LUCIANA VILLAS-BOAS*
Para quem escreve o autor local?
RESUMO Propelida por programas de apoio à tradução, obsessão do
autor nacional por reconhecimento no exterior mascara desprestígio da
ficção brasileira no mercado local. Pouco e mal editados no país,
escritores que não venham de carreiras de sucesso em jornal ou TV
dependem em larga medida de compras do governo.
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O autor brasileiro é vidrado numa tradução. Tradução de sua própria
obra, bem entendido. Não há prêmio, elogio de leitor nem sequer boas
vendas no Brasil que se comparem à validação de seu texto por uma
editora estrangeira. Se possível, a tradução para o inglês, mas servem
versões exóticas, como para o sérvio ou o romeno, edições sem
significado monetário e que atingem uns 300 leitores. Dão a impressão
que se está chegando longe.
Por isso, passado quase meio ano da homenagem ao Brasil na Feira do
Livro de Frankfurt, percebe-se uma amargura entre muitos escritores:
"Não disseram que a homenagem iria escancarar as portas do mercado
internacional para o autor brasileiro?", perguntam. Que eu saiba,
ninguém disse isso. Se disse, era um ingênuo falando do que não conhece.
Este artigo não quer criticar ou ridicularizar a participação do Brasil
em Frankfurt. Nem elevá-la a momento de gala da nossa literatura. A
homenagem se ressente por não ser pensada como uma instância da política
do Ministério da Cultura visando à exportação da criação literária
brasileira. Avaliar o projeto do governo é relevante porque ajuda a
elucidar a situação da literatura no Brasil e põe em perspectiva a
quimera da tradução, que tanto persegue e é perseguida pelos escritores.
Não existe tabulação do número de autores brasileiros hoje traduzidos no
exterior em comparação com dez anos atrás. Mas o multiplicador é
altíssimo. Naquela época, até nossos clássicos estavam em baixa, como
Jorge Amado, tão popular nos EUA e Europa na década de 70 do século
passado. Hoje, além de estarem aparecendo novas traduções de Amado,
Clarice e Machado, muitos escritores não canônicos podem ser lidos em
inglês, francês, alemão, espanhol, italiano, em alguns desses idiomas,
ou em todos eles e outros.
Essa relativa capilarização da literatura brasileira no exterior é
resultado quase exclusivo do programa de tradução da Biblioteca Nacional
reinventado em 2011. O programa já existia, mas não honrava seus
compromissos, as bolsas prometidas não eram pagas, e sua credibilidade
era zero. Foi difícil recuperar a confiança do editor estrangeiro. Fábio
Lima, da Biblioteca Nacional, informa que, entre 2011 e 2013, foram
concedidas 390 bolsas de tradução para 181 autores.
POMPA Além de cumprir o combinado, o programa deslanchou graças
ao pacote que foi montado: anúncio com pompas em Paraty e gancho com
homenagens em várias feiras, não só a de Frankfurt --mas esta sempre
mencionada com destaque. Foi naquele momento e com essa função que a
homenagem na Alemanha teve importância. A crise econômica prestou sua
contribuição: até editoras internacionais da primeira divisão viram com
ótimos olhos a possibilidade de publicar autores de qualidade pagando
adiantamentos baixos e recebendo uma injeção de grana antes de incorrer
nos custos do processo editorial.
Diante das planilhas da BN, fica difícil compreender por que nossa
literatura não ganhou mais impulso. Mesmo considerando as bolsas que
foram para a não ficção, é muito livro brasileiro no panorama
internacional. Mas, sem cobrar do pessoal da Biblioteca o que eles não
podem saber, os profissionais do mercado entendem que esse número deve
ser ponderado.
O primeiro problema que se pode supor é a concentração de bolsas
beneficiando poucos ficcionistas. O segundo problema é que a maioria
delas foi para editoras mínimas em mercados insignificantes --países
africanos ou do Leste europeu. Não vamos defender que não se contemplem
essas editoras, porque a lógica do Estado é outra e, para o Brasil, pode
ser estratégico ter sua literatura na África ou entre vizinhos
sul-americanos. Mas houve casos de gente com o olho só no dinheiro da
Biblioteca, sem intenção de lançar dignamente os livros contratados. O
problema mais grave é o terceiro, que escapa ao controle do ministério.
Se os gastos do governo em Frankfurt foram excessivos, ou se a delegação
não era representativa, não importa agora. A discussão aqui é mais
ampla. Seria desejável que o programa continuasse, talvez com mais
atenção ao detalhe, mas que não fosse ameaçado por novas administrações.
