quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Sintonia de Amor

 http://www.escreveretriste.com/wp-content/uploads/2014/02/EdwardHopper-Office-at-Night-19401.jpg
É o meu último olhar. O último que lhe dirijo antes de aca­bar com isto de uma vez por todas. A res­posta é a mesma de sem­pre: ele, imper­tur­bá­vel, agar­rado aos seus papéis, fin­gindo que não estou aqui. Sem fazer ideia de que só existo para ele. Já chega. Cinco anos desde o pri­meiro dia em que aqui che­guei para que nada lhe fal­tasse. E pelo menos qua­tro desde o dia em que come­cei a vestir-me para ele, a pentear-me para ele, a perfumar-me para ele. Até o corpo mudei para que, quando final­mente ele me tivesse nos bra­ços, nunca mais de mim se qui­sesse sepa­rar. Um ano de salá­rios cus­ta­ram os implan­tes. Para nada. Nem um sor­riso quando me vê aqui, quase de madru­gada, ser­vil, à espera das ordens dele. E eu, na ausên­cia dele, com este irre­pri­mí­vel desejo de tocar em todos os objec­tos por onde pas­sa­ram as mãos dele que eu nunca aper­tei, de sen­tir o seu aroma na gra­vata preta que ele aqui deixa para as oca­siões fúne­bres. E quando ele me chama ao gabi­nete como agora, só eu e ele no gabi­nete, como me ape­tece apontar-lhe o fecho do meu ves­tido para que ele o abra e o deixe a meus pés, e eu pronta para lhe entre­gar o meu corpo que, se não for dele, de nenhum outro homem será. Se não for dele, de nenhum outro homem será. Se não for dele, nem eu pró­pria serei mais. Chega. Já que não sou dele, não quero ser mais. É o meu último olhar. O meu olhar de des­pe­dida. Ama­nhã já não serei mais. Ama­nhã, quando ele me encon­trar esvaída em san­gue na casa de banho dos fun­dos, com a foto­gra­fia dele numa mão e a pis­tola na outra, já não serei mais.

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É a última vez que resisto. É hora de aca­bar com este sofri­mento de uma vez por todas. Eu, para aqui imper­tur­bá­vel aos olhos dela quando Deus sabe quanto per­tur­bado ela me faz ficar, agar­rado aos meus papéis, a fin­gir que não dou por ela. Como seria mara­vi­lhoso que ela só exis­tisse para mim. Desde o pri­meiro dia que ela aqui che­gou como dese­jei eu um dia ser tudo para ela. Desde aí como gosto eu de ima­gi­nar que ela se veste para mim, que se pen­teia para mim, que se per­fuma para mim. E como sonho, em todos os minu­tos em que estou acor­dado ou a dor­mir, com as for­mas per­fei­tas que o ves­tido dela esconde. Ah, como invejo o homem que a tem nos bra­ços todas as noi­tes. Como invejo o homem que faz arfar de desejo aquele peito mag­ní­fico. Sim, ela não con­se­gue escon­der que é uma mulher que vive em estado de graça por um homem. Daria tudo para não ser quem sou só para poder ser ele. E por ser quem sou nem me atrevo a olhar para ela. Não me atrevo sequer a sorrir-lhe quando ela me cum­pri­menta de manhã. Trair-me-ia. Expor-me-ia ao ridí­culo deste amor que não mereço. E como sofro por não a mere­cer. Como sofro por ser eu e não quem a merece. Mas é a última vez. Ama­nhã já não sofre­rei mais. Ama­nhã já não serei mais eu. Ama­nhã, quando ela me encon­trar esvaído em san­gue na casa de banho do meu gabi­nete, com a foto­gra­fia dela na mão e a pis­tola na outra, já não serei mais eu.
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Por Diogo Leote
Imagem:  Office at Night, Edward Hop­per, 1940
56,3 cm x 63,8 cm
Wal­ker Art Cen­ter, Minneapolis
Fonte: http://www.escreveretriste.com/2014/02/05

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