualquer país - é invariavelmente apresentado em termos totalmente negativos. É enfatizar o óbvio dizer que em uma sociedade envelhecida há um número crescente de pessoas idosas, uma fase da vida em que nossa cultura focada na juventude encontra poucas características compensadoras. Em contraste com o Japão, assim como na China e na Coreia do Sul, onde as pessoas mais velhas são alvo do respeito nascido da tradição confuciana, na maior parte do Ocidente a velhice é normalmente associada a doença, senilidade e morte.

Se o envelhecimento é uma enfermidade, então o Japão está em seus estágios avançados. Em 1950, apenas 5% dos japoneses tinham mais de 65 anos. Hoje são 25%. Com a exceção de Mônaco, o Japão é a sociedade mais velha no mundo, onde a idade média é de 44 anos. O número equivalente no Reino Unido é 40. Os Estados Unidos são relativamente jovens, com 37 anos. A esse ritmo, em 2035, um em cada três japoneses terá 65 anos ou mais.

À medida que a população envelhece, mais de 400 escolas são fechadas a cada ano e muitas são convertidas em asilos para idosos ou em infraestrutura de lazer. Alguns parques municipais substituíram balanços e rotatórias por equipamento destinado a exercícios físicos para idosos. No interior, comunidades inteiras foram praticamente abandonadas pelos jovens, deixando as gerações mais velhas entregues à própria sorte. A anedota, muitas vezes repetida, de que os japoneses compram mais fraldas geriátricas do que infantis provavelmente não é verdadeira, mas poderá ser fato, em breve, consideradas as tendências atuais. Mas reflete nossa repulsa diante da ideia de um país com mais velhos do que bebês. Quase subliminarmente, pensamos: um lugar assim deve ser uma ofensa à própria natureza.

Os japoneses têm a maior expectativa de vida entre todos os grandes países: os homens vivem, em média, 
até 80 anos e as mulheres, até 86

O Japão não é exatamente o ponto fora da curva que frequentemente supomos. É verdade que a taxa de fertilidade japonesa - 1,41 nascimento por mulher - está bem abaixo dos 2,1 necessários para recompor a população. Mas, de acordo com George Magnus, autor de "The Age of Aging" (a era do envelhecimento), 62 países, onde vive quase metade da população mundial, inclusive o Reino Unido, apresentam taxas de fertilidade abaixo do nível de reposição. O Japão não é, de modo algum, o país menos fecundo do mundo. Têm números ainda menores países como a República Tcheca, Polônia, Eslovênia, Bielorrússia, Bósnia, Coreia do Sul, Taiwan e Hong Kong. Alemanha, Itália, Grécia e Hungria têm quase exatamente a taxa de fertilidade japonesa. A China, com cerca de 1,5 nascimento por mulher, corre o risco de envelhecer antes de ficar rica. Cingapura produz o menor número de bebês no mundo, com 0,79 por mulher. "A característica fundamental das atuais baixas taxas de fertilidade", diz Magnus, "é que são praticamente universais".

O envelhecimento coloca uma série de dificuldades para as sociedades: da manutenção do crescimento econômico à prestação de cuidados adequados e o pagamento de aposentadorias. Os japoneses têm a maior expectativa de vida entre todos os grandes países: os homens vivem em média até 80 anos e as mulheres, 86. O Japão, portanto, está na vanguarda de uma experiência que, mais cedo ou mais tarde, provavelmente será empreendida por diversos países - da Alemanha à China e da Coreia do Sul à Itália. É verdade que o Japão pode ser um caso extremo, devido à sua resistência à imigração em massa. Os japoneses ainda tendem a falar mais sobre como os robôs podem ajudar a cuidar de seus idosos do que sobre a utilidade de filipinos ou indonésios. Mas, em outros países, também a capacidade dos imigrantes de renovar as populações deverá diminuir, à medida que os países mais pobres alcançarem os padrões de vida ocidentais e suas taxas de natalidade caírem, convergindo para padrões mundiais.

Na verdade, a taxa de natalidade japonesa cresceu um pouco nos últimos anos - de 1,27 para 1,41 -, embora isso ainda esteja longe de suficiente para reverter a tendência de longo prazo. Com certeza, não dissuadiu os políticos de fazerem previsões alarmistas. Em relatório, o governo divulgou certa vez que, seguindo as tendências atuais, haveria apenas 500 japoneses no ano 3000. "Se continuarmos assim", disse Chikara Sakaguchi, ex-ministro da Saúde, "a raça japonesa será extinta".

John Creighton Campbell, professor na Universidade de Michigan, dedicou grande parte de sua carreira ao estudo das reações ao envelhecimento no Japão. Ele discorda de alguns colegas que associam o que se tornou conhecido como "hiperenvelhecimento" do Japão a uma inevitável catástrofe econômica - e até mesmo a um colapso civilizacional. Uma virtude da "crise" do envelhecimento, diz, é que acontece de forma lenta e previsível, dando a governos, mercados de trabalho e à sociedade em geral tempo para se ajustar. Por volta de 2017, o número absoluto, embora não o percentual, de pessoas com mais de 65 anos realmente se estabilizará, calcula Campbell, o que significa que os custos associados ao envelhecimento também tenderão a deixar de crescer.

Já no início dos anos, o governo se deu conta do problema do envelhecimento iminente e começou a criar asilos e incentivar a formação de cuidadores. Na década de 1970, foi estabelecido um sistema de saúde praticamente gratuito para idosos. Em 1990, o Japão colocou em prática o "Plano de Ouro", uma expansão dos serviços de cuidados de longo prazo. Dez anos mais tarde, impôs um seguro obrigatório para cuidados de longo prazo. Todos com mais de 40 anos são obrigadas a contribuir. Os recursos financeiros do sistema provêm de impostos e os beneficiários também contribuem, dependendo de suas condições. Mesmo assim, tem havido problemas de financiamento e o governo viu-se obrigado a baixar o nível dos serviços prestados. Ainda assim, Campbell o considera "um dos esquemas mais abrangentes e generosos no mundo".

Como resultado dessas e outras adaptações, argumenta Campbell, o Japão tem um equilíbrio razoável entre prestação de cuidados e controle de custos. Outros países, como o Reino Unido, estudaram o Japão de perto para extrair possíveis lições. Como se sabe, 15 anos de deflação deixaram as finanças japonesas em condição lamentável, com uma relação entre dívida pública e PIB de 240%, a mais elevada no mundo.