A literatura nacional ainda não anda com as próprias pernas no mercado
internacional; e, depois dos escritores, o principal interessado numa
imagem literária da nossa cultura é o Estado brasileiro. Não se leva a
sério um país que se reduz a samba e futebol; espera-se que sejamos
alfabetizados, e a literatura seria nosso melhor testemunho.
Comparado com outros programas de projeção da imagem do Brasil, o da BN
parece apresentar boa relação custo x benefício. O governo só não pode
gastar mais do que gasta, e o programa não deve ser ampliado enquanto o
setor editorial não somar esforços. Há dois anos, o governo faz a sua
parte, e está de bom tamanho.
FARRA Em sua coluna da Folha, às vésperas da inauguração
da Feira de Frankfurt, Elio Gaspari afirmou que a homenagem era uma
"farra" com o dinheiro da Viúva para beneficiar os editores brasileiros.
"Se os empresários do mercado editorial precisassem de homenagem na
feira poderiam recebê-la com o dinheiro deles."
A verdade é que os editores jamais investiriam um centavo na
participação do Brasil em Frankfurt não porque contassem com tirar
vantagem do governo, mas porque a maioria estava se lixando para a
homenagem, não tinha o menor interesse nela, assim como, com raríssimas e
notáveis exceções, se lixa para a literatura brasileira. Se houve
farra, não foi promovida por ou para eles, estão inteiramente inocentes.
Mas o desinteresse dos editores é mais de se lamentar do que de
elogiar.
Não há dados da porcentagem de livros brasileiros entre o que se publica
de ficção no país. No perspicaz artigo "Tendências do mercado de livros
no Brasil: um panorama e os best-sellers de ficção nacional 2000-2009"
(revista "MATRIZes", 2012), Sandra Reimão não divulga esse número, mas
consegue denunciar a inexpressividade do ficcionista brasileiro nas
listas de mais vendidos.
Na primeira década do século, os autores que conseguiram furar o
bloqueio estrangeiro foram: Luis Fernando Verissimo, Jô Soares, Chico
Buarque, Paulo Coelho, João Ubaldo Ribeiro, Letícia Wierzchowski, Luiz
Eduardo Soares e Orlando Paes Filho.
À exceção de Paes Filho, autor do gênero fantasia, todos são nomes que
vinham de carreira de sucesso em jornal, TV ou música (Verissimo, Jô e
Chico), ou que se consagraram como escritores antes da última década do
século 20, chegando ao novo milênio já com ampla presença na mídia (João
Ubaldo e Paulo Coelho), ou que tiveram o apoio de TV ou cinema para
seus seus romances (Wierzchowski com "A Casa das Sete Mulheres" e Luiz
Eduardo Soares com "Elite da Tropa"/"Tropa de Elite").
Há exemplos recentes que ilustram a tese da professora: textos ótimos
que, assinados por um autor desconhecido, estariam longe das listas. E
esses autores e mais todos os outros brasileiros publicados não
representam 5% das obras de ficção lançadas anualmente --essa é minha
chocante projeção do alto de 20 anos de trabalho no meio editorial,
acompanhando carteiras de lançamento das editoras, como jornalista,
editora ou agente.
MULETAS Esse é o grande obstáculo para a internacionalização da
ficção brasileira: nossa literatura não anda com as próprias pernas em
seu país. Precisa das muletas de outro veículo ou forma de comunicação.
Não temos volume ou variedade. Entre os autores traduzidos nos últimos
dois/três anos, alguns tiveram desempenho razoável no exterior, foram
reeditados, mas nenhum causou impacto semelhante ao do sueco Stieg
Larsson, que expôs para o mundo a literatura de toda a Escandinávia.
Principalmente, nenhum autor brasileiro chegou a terras estrangeiras com
um histórico inequívoco de consagração nacional. A não ser Paulo
Coelho, cuja literatura não foi percebida lá fora como brasileira, ao
mesmo tempo que o Brasil tolamente não a reivindicou, incluindo aí a
crítica e os colegas escritores. Sua popularidade intercontinental não
teve como abrir portas para outras obras brasileiras --um caso
excepcional.
O divórcio entre literatura nacional e sociedade é uma vergonha para o
Brasil. Não é preciso recorrer a parâmetros de mundo desenvolvido;
fiquemos na América Latina. Argentina, Chile, México e Colômbia consomem
a ficção local muito mais do que nós. Comparemos a literatura
brasileira à do Chile, que tem menos habitantes do que a Grande São
Paulo.
