É o meu último olhar. O último que lhe
dirijo antes de acabar com isto de uma vez por todas. A resposta é a
mesma de sempre: ele, imperturbável, agarrado aos seus papéis,
fingindo que não estou aqui. Sem fazer ideia de que só existo para ele.
Já chega. Cinco anos desde o primeiro dia em que aqui cheguei para
que nada lhe faltasse. E pelo menos quatro desde o dia em que comecei
a vestir-me para ele, a pentear-me para ele, a perfumar-me para ele.
Até o corpo mudei para que, quando finalmente ele me tivesse nos
braços, nunca mais de mim se quisesse separar. Um ano de salários
custaram os implantes. Para nada. Nem um sorriso quando me vê aqui,
quase de madrugada, servil, à espera das ordens dele. E eu, na
ausência dele, com este irreprimível desejo de tocar em todos os
objectos por onde passaram as mãos dele que eu nunca apertei, de
sentir o seu aroma na gravata preta que ele aqui deixa para as
ocasiões fúnebres. E quando ele me chama ao gabinete como agora, só
eu e ele no gabinete, como me apetece apontar-lhe o fecho do meu
vestido para que ele o abra e o deixe a meus pés, e eu pronta para lhe
entregar o meu corpo que, se não for dele, de nenhum outro homem será.
Se não for dele, de nenhum outro homem será. Se não for dele, nem eu
própria serei mais. Chega. Já que não sou dele, não quero ser mais. É o
meu último olhar. O meu olhar de despedida. Amanhã já não serei
mais. Amanhã, quando ele me encontrar esvaída em sangue na casa de
banho dos fundos, com a fotografia dele numa mão e a pistola na
outra, já não serei mais.
……………………….
É a última vez que resisto. É hora de
acabar com este sofrimento de uma vez por todas. Eu, para aqui
imperturbável aos olhos dela quando Deus sabe quanto perturbado ela
me faz ficar, agarrado aos meus papéis, a fingir que não dou por ela.
Como seria maravilhoso que ela só existisse para mim. Desde o
primeiro dia que ela aqui chegou como desejei eu um dia ser tudo para
ela. Desde aí como gosto eu de imaginar que ela se veste para mim,
que se penteia para mim, que se perfuma para mim. E como sonho, em
todos os minutos em que estou acordado ou a dormir, com as formas
perfeitas que o vestido dela esconde. Ah, como invejo o homem que a
tem nos braços todas as noites. Como invejo o homem que faz arfar de
desejo aquele peito magnífico. Sim, ela não consegue esconder que é
uma mulher que vive em estado de graça por um homem. Daria tudo para
não ser quem sou só para poder ser ele. E por ser quem sou nem me atrevo
a olhar para ela. Não me atrevo sequer a sorrir-lhe quando ela me
cumprimenta de manhã. Trair-me-ia. Expor-me-ia ao ridículo deste amor
que não mereço. E como sofro por não a merecer. Como sofro por ser eu e
não quem a merece. Mas é a última vez. Amanhã já não sofrerei mais.
Amanhã já não serei mais eu. Amanhã, quando ela me encontrar esvaído
em sangue na casa de banho do meu gabinete, com a fotografia dela na
mão e a pistola na outra, já não serei mais eu.
---------------
Por Diogo Leote
Imagem: Office at Night, Edward Hopper, 1940
56,3 cm x 63,8 cm
Walker Art Center, Minneapolis
56,3 cm x 63,8 cm
Walker Art Center, Minneapolis
Fonte: http://www.escreveretriste.com/2014/02/05
Nenhum comentário:
Postar um comentário