No entanto, os gastos per capita com saúde estão entre os mais baixos nas nações avançadas, embora os resultados estejam entre os melhores. Isso se deve, em parte, ao estilo de vida. A maioria dos japoneses pratica uma dieta saudável à base de peixe e consome menos alimentos processados e bebidas açucaradas do que os ocidentais. A obesidade é muito menos comum. Os números também são menores em relação à violência e ao abuso de drogas. Mesmo levando em conta tais fatores, porém, o Japão tem uma excelente relação benefício/custo na área de saúde. A cada dois anos, o governo renegocia as tarifas de reembolso com médicos, hospitais e empresas farmacêuticas - e habitualmente impõe reduções. O atendimento primário de saúde tem prioridade sobre tratamentos especializados - os japoneses visitam seus médicos com muito maior frequência do que os americanos, mas submetem-se a muito menos intervenções cirúrgicas.

O volume de dinheiro que um país gasta com serviços de saúde é determinado mais pelo sistema de provimento do que por seu perfil etário, argumenta Campbell. Assim, a despesa total com saúde nos Estados Unidos equivale a 18% do PIB, enquanto no Japão é de apenas 9,3%. "O encargo econômico dos sempre crescentes gastos médicos é um problema grave para os jovens Estados Unidos, mas não para o velho Japão", diz Campbell.

Uma coisa positiva, no Japão, acrescenta Campbell, é que as pessoas não apenas vivem mais tempo, mas permanecem mais saudáveis por mais tempo. Um estudo da Organização Mundial de Saúde, publicado em 2000, mostra que os japoneses desfrutam, em média, de 74,5 anos de vida saudável, em comparação com 71,7 no Reino Unido e apenas 70 nos Estados Unidos. Outro fator é que as pessoas mais velhas tendem a ser tratadas como membros importantes da sociedade. Em muitas empresas, as hierarquias ainda são regidas em larga medida pela idade.

Em Yanagihara, Kawahito diz que a maioria de seus pacientes em estado grave está perto de 70, 80 anos. Em algumas famílias, filhos de 70 anos cuidam de seus pais de 90 anos. Numa tarde, acompanhei os médicos em suas rondas.

Os médicos sabem tudo sobre seus pacientes, de suas rusgas conjugais a seus esquemas de cuidados diários com a saúde. Terminadas as visitas, Kambayashi compartilhou algumas reflexões. "Os valores cultuados nos anos de expansão acelerada da economia foram errôneos e o Japão tornou-se um lugar difícil para criar filhos", disse Kambayashi, procurando explicar a queda na taxa de natalidade. "Os homens foram os 'guerreiros' do milagre econômico". Às mulheres coube o encargo de cuidar dos idosos."

Agora, esse sistema está sob tensão. Kambayashi considera os recursos do Estado inadequados para prover um cuidado efetivamente humanitário. Um de seus pacientes, por exemplo, solicitou alguém para ajudá-lo a tomar banho. O pedido foi negado. "O único lugar onde você tem o direito de tomar banho duas vezes por semana é a cadeia", resmungou Kambayashi. "Isso é vergonhoso num país tão rico."
Bloomberg / Bloomberg 
A maioria dos japoneses pratica uma dieta saudável, à base de peixe, e a obesidade é muito menos comum 
do que no Ocidente (na foto, senhoras à mesa do almoço numa instituição de assistência a idosos
 
O envelhecimento não é apenas algo que acontece aos idosos. Também afeta o tamanho da população economicamente ativa. A tendência da denominada taxa de dependência no Japão parece gritante. Em 1960, havia 11 pessoas em idade ativa para cada pessoa com mais de 65 anos. Hoje, há provavelmente 1,3.

É importante o número de trabalhadores em relação não às pessoas idosas, mas em relação aos não trabalhadores, inclusive crianças e mulheres. Por esse ângulo, a relação de dependência no Japão não parece tão ruim. Pode haver mais pessoas idosas, mas há menos crianças (improdutivas) com que se preocupar e mais mulheres na força de trabalho, ainda que não em número suficiente. Circunstância crucial é que as pessoas estão trabalhando mais. A idade de aposentadoria, 55 anos em meados da década de 1980, está sendo elevada para 65 e, sem dúvida, será novamente aumentada. Na prática, 60 anos é a idade média em que os japoneses param de trabalhar, ou seja, três a quatro anos acima da média nos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico. As mulheres, assim como os homens, trabalham até uma idade surpreendentemente elevada. Em outras palavras, muitos idosos, no Japão, são tanto produtores como consumidores.

O sistema de senioridade japonês, em que os salários aumentam com a idade, e não com a capacidade profissional, implica que, frequentemente, os empregadores não querem manter funcionários além da idade de aposentadoria. Muitos japoneses, porém, contornam essa rigidez iniciando uma segunda carreira. Alguns são profissionais que continuam recebendo bons salários. Outros trabalham em ocupações mais braçais e menos bem pagas, varrendo folhas em parques, estocando prateleiras de supermercados ou como seguranças em canteiros de obras. É bastante comum ver pessoas em seus 70 anos trabalhando como assistentes em apinhadas estações de metrô em Tóquio ou fritando costeletas de porco em restaurantes.

Makoto Hashimoto, 72 anos, aposentado há 12, tem um emprego de meio período numa locadora de bicicletas em Sakura Shinmachi, no sudeste de Tóquio. Como o Japão está lidando com o envelhecimento?, perguntei. "Estamos um pouco preocupados com a baixa taxa de natalidade", disse. "Qualquer sociedade precisa se renovar, ter filhos chegando em número suficiente. Nós realmente não sabemos qual será o desdobramento disso."

Hashimoto revela-se mais preocupado com a geração mais jovem do que com a sua. O contingente acima de 65 anos controla a maior parte da enorme poupança das famílias japonesas. Em vez de se constituírem em um fardo, os idosos japoneses estão transferindo riqueza para as gerações mais jovens, gastando dinheiro com seus filhos e netos ou deixando-o como herança, ao morrer. "Nós desfrutamos o período de aquecimento econômico", disse Hashimoto. "Meu filho não gozará das mesmas vantagens. Ele está agora com 40 e poucos anos, e as coisas poderão ficar mais difíceis para ele do que foram para mim."

Grande parte do envelhecimento está acontecendo longe das grandes cidades, nas províncias. A idade média dos agricultores japoneses é 70 anos. Mesmo em comunidades não agrícolas, há um número crescente de idosos. Inukai é uma aldeia de 4 mil pessoas na província de Oita, pouco mais de 500 km a sudoeste de Tóquio. Bem mais de um terço de seus moradores tem 65 anos ou mais. Masaya Shin, diretor de escola aposentado, mora lá com sua mulher, Yoshie, numa casa coberta por um telhado tradicional e anexa a um jardim com pinheiros e uma lanterna de pedras.

Shin, pequeno, magro, cabelos curtos, tem 72 anos, mas você nunca desconfiaria disso ao tentar rebater suas agressivas bolas com efeito. Além de tênis de mesa, ele pratica e ensina "kendo", arte marcial em que os participantes se enfrentam com espadas de bambu. Ele é o quinto mais antigo em sua turma. "Nosso lema é: 'Vamos praticar 'kendo' até os cem anos' ".

