Sara Oviedo Fierro (Equador, 28 de julho de 1952) foi eleita em 2012 vice-presidenta do Comitê dos Direitos da Criança na ONU, diante do qual compareceu o Vaticano
no último dia 16 de janeiro. A socióloga equatoriana, que começou aos
13 anos a defender os direitos dos indígenas, das mulheres e das
crianças, foi testemunha das respostas esquivas e da negativa dos
porta-vozes da Santa Sé em fornecer dados e fatos
concretos sobre os casos de abusos sexuais no seio da Igreja. Como
coautora do duríssimo relatório divulgado após o comparecimento, no qual
a ONU exige que a Igreja entregue os padres pederastas e proteja as crianças, Oviedo
afirma nesta entrevista, concedida por videoconferência, que a questão
da pederastia está “tão enraizada nas bases da Igreja” que suas
autoridades têm medo de enfrentar o problema.
Até agora nunca ninguém havia conseguido interpelar a Santa Sé. Foi difícil conseguir o comparecimento do Vaticano?
O que fizemos foi cumprir com o procedimento de analisar todos os
países que firmaram o tratado dos direitos da criança, com a diferença
de que tínhamos a convicção de que era preciso falar da pederastia. O
diálogo com a Santa Sé ocorreu num momento em que era
factível. Existe uma maior abertura da Santa Sé e existe uma necessidade
latente das vítimas e da sociedade de reconhecer essa questão.
O Vaticano cumprirá os compromissos?
Eu insisto em que conseguimos algumas coisas. A primeira é o
reconhecimento do problema da pederastia em todo o mundo. Até agora
nenhuma autoridade, como a ONU neste caso, havia
constatado isso como um problema importante que existe e que deve ser
tratado. E outra coisa é reconhecer a dor das vítimas, que tiveram em si
essa sensação de culpa e de não serem ouvidas. O comitê foi valente e
consistente, sei que eles sentiram em nossas palavras essa posição
madura quando lhes pedimos que mostrem os dados que nunca forneceram,
que prestem contas das ações que estão fazendo e que entreguem os
sacerdotes criminosos à justiça comum.
Como avalia as respostas dos porta-vozes diante do comitê?
O comparecimento desse dia foi uma espécie de farsa. Eles admitiram
como fato que há pederastas, que estão muito envergonhados e que estão
tomando uma série de medidas para evitar que isso ocorra. O diálogo foi
um longo braço de ferro. Nós insistíamos em conhecer os casos concretos e
em indicar-lhes as medidas que deveriam ser tomadas. Eles diziam que
sim, que é preciso fazer algo, mas não davam fatos concretos.
Entregaram-nos uma lista de sacerdotes afastados do sacerdócio por
pederastia. Em resumo, não acredito neles. Ou estão fazendo muito pouco
ou não estão fazendo nada. Foi uma situação bem ambígua, muito confusa.
Como definiria a atitude deles?
Eu percebi muito medo, a insegurança típica de quem é pego em
flagrante e de quem sabe que está defendendo o indefensável. Quem
responde assim sabendo todo o mal que se fez a tantas vitimas humanas
tem muito cinismo.
Os porta-vozes do Vaticano mentiram durante seu comparecimento?
Eu não acho que tenham mentido. Acho, sim, como dizem eles, que estão
preocupados e que tomaram medidas tênues, mas o problema é esse: acho
que o fazem para nos contentar e para que reduzamos a pressão. Usaram
essa forma ambígua tentando que caíssemos no jogo e que no final
disséssemos: “Que bom que vocês estão pensando em tudo isso e obrigada.”
Mas não caímos, lhes dissemos claramente que não acreditávamos neles,
com diplomacia e bom ambiente, sem gritos: “Não acreditamos nos
senhores, não vemos o que estão fazendo. As vítimas continuam esperando
respostas”.
A Igreja se sente impune?
Se analisamos as suas respostas nesse dia não vejo sintoma de que se
sintam impunes, embora nos fatos tenham atuado dessa maneira, com a
lógica de continuar protegendo-os (os pederastas). Se um militar é
flagrado em situações desse tipo é entregue à justiça comum, não é
possível entender porque eles não o fazem. A única conclusão que tiro é
que a questão da pederastia é estrutural e que está tão enraizado nas
bases da Igreja que se teme que se isso começar a ser enfrentado
ocorrerá uma hecatombe que comprometerá todas as estruturas e suas
autoridades. Pela proteção com que tratam o tema nos fazem pensar que
seja muitíssimo maior.
Os porta-vozes do Vaticano se recusaram a interferir na liberdade religiosa, qual a sua opinião sobre isso?
Eu acho que isso foi uma saída pela tangente para poder reduzir a
pressão. Quiseram dizer que não só estávamos sendo duros e injustos com a
questão da pederastia, mas também que estávamos interferindo em outros
assuntos como o aborto, a homossexualidade e a questão de gênero, mas
eles sabem que não houve insistência sobre esses temas.
Como avalia o silêncio do papa Francisco depois do relatório?
Eu gosto das pessoas que falam um pouco tarde, mas com consistência e
com a verdade. Parece-me coerente que não tenha falado, ele deveria
falar com fatos e para apresentar propostas. Se falasse agora para dizer
o que estão dizendo os porta-vozes da Santa Sé decepcionaria muita gente. Acho que está tomando o tempo necessário para poder oferecer respostas concretas.
Para as vítimas isso foi uma grande vitória. O que vem agora para elas?
As vítimas são as que têm a faca e o queijo na mão. Acho que nós
cumprimos de maneira madura e consistente nosso papel. Agora cabe a elas
fazer as denúncias em seus países de origem, retomar a luta e propor
agendas bem claras para ver como conseguir que na prática se concretize
aquilo que a Santa Sé reconheceu diante do comitê que é preciso fazer.
As associações mexicanas pedem que se julgue o Vaticano por crimes de Estado, acha que existem elementos para isso?
Eu não sei sinceramente quais são os elementos necessários para isso, a mim já não me cabe julgar isso.
O porta-voz do Vaticano diante da ONU disse que existe pederastia na Igreja da mesma forma que em outras profissões?
Justamente eles, como guias espirituais, são obrigados a dar o
exemplo. Além disso, não é porque os outros o fazem que seja
justificável, são eles que assumiram ser guias espirituais e que
assumiram o celibato. A proteção aos sacerdotes criminosos criou ali um
lugar quase patológico, com situações muito doentias onde a sexualidade
humana está totalmente deformada.
Acredita que algum dia se fará justiça às vítimas?
Eu acho que o ser humano vai avançando e que essa humanidade vai
colocar limites àqueles a quem é preciso colocá-los. Talvez nós não a
vejamos, mas um dia será feita, sim, justiça.
A senhora crê em Deus?
É complicado. Eu acredito em Deus, mas no Deus dos pobres. A mim me
custa muito acreditar na instituição da Igreja, que cometeu tantos erros
e que está sempre do lado dos que detêm o poder. Não consigo acreditar
nela.
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A entrevista é de Inés Santaeulalia e publicada no jornal El País, 15-02-2014.
Fonte: IHU online, 17/02/2014
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