Em viagens pela Europa, ou em Nova York, eu costumava fazer de
brincadeira uma pesquisa sobre a presença brasileira e de outros países
nas livrarias que visitava. Aconteceu na Fnac, na Feltrinelli, Bertrand,
na livraria do El Corte Inglés, Barnes & Nobles, La Hune. Pegava um
atendente de jeito e perguntava se saberia me dar, sem recorrer ao
computador, um nome de escritor brasileiro.
Quando ele conhecia a nacionalidade de Paulo Coelho, era o que vinha. Se
não conhecesse, não vinha nada. Tenho curiosidade de fazer a
brincadeira este ano. Algo pode ter mudado na Alemanha, mas o quadro não
deve ter se alterado significativamente.
A mesma brincadeira feita com o Chile era uma humilhação. Em 100% das
vezes o nome que primeiro saiu foi de Isabel Allende, mas, se esse fosse
"hors-concours", os atendentes ofereciam como segunda opção Roberto
Bolaño, Marcela Serrano, Jorge Sepúlveda, Hernán Rivera Lettelier e
Alberto Fuguet: autores reconhecidos como chilenos, que alcançaram
sucesso nos Estados Unidos e Europa por iniciarem carreiras
internacionais com o lastro da popularidade primeiro no Chile e depois
na América Hispânica, para então ganhar o mundo.
DIVÓRCIO Quando ocorreu o divórcio entre literatura e sociedade
no Brasil? Nos anos 1960, Erico Verissimo, Rachel de Queiroz, Dinah
Silveira de Queiroz, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Nelson Rodrigues, José
Mauro de Vasconcelos e outros escritores, caídos ou não no esquecimento
(quem se lembra de Amando Fontes?), constavam do cardápio de assuntos
da classe média como hoje só figuram os atores da TV Globo. Os
personagens de romances, e não os das telenovelas, inspiravam os pais na
hora de dar nome aos filhos. Quantos Rodrigos com mais de 45 anos não
se chamam assim por causa do capitão de Erico?
Era uma sociedade polarizada politicamente e muito mais literária. De
minha infância no seio de uma família politizada mas não de intelectuais
--o pai jornalista, leitor de marxismo e reportagens, a mãe dona de
casa com boa leitura dos clássicos e de tudo que lhe caísse nas mãos--,
lembro de discussões furiosas com as tias lacerdistas sobre a posição de
Rachel de Queiroz frente ao golpe de 64, ou sobre a conveniência de
Guimarães Rosa assumir a cadeira da Academia Brasileira de Letras quando
a ditadura fechava o cerco sobre a instituição.
Os pais não problematizavam como incutir nos filhos o hábito da leitura.
Ler era "default". Sem priorização consciente do nacional (eu adorava
Mark Twain e Laura Ingalls Wilder), antes dos dez anos, minha irmã e eu
lêramos, com gosto, todo Monteiro Lobato, Viriato Corrêa, muito José
Lins do Rego, José Mauro de Vasconcelos, José de Alencar, o jovem
Machado, "A Moreninha", "A Bagaceira", "Os Corumbas", "Capitães da
Areia", "O Cortiço". Era literalmente o que caísse nas mãos, e o que
caía era muito mais brasileiro do que tradução. Os pais problematizavam a
idade adequada para ler "Dona Flor e seus Dois Maridos", licença que
penei para ter.
Chegaram os anos de chumbo, e a competição estrangeira se fez sentir,
mas nada que impedisse o brasileiro de devorar "Bar Don Juan", de
Antonio Callado, e "Sargento Getúlio", de João Ubaldo, de 1971. O
primeiro romance de Rubem Fonseca, "O Caso Morel", chocou em 1973, mesmo
ano em que "Água Viva", de Clarice, intrigou e deslumbrou; "Galvez, o
Imperador do Acre", de Márcio Souza, e "Essa Terra", de Antônio Torres,
encantaram os leitores em 1976; e "Zero", de Ignácio de Loyola Brandão,
publicado primeiro na Itália, provocou ondas de indignação quando foi
recolhido pela censura, para retornar em 1979.
Diga-se que na década de 70 não era só Jorge Amado que conquistava
edições no exterior. O trabalho de José J. Veiga angariou tal respeito e
admiração no Brasil que chegou ao inglês pela prestigiosa Knopf, com a
publicação de "A Hora dos Ruminantes" e "A Estranha Máquina Extraviada".
"Galvez" e "Zero" foram muito traduzidos, assim como, na primeira
metade dos anos 80, "Viva o Povo Brasileiro", de João Ubaldo,
consagração crítica e estouro de vendas do autor.