Shin também frequenta regularmente sessões de "iaido", arte marcial cujos praticantes fazem movimentos controlados com uma espada verdadeira - com gume cego ou mesmo afiado. O "iaido" não é para medrosos: certa vez, um de seus companheiros estava sacando sua espada da bainha quando, acidentalmente, cortou fora parte da própria orelha.

Além de seus passatempos, boa parte do tempo de Shin é ocupado com um trabalho remunerado: ensinar japonês a trabalhadores rurais temporários vindos da China, Tailândia e Filipinas. Também ensina como voluntário, gratuitamente. Gostaria de aprender caligrafia e está interessado na história Meiji local. "Mas há tão pouco tempo...".

Shin pratica um estilo de vida que deixaria esgotados muitos homens mais jovens. "Tudo tem a ver com 'ikigai' ", diz, usando uma palavra japonesa que pode ser traduzida como "razão para viver", algo para manter a mente e o corpo ativos. Tornou-se moda, diz, falar sobre "pinpinkorori", maneira brutal, mas quase cômica, de descrever uma vida ativa seguida de morte súbita. "Cair morto", comenta, rindo. "Essa é uma boa maneira de economizar nas contas médicas." Faz uma pausa para refletir. "Afinal, não queremos ser um peso morto para os jovens." (Tradução de Sergio Blum)
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* David Pilling é editor de Ásia no "FT". Seu livro 'Bending Adversity: Japan and the Art of Survival' foi publicado pela Allen Lane.
Fonte: Valor Econômico online, 28/02/2014

O eu viral: a obrigação moral de emocionar-se e a vontade de reinjetar

Paulo Brabo*
A ideia por trás do conteúdo viral não é você ficar sabendo sobre “o cachorro que visita todos os dias a igreja italiana em que o corpo do seu dono foi velado” ou histórias do gênero (que frequentemente fica demonstrado não serem factuais), mas você ser a pessoa que responde de modo esperado a essas histórias e as repassa para outra pessoa. A função do conteúdo viral é permitir a participação vicária nas emoções da história, bem como a participação vicária no universo social.
Sei que minha reação a algo que estou lendo pode ser encenada no Twitter, por isso trato de ter uma reação.
A viralidade e a popularidade percebidas de determinada postagem, ilusórias ou não, geram uma resposta emocional mais rica por parte de quem consome o conteúdo. A viralidade pode exercer para o leitor o papel de desinibidor, autorizando a fantasia e o envolvimento emocional, uma suspensão da descrença que é sustentada pela aparente corroboração social. Todo mundo está falando sobre isso! Nesse sentido a história é “real” não importando se os detalhes correspondem à realidade. A circulação da história a torna um fato social.

As redes sociais provêm a plataforma para uma espécie de epidemiologia quotidiana do ego, da infecciosidade social do indivíduo. Esse pode acabar tornando-se o propósito do ego, sua âncora, seu modo de confirmar-se diante de si mesmo. Quando se distancia das timelines, para longe das plataformas de transmissão contínua de notícias, deixando de empurrar notificações sobre os outros, o eu viral cai em crise existencial, buscando desesperadamente iscas novas que possa reinjetar na rede.
O eu viral conhece a si mesmo ainda no modo como sinaliza determinados compromissos e ligações emocionais através do recompartilhamento. (Em seu artigo Klein realça o tipo de pressão de grupo que é fomentada por manchetes virais: “Você é tão babaca que não vai gastar um minuto para descobrir o motivo de cortar o coração que levou esta mãe a abandonar seu bebê agonizante? … O que você estará dizendo ao amigo que compartilhou essa história se passar por cima dela para curtir alguma coisa sobre cupcakes?”). As redes sociais criam um palco em que podemos desempenhar esse tipo de leitura receptiva, o que intensifica a experiência e aquilo que está em jogo na leitura – ou no simples “curtir”, que basta para se participar do arrebatamento da história sem que se tenha de ler mais do que a manchete.
 
Ter sentimentos não leva a nada se sua performance deles não é tão viral quanto aquilo que as ocasionou.
Sei que minha reação a algo que estou lendo pode ser encenada no Twitter, por isso trato de ter uma reação: entro no personagem da minha reação e vejo o que sai. Este é um bônus adicional em se consumir conteúdo online que não extraio de folhear Casa Cláudia na fila do mercado. Minha performance pode depois disso circular e substanciar-me, bem como prover o prazer imediato do envolvimento vicário com a história e com a galera que imagino respondendo todos juntos a ela.

O engendramento da viralidade ameaça desse modo assumir o papel de prática moral independente. Ser capaz de jogar com diversos gatilhos emocionais de modo a gerar a viralidade e responder a eles de modo apropriado subordina essas emoções a um bem maior, cujo valor fica estabelecido pela mobilidade dos sentimentos, por sua mensurável transferibilidade – trata-se menos de algo ser comovente do que do fato de ser movente: de estar em movimento.

As emoções que provocam o conteúdo viral tornam-se quase de imediato pretexto para estabelecermos contato com a audiência, e essa sensação de uma conexão que se expande serve de emoção mestra, raiz do sentimento de “autenticidade”. Ter sentimentos não leva a nada se você não pode ser visto tendo esses sentimentos. Isso foi verdadeiro na segunda metade do século XVIII, no auge da sensibilidade incitada pela emergência dos romances como meio social; é verdadeiro nas redes sociais online, em forma amplificada. Ter sentimentos não leva a nada se sua performance deles não é tão viral quanto aquilo que as ocasionou.

A viralidade torna-se desse modo a linha do horizonte abaixo da qual uma ocorrência deixa de figurar socialmente, deixa de servir para ancorar a identidade ou afirmar o ego. Se uma experiência recontada não continua a circular, tanto a experiência quanto o recompartilhamento original nada representam. Não chegam nem mesmo a serem falsos; simplesmente não importam.

Do mesmo modo que a genuinidade mostrou-se irrelevante para o conteúdo viral, é também irrelevante para o eu viral. O eu viral é “pós-autêntico”, em que encontra sua verdade em mensurações ex post facto (quantas curtidas, quantas visualizações, quantos compartilhamentos) e não na fidelidade a uma ética ou sistema de valores preexistentes. Sua “autenticidade” é um efeito secundário de ter sido capaz de arregimentar uma audiência que dê valor ao conteúdo que faz circular. 

