Carlos Felipe Moisés*
Historinha antiga (os avós dos seus avós já a conheciam), mas
instrutiva, é a do sujeito que trocou a mulher de 40 por duas de 20.
Quando teve a oportunidade, você não quis arriscar. Agora está
arrependido? Pensando em trocá-la por três de 20? Esqueça! Você mal
daria conta da primeira. E a segunda, se ainda estiver por perto, logo
se oferecerá para ajudá-lo a atravessar a rua. O que mais você
atravessaria ao lado da esplêndida jovem, que podia ser (desculpe-me o
clichê, mas a aritmética é implacável) sua neta?
E a terceira? Pois é, você ainda tem direito a mais uma de 20... A
terceira só entra na história em razão da aritmética. Quem poria quem ao
colo, para acalentar com carinho e respeito? Bobagem! Mas a historinha é
de fato instrutiva, esconde nas cavernas onde veio sendo forjada, ao
longo dos séculos, muito daquilo que a nossa sociedade, ao mesmo tempo,
ambiciona e abomina.
Trocar uma de 40 por duas de 20 é considerar a mulher como
mercadoria, da qual o homem pode dispor como bem entenda: vender,
trocar, alugar, terceirizar, usar à vontade, até que ela não sirva para
mais nada. Mercadoria, propriedade... Valor de troca ou de mercado? De
mercado, claro! Incapaz de avaliar a mulher que a sorte ou o azar pôs do
seu lado (você delira ou entra em pânico diante de quase todas, não é
verdade?), você parte para a quantidade. Seu negócio não é mulher, mas
mulheres, em expansão aritmética.
Ainda se fosse para sua satisfação pessoal... Mas é só para exibir ao
mundo o poder de fogo do seu patrimônio sempre crescente. Não é por
você que você troca uma de 40 por duas de 20, é pelos outros. Seu modelo
(modelo recente, a história é mais antiga) é o pistoleiro do Velho
Oeste, que vai marcando no cano do revólver, com o canivete, um a um, os
desafetos que despacha para o Além... para depois exibi-lo aos
frequentadores do Saloon. Todos ali, pistolas à mostra, felizes da vida,
embora um pouco assustados. A única mulher presente é a corista
rebolando no tablado, oferecida.
Você nunca ouviu, nunca ninguém ouviu falar da mulher que trocou o
seu homem de 50 por dois de 25. (Não seria justo, aritmeticamente
correto?) Ela troca por um só. A razão, se você não sabe desconfia: ela
não liga para quantidade, não anda de pistola pendurada na cintura e não
quer saber de marcas a exibir no Cabeleireiro ou no Chá das Cinco. Ela
prefere esconder as marcas. Seu único propósito é amar e ser amada, e
tanto faz um de 25 ou de 50. É só escolher entre a suposta experiência e
a alardeada volúpia. Doce indecisão, não é mesmo? É como a do técnico
que conta com dois supercraques para cada posição.
Dois de 25? A mulher nem pensa nisso. Ela sabe que, se for capaz de
retribuir, um só chega. Afinal, "trocar a mulher de 40 por duas de 20"
não passa de ato falho - secular, arquetípico, revelador dos nossos
medos e fantasmas. O medo de morrer, o fantasma do envelhecimento... E
dá para explicar, caso não o incomode recorrer à ajuda de um escritor
antigo. A literatura pode ajudar.
O livro se chama "Carta de Guia de Casados", foi publicado em 1651 e
trata de vários temas relativos à vida conjugal, entre os quais o nosso:
a idade ideal. No caso, a dos amantes em busca da felicidade. É um dos
pioneiros dos livros de autoajuda, que hoje infestam as prateleiras das
nossas bibliotecas e livrarias. (Como você vê, aliás, nem sempre as
inovações trazem realmente algo de novo.) O autor? Um nobre, solteirão e
mulherengo, d. Francisco Manuel de Melo, que vai direto ao ponto.
Segundo ele, existem apenas três espécies de casamento: o de Deus, o
do diabo e o da morte. Com a palavra o fidalgo: "De Deus, o do mancebo
com a moça; do diabo, o da velha com o mancebo; da morte, o da moça com o
velho". Em seguida ele explica: "Os casados moços podem viver com
alegria; as velhas casadas com moços vivem em perpétua discórdia; os
velhos casados com as moças apressam a morte, ora pelas desconfianças,
ora pelas demasias".
Não vem diretamente daí a ideia de trocar a mulher de 40 por duas de
20 (no tempo de d. Francisco o mercantilismo ainda estava em expansão),
mas podemos dizer que é um corolário, pelo caminho mais torto possível.
Digamos que, tocado pelo sábio conselho, você tenha feito como a
maioria e se casou "mancebo", com uma "moça". Passados alguns anos, você
envelheceu, tanto quanto ela, embora só repare no envelhecimento dela. É
nesse momento que lhe ocorre trocá-la por duas de 20. Para quê? Para se
certificar e provar ao mundo: envelhecer não é com você, é só com ela.
Ou com os outros. Então (d. Francisco bem que avisou) você apressa a
morte.
Já sei: você está querendo dizer que d. Francisco Manuel de Melo se
enganou. Não são apenas três, mas quatro, as espécies de casamento.
Faltou incluir o do velho com a velha. Mas, guardadas as proporções, não
seria igualzinho ao da moça com o mancebo? Está bem, está bem: d.
Francisco se enganou, mas não se enganou. É tudo literatura, não é
verdade?
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* Carlos Felipe Moisés é poeta ("Noite Nula"), crítico literário ("Tradição & Ruptura") e tradutor ("O Poder do Mito")
Fonte: Valor Econômico online, 07/02/2014
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