DÉCADA PERDIDA Os 80, a notória "década perdida", viram o
reconhecimento da autoficção de Marcelo Rubens Paiva e Fernando Gabeira,
e dos romances de Caio Fernando Abreu e Ana Miranda, mas a relação
entre sociedade e literatura já estava esgarçada. Em 1987, saiu "O
Diário de um Mago", mas vimos a excepcionalidade de Coelho. Para a
ficção brasileira, a década perdida foram os anos 90.
O que permitiu que o imaginário brasileiro fosse tão absolutamente
sequestrado pela televisão? A ditadura começou solapando o sistema de
ensino e a rede escolar; desvalorizando a crítica, o saber humanístico, o
hábito da leitura, e agigantando a TV Globo. Mas o fator determinante
foi a inflação, pondo desafios incomensuráveis à atividade do editor e
fazendo com que ele buscasse a facilidade da literatura traduzida.
Ao estrangeiro, em geral, só se presta contas uma vez por ano, algo
inviável no tratamento com o escritor brasileiro, diante do quadro
inflacionário. Os investimentos em marketing eram mais difíceis de
recuperar quando se tratava de revelar um talento nacional; o autor
estrangeiro chegava consagrado, bastando mandar para as redações
fotocópias da crítica no país de origem para garantir o destaque da
imprensa.
A oferta anglo-saxônica era ampla e variada bastante para abastecer as
editoras em atividade --baixa concorrência que permitia, até a virada do
milênio, a aquisição dos direitos por somas razoáveis. E a literatura
americana desenvolvera largamente um tipo de ficção deglutível por um
leitor menos contumaz e sofisticado do que aquele da geração anterior
--e viciado na linguagem televisiva. Uma ficção que não havia no Brasil.
Motivos suficientes para o editor se acomodar na publicação de
estrangeiros. Os brasileiros sumiram das carteiras de lançamento. Quando
havia lugar para o nacional, era uma tiragem de 2.000 exemplares, sem
visibilidade, que não vendia nem arranhava a lista de mais vendidos. A
perfeita profecia autorrealizável: leitor gosta mesmo é da literatura
americana.
EXPANSÃO Veio o real, e a moeda estabilizada permitiu a expansão
do negócio editorial. Dezenas de novas editoras se somaram à indústria
do livro; a concorrência por direitos de publicação e espaço na livraria
profissionalizou as práticas do mercado.
O baixo nível educacional da mão de obra já consternava até o meio
empresarial. Com a democracia consolidada, setores do empresariado e
opinião pública (por exemplo, novelas da Globo) e campanhas do governo
começaram a valorizar o hábito de leitura.
A distribuição da renda permitiu a entrada de novos leitores no mercado,
nem sempre apreciadores da melhor literatura, mas leitores. Os números
de vendas de Dan Brown, J.K. Rowling, Khaled Hosseini, E.L. James e
Suzanne Collins --alguns milhões no mercado nacional-- documentam isso
de maneira lapidar.
Só não foi convidado para a festa o escritor brasileiro. Nem de longe se
beneficiou da nova conjuntura do mercado mais simpática ao livro.
(Exceção feita àqueles voltados para o leitor jovem, que souberam usar
os recursos da internet para construir seu público e se impor às casas
editoriais.)
O editor se esquecera de por que não publicava literatura brasileira e
não via por que mudar de atitude. Nem a explosão de feiras literárias
projetando autores locais (secundariamente aos estrangeiros) o
impressionou muito.
Quem veio em socorro do autor foi o bom e velho Estado brasileiro, a
quem os escritores devem infinitamente. Se no século 20 o Estado os
sustentava com sinecuras, nos últimos anos garantiu a sobrevivência da
categoria aumentando as compras dos governos federal e estaduais para
bibliotecas e escolas, nas quais a literatura nacional ainda compete com
vantagem em relação às obras traduzidas.
As compras do governo permitiram que as editoras mantivessem uma fresta
de porta aberta à ficção local. A preferência voltou-se para os
clássicos, depois de alguns terem atravessado longo ostracismo, mas vêm
sendo feitas apostas em autores menos consagrados na esperança de que os
prêmios literários que também surgiram desde a virada do século possam
ungi-los com a boa crítica que conduz à rampa das aquisições
governamentais.
No entanto, já ouvi de muito editor estrangeiro e de "scouts", os
olheiros do mercado editorial, a queixa quanto a certa mesmice no que
apresentamos, um "mais do mesmo" que inviabiliza apostas ousadas nos
lançamentos. E, sem apostas ousadas, pode-se dar adeus ao sonho de um
grande estouro de vendas e popularidade. Sem estouro de vendas ou clara
consagração com prêmios internacionais, "bye-bye" ao nosso sonho de
visibilidade global.