Manter-se verdadeiro a algum espírito interior imutável, ser consistente a despeito das demandas da audiência que observa – essas deixaram de ser preocupações relevantes.
Rob Horning em The Viral Self
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* Escritor. 
Fonte:  http://www.baciadasalmas.com/2014/
Imagem da Internet

A sabedoria chinesa do cuidado: o Feng Shui

 Leonardo Boff*
 
Uma das vantagens da globalização que não é só econômico-financeira mas também cultural, é permitir-nos colher valores pouco desenvolvidos em nossa cultura ocidental.No caso, temos a ver com o Feng-Schui chinês. Literalmente significa vento (feng) e água (shui). O vento leva o Chi, a energia universal e a água o retem. Personalizado significa “o mestre das receitas”: o sábio que, a partir de sua observação  da natureza e da fina sintonia com o Chi indicava  o rumo dos ventos e o veios d’água e assim como bem montar a moradia.
         Beatriz Bartoly,  em sua brilhante tese em filosofia na UERJ, da qual fui orientador, escreve: “o Feng Shui nos remete para uma forma de zelo  carinhoso” – nós diríamos cuidadoso e terno – “com o banal de nossa existência, que no Ocidente, por longo tempo, tem sido desprestigiado e menosprezado: cuidar das plantas, dos animais, arrumar a casa, cuidar da limpeza, da manutenção dos aposentos, preparar os alimentos, ornamentar o cotidiano com a prosaica, e, ao mesmo tempo, mejestosa beleza da natureza. Porém mais do que as construções e as obras humanas é a sua conduta e a sua ação que é alvo maior desta filosofia de vida,  pois mais do que os resultados, o Feng-Shui visa o processo. É o exercício de embelezamento que importa, mais do que o belo cenário que se quer construir.  O valor está na ação e não no seu efeito, na conduta e não na obra.”     
         Como se depreende, a filosofia Feng-Shui visa antes o sujeito que o objeto,  mais a pessoa do que ambiente e a casa em si.  A pessoa precisa envolver-se no  processo, desenvolver a percepção do ambiente, captar os fluxos energéticos e os ritmos da natureza. Deve assumir uma conduta em harmonia com os outros, com o cosmos e com os processos rítmicos da natureza. Quando tiver criado essa ecologia interior, está capacitado para organizar, com sucesso, sua ecologia exterior.
      Mais que uma ciência e arte, o Feng Shui é fundamentalmente uma sabedoria, uma ética ecológico-cósmica de como cuidar da correta distribuição do Chi em nosso ambiente inteiro.
          Nas suas múltiplas facetas o Feng Shui representa uma síntese acabada do cuidado na forma como se organiza o jardim, a casa ou o apartamento, com harmoniosa integração dos elementos presentes. Podemos até dizer que os chineses como os gregos clássicos são os incansáveis buscadores do equilíbrio dinâmico em todas as coisas.
         O supremo ideal da tradição chinesa que encontrou no   budismo e no taoismo sua melhor expressão,  representada por Laotse (do V-VI século a.C.)  e por  Chuang Tzu (século IV-V a.C.), consiste em procurar a unidade mediante um processo de integração  das diferenças, especialmente das conhecidas polaridades de yin/yang, masculino/feminino, espaço/tempo, celestial/terrenal entre outras. O Tao representa essa integração, realidade inefável com a  qual a pessoa busca se unir.
         Tao significa caminho e método, mas também a Energia misteriosa e secreta que produz todos os caminhos e projeta todos os métodos. Ele é inexprimível em palavras,  diante dele vale o nobre silêncio. Subjaz na polaridade do yin e do yang  e através deles se manifesta. O ideal humano é chegar a uma união tão profunda  com o Tao que se produza o satori, a iluminação. Para os taoistas o bem supremo não se dá no além morte como para os cristãos, mas ainda no tempo e na história, mediante uma experiência de não-dualidade e de integração no Tao. Ao morrer a pessoa mergulha no Tao e se uni-fica  com ele.
        Para se alcançar esta união,  faz-se imprescindível a sintonia  com  a energia vital que perpassa o céu e a terra: o  Chi.  Chi é intraduzível, mas equivale ao ruah  dos judeus, ao pneuma dos gregos,  ao spiritus dos latinos e ao axé  dos yoruba/nagô, ao vácuo quântico dos cosmólogos: expressões  que designam a Energia suprema e cósmica que subjaz e sustenta todos os seres.
         É por força do Chi que todas as coisas se transformam (veja o livro I Ching, o livro das mutações) e se mantém permanentemente em processo. Flui no ser humano através dos meridianos da acupuntura. Circula na Terra  pelas veias telúricas subterrâneas, compostas pelos campos eletro-magnéticos distribuidos ao longo de meridianos da ecopuntura que entrecruzam a superfície terrestre. Quando o Chi se expande significa vida, quando se retrái, morte. Quando ganha peso, apresenta-se como matéria, quando se torna sutil, como espírito. A natureza é a combinação sábia dos vários estados do Chi, desde os mais pesados até os mais leves.
         Quando o Chi emerge num determinado lugar, surge uma paisagem aprazível com brisas suaves e águas cristalinas, montanhas sinuosas e vales verdejantes.  É um convite para o ser humano instalar ai  sua morada. Ou encontra um apartamento no qual se sente “em casa”.
         A visão chinesa  do mundo privilegia o espaço, à diferença do Ocidente que previlegia o tempo. O espaço para o taoismo é o lugar do encontro, do convívio, das interações de todos com todos, pois todos são portadores da energia Chi que empapa o espaço. A suprema expressão do espaço  se realiza na casa, no jardim ou no apartamento bem cuidado.
         Se o ser humano quiser ser feliz deve desenvolver a topofilia, o amor ao lugar onde mora e onde constrói sua casa e seu jardim ou mobilia seu apartamento. O Fen Shui é a arte e  técnica de bem construir a casa, o jardim e decorar o apartamento com sentido de harmonia e beleza.
         Face ao desmantelamento  do cuidado e à grave crise ecológica atual, a milenar sabedoria  do Feng-Shui nos ajuda a refazer a aliança de simpatia e de amor para com a natureza. Essa conduta  reconstrói a morada humana (que os gregos chamavam de ethos), assentada sobre o cuidado e a suas múltiplas ressonâncias como a ternura, a carícia e a cordialidade.
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* Teólogo. Filósofo. Escritor.
Leonardo Boff escreveu: Virtudes para um outro mundo possivel,3 vol. Vozes 2006.
Fonte:  http://leonardoboff.wordpress.com/2014/02/27
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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Frases

L. F. Veríssimo*

 

O Nietzsche tem uma frase terrível que Harold Bloom usou como epígrafe do seu livro Shakespeare – A invenção do humano: “Aquilo para o qual encontramos palavras é algo que já morreu em nossos corações”. Estranho pensamento (significando, se não me falha a interpretação, que só podemos falar ou escrever sobre o que não nos apaixona mais) para inaugurar um livro como o de Bloom, um tijolo de 745 páginas escritas com evidente paixão. Talvez o que Nietzsche quisesse dizer era que só encontramos palavras racionais para tratar de fatos quando os fatos já não desafiam a razão ou aceleram o coração. Ou seja: para escrever sobre um furacão, é melhor não estar no meio do furacão. Tudo é melhor compreendido à distância. Com o passar do tempo, todos nós viramos filósofos.

Aos poucos, estão sendo desvendadas as mentiras que a ditadura nos impingiu como verdades – e que, incrivelmente, continuam sendo verdades, ou no mínimo falsificações defensáveis, para a corporação militar – como as farsas montadas para explicar o desaparecimento de Rubens Paiva e a quase tragédia do Riocentro. A distância vai tornando mais fácil examinar e falar sobre aquele Brasil de mentira, mas com o silêncio persistente dos militares sobre a sua própria história e com torturados e torturadores ainda vivos, além de muitos feridos indiretamente pela repressão na época, não se pode esperar que esta volta ao passado seja desapaixonada. Num texto magnífico publicado há dias, o Marcelo Rubens Paiva escrevia sobre o seu pai e sobre o que a família passou durante todos esses anos desde o seu desaparecimento, e certamente não falava sobre algo que já morreu no seu coração.

Nietzsche também definiu piada como o epitáfio para a morte de um sentimento. Interpretações a gosto. Acho que o que ele quis dizer se encaixa na atual discussão sobre os limites do humor. A respeito de um sentimento que não tem mais sentido pode-se fazer piadas à vontade, sem ofender ninguém. Quanto mais obsoleto e piegas o sentimento, melhor a piada. O diabo é que um sentimento pode não valer mais nada para o humorista mas ainda ser um sentimento vigente para outros, e aí se dá a confusão. Neste caso, o epitáfio é prematuro, pois o sentimento ainda não morreu.

Outra frase de Nietzsche, esta mais conhecida e menos enigmática é: o que não nos mata nos torna mais fortes. O que serve de consolo para humoristas obrigados a enfrentar os que não entenderam a piada.
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* Jornalista. Escritor. Cronista
Fonte: ZH online, 27/01/2014
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A escolha do povo...

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Mais instruídos mas menos solidários!

Henrique Joaquim*
 
Um estudo recentemente apresentado revelou que os portugueses com mais habilitações e mais rendimentos são os que dão menos importância à solidariedade, à justiça e aos valores democráticos.
O que faz perguntar: afinal que escolarização temos? Qual a sua finalidade? Qual o seu sentido?

Maiores níveis de cultura e de ensino levam a diferentes leituras da realidade local e global; permitem leituras mais críticas e mais reflexivas de tudo o que se passa à nossa volta. Curiosamente, com base nos dados do estudo, estes novos horizontes parecem ser fundamentalmente utilizados para um proveito mais individual do que para um serviço à realidade e à comunidade envolvente.

Temos hoje melhores técnicos, pessoas com mais competências, mais competitivas e mais produtivas mas menos solidárias porque menos atentas à realidade dos seus semelhantes. Afinal para que é a educação?

Se é em comunidade que nos tornamos e somos pessoas este é um sinal de alerta tremendo pois sem sentido de um bem comum a construir e sem o sentido da corresponsabilidade não será possível criar e desenvolver comunidades vivas e felizes e por isso plenamente humanas.

Contudo não deixa de ser curioso, e de certa forma contraditório, que as pessoas continuem a ter como valores centrais “a honra, amar e ser amado e a família”.

Educarmo-nos e formarmo-nos para sermos mais eficazes e tecnicamente mais competentes e mais competitivos não é automaticamente compatível com uma educação para a solidariedade.

Educarmo-nos como seres solidários pressupõe uma formação e uma educação integral para o dom de si mesmo, exige a formação da bondade e da gratuidade interiores, exige fazer e viver a experiência da dádiva ao outro e à comunidade alicerçada numa consciência permanentemente atualizada dos dons recebidos.

Se é verdade que de acordo com um dos princípios fundamentais da economia “O que tem mais valor é o que não tem preço” (François Perroux), então porque insistimos em investir e desgastar a vida no que conta apenas quantitativamente? Urge que sejamos capazes de revalorizar o que temos mas acima de tudo urge reequacionar o que queremos ser naquilo que fazemos!

Ao que parece temos criado um contexto de vida e uma cultura onde nos educamos apenas e só para ter, partindo do princípio que o processo será sempre numa lógica ascendente. Educamo-nos e formamo-nos no pressuposto de que somos invulneráveis  e tornamo-nos de facto insensíveis à vulnerabilidade – bebemos para esquecer, engordamos para nos satisfazer, endividamo-nos para bem estar, medicamo-nos para não deprimir, suicidamo-nos no desespero de possuir tudo o anterior mas não ter sentido para viver. 

Centrados numa visão individual, e em fuga face aos pontos mais frágeis, limitamo-nos também na nossa capacidade de viver plenamente a alegria e a consciência de gratidão e de amor que nos torna vulneráveis, mas nos confere a esperança e o sentido porque é na vulnerabilidade e na relação que nos tornamos mais humanos!

De acordo com estatísticas e notícias de um passado recente ficamos a saber que vivemos hoje uma geração que tem mais obesos, mais pessoas depressivas e com distúrbios de ordem mental. Somos a geração que mais tem vivido mas a que morre mais só.

O mais que temos conseguido é para o menos que estamos a viver? Afinal que mais queremos Ser?
Eduquemo-nos portanto cientificamente mas solidariamente. Que o processo de aprendizagem e de crescimento seja também processo de aquisição mas simultaneamente de partilha, de relação e de humanização.
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*Professor universitário, presidente da Comunidade Vida e Paz
Fonte: © SNPC | 26.02.14

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

A nossa riqueza são os laços

Luigino Bruni*
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Florescem as comunidades quando são capazes de cooperação. Se não tivéssemos iniciado a cooperar (agir juntos) a vida em comum não teria sequer tido início; teríamos ficado evolutivamente bloqueados na fase pré-humana. Como com frequência acontece a grandes palavras do humano, também a cooperação é ao mesmo tempo una e múltipla, muitas vezes ambivalente; e as suas formas mais relevantes são as menos óbvias. Sempre que seres humanos atuam em conjunto e se coordenam para chegar a um resultado comum mutuamente vantajoso estamos perante a cooperação. 

Um exército, uma liturgia religiosa, uma aula na escola, uma empresa, a ação de governo, um sequestro de pessoa, são tudo formas de cooperação; mas referem-se a fenómenos humanos muito diversos entre si. Daqui deriva uma primeira consequência: nem todas as cooperações são coisa boa; existem cooperações que, aumentando embora as vantagens dos sujeitos nela envolvidos, fazem piorar o bem comum porque prejudicam alguém exterior àquela cooperação. Para distinguir a boa da má cooperação é necessário antes de mais observar os efeitos que tal cooperação intencionalmente produz sobre pessoas externas.