"Vá cuidar de
seus leitores aqui, caro escritor,
vá para a internet falar com eles,
vá
cobrar distribuição dos seus editores,
vá conversar com jornalistas,
vá
ver se o que você está escrevendo é realmente bom
-antes de cultivar o
sonho colonizado e aprisionador do "sucesso no Primeiro Mundo".
EIXO Uma possibilidade de ação editorial seria tentar diluir o
poder cultural concentrado no eixo Rio-São Paulo, com esporádicas
esticadas ao Rio Grande do Sul, buscando originais em um espectro mais
amplo do país.
Um livro médio de autor que trabalhou no jornal "O Globo" ou na Folha,
que fez estágio no Instituto Moreira Salles ou no Itaú Cultural, que
atuou em editoras do eixo, que já entrevistou escritores renomados e
conhece as pessoas certas tem muito mais possibilidade de encontrar uma
casa que o publique do que um original novo, diferente e excelente de um
profissional liberal sem esse capital social e que esteja escrevendo de
alguma cidade média ou grande desse Brasil, que não Rio, São Paulo ou
Porto Alegre.
É compreensível que a ideia de separar joio do trigo nas pilhas de
originais não solicitados chegados de todo o país desanime o editor.
Encontram-se textos de valor, mas há muito joio. Desanima até o agente
literário, em si figura escassa no mercado. Os profissionais da edição
andam sobrecarregados, o trabalho com livro é infinito.
Mas é um desperdício. O Brasil hoje é uma sociedade complexa, e há
talentos literários de norte a sul, da fronteira continental à costa
atlântica, recriando experiências mais diversificadas do que as que
temos mostrado ao exterior.
Editores no exterior buscam autores consagrados em seus países de
origem, cujos livros sejam objeto de escolha dos leitores, não que
tenham sido comprados para bibliotecas. Se o Brasil quer que sua ficção
seja reconhecida, o escritor brasileiro precisa urgentemente reocupar o
seu espaço na livraria.
O editor precisa buscar os novos autores e publicá-los com esse
objetivo: a vitrine da livraria. O jornalista literário tem que se aliar
ao editor e --além de ler e priorizar o autor brasileiro-- deve jogar
fora as muletas teóricas da faculdade e desenvolver parâmetros críticos
mais próximos do gosto do bom leitor médio, que os professores e
acadêmicos não têm por que reconhecer. O crítico não universitário tem
que aprender a apreciar um texto por sua qualidade intrínseca, pelo seu
poder encantatório, e não pelo charme intelectual da editora ou de quem
apresenta o autor. E o leitor tem que se despir de preconceitos tolos,
como está fazendo quanto ao cinema nacional.
PRIORIDADES Para o escritor, sobram tarefas? A primeira é refazer
sua lista de prioridades, percebendo que o importante é passar a ser
bem publicado no Brasil e que 20 leitores locais são mais preciosos que
uma edição na Bulgária. Estou farta de ser abordada por autores mal
publicados, com vendas na ordem de mil exemplares, que, após uma
conversa sobre expectativas de carreira, dizem: "Mas meu sonho mesmo é
ser traduzido para o inglês ou para o francês".
Em qual lugar do mundo um autor de mil leitores sonha com tradução? Qual
autor americano chegou ao Brasil (que traduz quase toda e qualquer
porcaria publicada nos EUA) com esse histórico de vendas? Vá cuidar de
seus leitores aqui, caro escritor, vá para a internet falar com eles, vá
cobrar distribuição dos seus editores, vá conversar com jornalistas, vá
ver se o que você está escrevendo é realmente bom --antes de cultivar o
sonho colonizado e aprisionador do "sucesso no Primeiro Mundo".
A prioridade da literatura brasileira é sua valorização no Brasil. É
preciso retomar o espaço perdido no imaginário das pessoas. Nunca mais
será como antes, mas TV e cinema jogam hoje a favor da literatura,
bebendo cada vez mais em contos e romances para compor suas
dramaturgias. Tradução é importante, mas vem depois.
Vamos continuar a batalhar por nossos autores no exterior, sabendo que o
próximo livro brasileiro a ganhar espaço nas estantes das casas e
livrarias, nas listas de mais vendidos, nas páginas da internet, nas
conversas dos leitores --pela qualidade, força e magia de seu texto-- é
que será o principal responsável pela entrada do Brasil no mapa
literário internacional.
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* Editorialista.Fonte: Folha online, 23/02/2014
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