Ao longo da história, teorias políticas e económicas separaram-se em duas grandes famílias. As que partem da hipótese de que o ser humano não é naturalmente capaz de cooperar e as que, pelo contrário, reivindicam a natureza cooperativa da pessoa. O principal representante da segunda tradição foi Aristóteles: o homem é animal político, capaz de diálogo com os outros, capaz de amizade (philia) e de cooperação para o bem da polis. O expoente mais radical da primeira tradição, do animal insociável, foi Thomas Hobbes: “E’ verdade que alguns viventes, como as abelhas e as formigas, vivem juntas socialmente. Por isso há quem goste de saber porquê os homens não fazem o mesmo" (O Leviatã, 1651). No interior desta tradição antissocial move-se muita da filosofia política e social moderna; os antigos e os medievais (incluindo S. Tomás) eram geralmente do parecer de Aristóteles. Poderíamos dizer também que a principal questão da teoria política e económica modernas foi o tentar explicar como podem surgir êxitos cooperativos a partir de seres humanos que não são capazes de cooperação intencional, porque dominados por interesses egoistas.

Muitas teorias do "contrato social" (nem todas) foram a resposta da filosofia política da modernidade a essa questão: indivíduos egoístas, mas racionais, compreendem que é do seu interesse criar uma sociedade civil com um contrato social artificial. O homem natural é incivil e por isso a sociedade civil é artificial. A resposta da ciência económica moderna àquela questão são as várias teorias da "mão invisível", para as quais o bem comum ("a riqueza das nações") não nasce da ação cooperativa intencional e natural de animais sociais, mas sim do jogo de interesses privados de indivíduos egoístas separados entre si. Na base destas duas tradições encontramos a mesma hipótese antropológica: o ser humano é uma "tábua torta"; sem que seja preciso endireitá-la, produz boas "cidades" se for capaz de criar instituições artificiais (contrato social, mercado) que transformam as paixões autointeressadas em bem comum.  

É então que se desvela um mistério do mercado: também a sociedade de mercado tem uma sua forma de cooperação; para tal cooperação, porém, não se pede qualquer ação conjunta dos "cooperantes". Quando entramos numa loja para comprar pão, o encontro entre comprador e vendedor não é descrito nem vivido como ato de cooperação intencional: cada um procura o próprio interesse e realiza a contraprestação (dinheiro por pão; pão por dinheiro) apenas como meio para obter o próprio bem. E no entanto aquela troca melhora a condição de ambos, graças a uma forma de cooperação que não exige qualquer ação conjunta. O bem comum torna-se assim uma soma de interesses privados de indivíduos reciprocamente imunes que cooperam sem se encontrarem, tocarem, olharem.

É no interior da empresa que encontramos a cooperação intencional ou forte, já que a empresa é uma rede de ações conjuntas e cooperativas com vista a objetivos em máxima parte comuns. Deste modo, quando adquiro um bilhete Roma-Málaga, entre mim e a companhia aérea não existe nenhuma forma de cooperação intencional; apenas interesses separados paralelos (viagem e lucro); entre os membros da tripulação do vôo, porém, deve existir uma cooperação forte, explícita e intencional. Daqui deriva que, enquanto (quase) nenhum economista pensaria numa teoria de mercado baseada na ética de virtudes, no que se refere às teorias da empresa e das organizações são já muitas as "éticas dos negócios" fundadas na ética das virtudes de Aristóteles e Tomás.

A divisão do trabalho nos mercados e grandes sociedades é uma grande cooperação involuntária e implícita; a divisão do trabalho dentro da empresa, pelo contrário, é cooperação no sentido forte, ação voluntária conjunta. O capitalismo de matriz anglo-saxónica e protestante fez assim nascer um modelo dicotómico, como que uma reedição da "Doutrina dos dois reinos", luterana (e agostiniana). Nos mercados existe a cooperação implícita, "fraca" e não-intencional; na empresa e nas organizações em geral, pelo contrário, temos a cooperação explícita, forte e intencional. Duas cooperações, duas "cidades", profunda e naturalmente diversas entre si. 

No entanto, esta cooperação não é a única possível nos mercados. A versão europeia – de modo especial a latina – da cooperação nos mercados era diversa, porque a sua matriz cultural e religiosa não era individualista mas sim comunitária. Entre nós a distinção entre cooperação ad intra (na empresa) e cooperação ad extra (nos mercados) nunca se afirmou, pelo menos até tempos recentes. É a tradição da designada Economia civil, que leu a economia toda e a sociedade como um facto de cooperação e de reciprocidade. A empresa familiar (em Itália ainda 90% do setor privado), as cooperativas – segundo Adriano Olivetti – explicam-se tomando a sério a natureza cooperativa e comunitária da economia. Por isso o movimento cooperativo europeu foi a expressão mais típica da economia de mercado europeia. Tal como os distritos industriais (Prato para a fiação, Fermo para o calçado) o são (ou foram): inteiras comunidades tornaram-se economia sem deixar de ser comunidades. 

Assim, o capitalismo EUA tem como modelo o mercado anónimo e procura “mercantizar” (tornar mercado) até a empresa que cada vez mais é vista como um novelo de contratos, uma commodity (mercadoria), ou como um mercado com fornecedores e clientes "internos". Pelo contrário, o modelo europeu procurou "comunitarizar" (tornar comunidade) o mercado, tomando como modelo de boa economia a mutualista e comunitária,  exportando-o da empresa para a totalidade da vida civil (cooperação de crédito e de consumo); assumindo custos e benefícios desta operação: uma economia mais densa de humanidade e de alegria de viver mas mais densa também daquelas feridas que encontros humanos abertos em todas as direções não conseguem evitar.

O modelo EUA está hoje a colonizar até os últimos territórios de economia europeia, também porque a nossa tradição comunitária e cooperativa, no plano cultural e prático, nem sempre esteve à altura (do desafio); não se desenvolveu em todas as regiões (...).

A "grande crise" que estamos a viver, porém, diz-nos que a economia e a sociedade fundadas sobre a cooperação-sem-tocar-nos-outros pode produzir monstros e que o business (que é) apenas business no final torna-se antibusiness. O ethos do Ocidente é um misto de cooperações fortes e fracas; indivíduos que fogem dos laços das comunidades à procura de liberdade e pessoas que, para bem viverem, livremente se ligam. Numa fase da história em que o pêndulo do mercado global tende para o lado dos indivíduos-sem-laços, a Europa deve recordar, protegendo-a e vivendo-a, a natureza intrinsecamente civil e social da economia.
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* In Avvenire
Trad.: José Alberto Bacelar Ferreira, P. António Bacelar
Fonte: © SNPC | 25.02.14

Fazer da vida um lugar sagrado e tornar-se louco aos olhos do mundo

P. José Tolentino Mendonça*
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 Sam Francis
As leituras do VII domingo do Tempo Comum contam muito do que é a pretensão cristã e porque é que o cristianismo se afirmou como uma alternativa, como novo modelo de vida.

Para pensarmos esta novidade, temos de perceber o que é que o cristianismo faz com duas categorias absolutamente sagradas, cada uma à sua maneira, quer do judaísmo, quer do mundo helenístico.

No universo greco-romano, o mais importante era a sabedoria e a sua procura incansável. O que o homem ou a mulher podiam aspirar de mais sagrado no mundo grego era encontrar a sophia, um caminho de sabedoria.

Quando visitamos a antiguidade clássica, o mais belo monumento é a emergência do pensamento humano, a construção da filosofia; pensemos, por exemplo, na escola de Atenas, Aristóteles, Platão, Sócrates, os sofistas. Era uma grande procura, através do conhecimento, a de encontrar sentido e significado para a vida.

Há uma enorme grandeza moral nestes ascetas, que dedicam a sua existência à procura do conhecimento e da racionalidade, tentando perceber qual será o caminho para realizar o coração do ser humano, para justificar o sentido da nossa presença no mundo, o porquê e para quê das nossas vidas.

Se há uma palavra sagrada no mundo helenístico do tempo em que o cristianismo surge, é a palavra "sabedoria". É uma palavra inalcançável, inspiradora, que todos procuravam, que todos queriam.

No mundo judaico, uma palavra igualmente fundamental era "templo", o lugar sagrado. O templo era a certeza de que o Deus transcendente era também o Deus histórico, o Deus que acompanha o seu povo, o Deus cuja glória, a Shekinah, habita num lugar concreto, e nós vamos até ele. 

Do templo dimana tudo: os sacrifícios, o dia do perdão, o dia das expiações. E os judeus entregavam o dízimo para que a luz do templo não se extinguisse. Morrer sem ter peregrinado a Jerusalém era a maior das desgraças.

O templo era o lugar da evidência de Deus, a fonte de sentido, aquilo que estruturava a nação judaica, mas também a condição histórica, a cidadania judaica.

O cristianismo emerge assim num mundo em que o sagrado estava no conhecimento e no templo, a lei. 

Em relação ao sagrado judaico, vamos ouvir S. Paulo, o primeiro grande intérprete cristão de Jesus, dizer, na carta aos Coríntios, que o templo é o corpo de cada um de nós. O templo somos nós. O lugar sagrado é a nossa vida. Porque o Espírito de Deus habita em cada um de nós. 

Então já não estamos dependentes de um lugar, de uma raça, de uma etnia, de uma nação, de uma lei, de um código externo; é em nós que descobrimos Deus. Cada pessoa é o lugar onde Deus está. 

Por isso temos de olhar para a nossa vida de outra maneira. Somos sujeitos diferentes porque o que nos caracteriza não é uma ligação a uma estrutura que está fora de nós, mas a descoberta de que Deus nos habita, de que Deus está em nós. E essa descoberta transforma a nossa vida. 

Esta vida que por vezes nos custa abraçar, nos custa aceitar, nos custa entender; esta vida que é exaltante e ao mesmo tempo é lugar de fragilidade, é lugar de dor; esta vida tão misteriosa que parece que nos escapa; esta vida é o santuário de Deus. 

Esta vida que construímos dia a dia, esta vida que não existe em abstrato mas em concreto, nos nossos gestos, na nossa decisão, esta vida que não é apenas biológica mas é a vida ética, a vida sensual, a vida de amor, a vida de procura que em cada um de nós quotidianamente se efetua... Isto que nós somos, isto de inominável, de indecifrável, isto é o lugar de Deus. 

Esta é uma transformação imensa que o cristianismo operou. 

Por isso tenho de olhar para a minha vida como um lugar sagrado; tenho de olhar para a minha vida com outros olhos, com outra esperança, porventura com outra veneração. Tenho de cair de joelhos perante o espetáculo desabalado e divino que é a vida, por mais frágil que seja. Tenho de olhar para a vida com um coração diferente, um coração novo. 

A nossa vida não é apenas um instrumento. Não estamos escravizados a nada; vivemos plenamente a nossa liberdade porque Deus está em nós. Por isso a nossa grande tarefa é descobrir o que somos, é tornarmo-nos naquilo que somos.

Este debate animou o cristianismo desde os primeiros séculos e levou um grande teólogo, Tertuliano, a dizer que o homem é naturalmente cristão. Ele não disse isso no sentido de que o cristianismo é um lugar automático, mas que é na nossa natureza, no fundo daquilo que somos, que temos de descobrir o que é isto de sermos filhos de Deus e de Deus habitar em nós.

Nenhuma vida é para deitar fora, nenhuma vida é para excluir, nenhuma vida é descartável, nenhuma vida é para ser pisada. A nossa vida tem esta dignidade de ser o templo, o lugar sagrado.

Em relação ao modelo da sabedoria, o cristianismo faz um movimento que os exegetas denominam de "autoestigmatização". Entendemos o alcance desta palavra nas palavras de S. Paulo: é preciso tornar-se louco. 

Num mundo em que é a sabedoria que confere estatuto, é preciso tornar-se louco. Neste sentido, o cristão diz «eu vou por outro caminho, vou fazer de maneira diferente, considero-me um outsider; no mundo de sábios, quero ser louco».

Vemos esta loucura explicada no Evangelho de Jesus [cf. Artigos relacionados]: se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda; isto é, não acreditar na força da violência, não acreditar na força do mais forte, não acreditar no "olho por olho, dente por dente".

Se alguém te quiser levar a tribunal, deixa-lhe tudo; se te obrigarem a acompanhar durante uma milha, acompanha durante duas; se te pedem emprestado, dá.

Estas palavras têm, ao mesmo tempo, um sentido literal e um sentido metafórico. Um sentido literal porque a palavra de Cristo é para levar a sério. Eu estou aqui a explicar, mas Deus me livre de alterar uma vírgula. A palavra é esta, e nós temos de nos haver com ela. A palavra de Cristo tem uma literalidade com a qual a nossa vida se há de confrontar sempre, como se fosse a primeira vez; e essa literalidade é que é o sentido definitivo.

Mas estas palavras de Jesus são também uma metáfora para dizer: «sê louco»; «sim, mas eu tinha direito a...» - «faz diferente, faz de outra forma». Isto é, foge às lógicas fechadas: «Ele disse-me aquilo, mas eu respondi-lhe na mesma moeda»; «ele fez assim, então vou agir em consonância».

Sermos capazes de romper os ciclos viciosos, os becos sem saída, o afunilamento das nossas histórias, e tentarmos uma coisa diferente. Em vez de odiar os inimigos, amá-los - isto é, ser capaz do perdão, ser capaz da compaixão, ser capaz de aceitar as humilhações. Santa Teresinha dizia que «muitas humilhações fazem a humildade»; e quando este princípio é bem entendido, é importante para que nos relativizemos, porque isto também nos purifica do ídolo que somos.

Amar aqueles que nos amam - claro; mas também amar aqueles que não nos amam. Ser capaz de outra sabedoria, de uma sabedoria que refunde a ordem das coisas, refunde a nossa história, refunde o próprio mundo.

Se o cristianismo é apenas cultural, é muito pouco. Se somos apenas pessoas sensatas, ponderadas, respeitadas, cumpridoras da lei, que pagamos os impostos e somos bons cidadãos... isto é o mínimo. Não é preciso ser cristão para fazermos essas coisas. 

Que coisa é necessária para ser cristão? É preciso fazer um gesto que na sua extravagância, na sua rutura, assinale a diferença de Cristo, o salto qualitativo, o salto de amor que Cristo representa. Há um momento na nossa vida em que só um gesto destes nos pode salvar; há um momento na nossa vida em que só um gesto destes faz a diferença.

O cristianismo nasceu sem nenhuma força. Não tinha a seu lado a força de um pensamento, a força de uma cultura, a força do dinheiro, a força da cidadania... não tinha nada. Tinha apenas a certeza de que somos o lugar sagrado e este chamamento de Jesus a que sejamos loucos, a que sejamos capazes de caminhar contracorrente.

Ou vivemos contracorrente, expressando na nossa vida o que isso significa, numa lógica de amor e dádiva, ou então vivemos um conformismo social e cultural que dilui o cristianismo e o torna um folclore, e não um lugar de redenção e transformação das nossas vidas.
O cristianismo não se faz de massa mas das histórias individuais. Quantos lugares sagrados, que são a vida de cada um de nós, estão aqui? 

Vamos pedir que o Espírito nos habite, nos fortaleça, nos dê a certeza do amor de Deus, confirme em nós o amor de Deus, e nos dê a capacidade de arriscar uma outra sabedoria, que muitas vezes é loucura aos olhos do mundo, mas outra coisa não é do que abraçar até ao fundo e até ao fim a cruz do Senhor.
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*Teólogo português. Escritor. Poeta.
Capela do Rato, 23.2.2014
Fonte: Redação: SNPC/rjm
© SNPC | 25.02.14

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

As palavras não amam ninguém

Edson Athayde*

 

Não amam, elas, as palavras? Se calhar, se calhar. Temos que concordar, elas, as palavras, são traiçoeiras, seduzem, convencem, iludem, burlam, logram, ludibriam, dissimulam (ah, que maravilha que é um dicionário de sinónimos...) Mas (o que fazer?) eu gosto delas. Sinto que as palavras foram criadas a partir das minhas costelas.

Filhas das letras, as palavras são as mães das frases. Gosto ainda mais destas. Principalmente quando têm curvas, quando derrapamos nos seus seios significantes para nos ampararmos nas suas coxas de significâncias. Por exemplo:

“Tem abraço que parece beijo”. Leio essa frase no ecrã do telemóvel, numa viagem de Metro, e já tenho vontade de abraçar a senhora patusca e gorda que tenho sentada ao meu lado.

“Porque a vida só se dá para quem se deu, para quem amou, para quem sorriu, para quem chorou, para quem sofreu”. Esta é do Vinicius, frase com bom pedigree, frase destilada por décadas no mesmo carvalho que faz um bom whisky (já agora, mais uma do poeta: “O whisky é o melhor amigo do homem; o whisky é o cão engarrafado”).

“Vendo cola para corações partidos”. E eu compro, eu compro.

“Eu não sei de nada, mas desconfio de muita coisa”. Guimarães Rosa sabia muito.

“Um amigo me chamou para cuidar da dor dele. Guardei a minha no bolso e fui.” Escreveu o meu amigo imaginário Caio Fernando Abreu.

Aproveito a citação ao Caio (autor brasileiro muito vivo, apesar de bastante morto) para explicitar o real tema desta crónica: o uso abusivo de nomes geniais para assinar frases banais (uma moda no Facebook, no Twitter e no Pinterest).

Pessoal, tenho a certeza que Eça de Queirós nunca disse: “Deus ajuda a quem cedo madruga”. Não estou a ver Machado de Assis escrever: “É assim que a porca torce o rabo”. Einstein criou a teoria da relatividade e não a frase: “A cada boca uma sopa”. Como acho pouco provável que Gandhi tenha animado as hostes a exclamar: “A verdade é como o azeite, vem sempre ao de cima”.

Fernando Pessoa, Jim Morrison, Clarice Lispector, Woody Allen, Paulo Leminski, Beethoven, Neil Armstrong (na maioria das vezes confundido com o ciclista), Freud, Nietzsche, Tolstoi (ou qualquer defunto russo) são apenas algumas das mais recorrentes vítimas dos citadores sem lei.

Cuidado, citar sem saber o que está citando não é uma demonstração de erudição e sim o seu contrário. Ou como diria o meu Tio Olavo: “Para trás mija a burra”. (Não, essa frase aqui não faz sentido; sim, ele nunca disse isso).

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Fonte:  http://www.sabado.pt/Homepage.aspx

Solidão mata mais que a obesidade


Estas e outras conclusões num estudo a duas mil pessoas com mais de 50 anos.

Durante seis anos, cientistas da Universidade St. George de Londres, Reino Unido, seguiram a saúde de duas mil pessoas com mais de 50 anos. No fim descobriram que os idosos que viviam sozinhos corriam o dobro do risco de morrer mais cedo em comparação aos que sofriam de obesidade.

Publicado na revista ‘The Journal of Psychology: Interdisciplinary and Applied’, o estudo concluiu que um quinto dos idosos sentia-se sempre sozinho. Metade referiu que a solidão era pior aos fim-de-semana. O estudo surge numa altura em que cada vez mais idosos vivem sozinhos, afastados das famílias.

A solidão tem sido associada a outros problemas de saúde como a hipertensão arterial, sistema imunitário deficitário, risco de depressão, enfartes e ataques cardíacos. E segundo o psicólogo norte-americano John Cacioppo, causa tanta dor quanto a dor física.

“As pessoas têm de se preparar para evitar a depressão”, disse o psicólogo, autor do livro ‘Loneliness’ (solidão, em português). Num encontro da Associação Americana para o Avanço da Ciência, realizada em Chicago, o psicólogo aconselhou que os recém reformados não se devem afastar da família. “Nós achamos que a reforma é deixarmos os filhos e amigos e mudarmo-nos para a Florida, onde faz calor. Isso não é uma boa ideia.”