Luiz Felipe Pondé*
Gente comum quer uma vida pautada por rotinas de trabalho, escola, lazer e consumo
Dias atrás, o Brasil se chocou com cenas de violência nas ruas. Pessoas
comuns batendo em supostos (ou comprovados) bandidos. Policiais tendo
que protegê-los da fúria da gente comum.
De um lado, uma jornalista faz comentários arriscados na TV, do outro,
setores da intelligentsia pedem providências do Ministério Público
contra a jornalista, botando ainda mais lenha na fogueira da atmosfera
de ódio e ressentimento que toma conta, lentamente, da alta, média e
baixa culturas nacionais.
Não se pode defender o espancamento na rua, mesmo sendo bandido. Só o
Estado detém o monopólio legítimo da violência. Mas é esta mesma
intelligentsia (tribunais, universidades, mídia, escolas, ONGs) que vem
sistematicamente erodindo esse monopólio legítimo da violência que
pertence à polícia. Claro que os erros desta precisam ser sanados, mas a
sociedade não faz nada para melhorar o tratamento institucional dado à
polícia, e sem ela, sim, a gente comum vai espancar supostos (ou
comprovados) bandidos na rua. E vai piorar.
O espancamento de supostos (ou comprovados) bandidos na rua é parte do
fenômeno de massa que os inteligentinhos chamam de "jornadas de junho",
num esforço de reviver a ejaculação precoce que foi o Maio de 68 na
França, aquela revolução de mimados.
Lembremos que quando as manifestações do ano passado atingiram o nível
de massa, os inteligentinhos começaram a gritar dizendo que o movimento
(deles!) tinha sido sequestrado por setores "conservadores" da
sociedade. Para eles, "conservador" é todo mundo que não os obedece e
não os teme, mesmo que seja apenas para parar a Paulista.
Se no ano passado vimos uma inesperada crise na representação política,
agora assistimos a um crescente rompimento do contrato social. E quem
está na rua é o homem descrito pelo intelectual honesto que foi Hobbes, e
não o pseudo-homem dos "delírios do caminhante solitário" e vaidoso
Rousseau.
Já falei algumas vezes nesta coluna do que podemos chamar de psicologia
da gente comum. Esta gente que a intelligentsia, na verdade, despreza,
apesar de posar de defensora da gente comum. Digamos a verdade. Nossa
contradição aparece quando, por exemplo, algumas pessoas começam a
gritar contra gente mal-educada e sem compostura frequentando
aeroportos, e os "defensores dos menos privilegiados" saem ao ataque da
burguesia chocadinha reclamona.
Infelizmente, a intelligentsia não percebe que tanto a burguesia
chocadinha quanto os mais pobres fazem parte da mesma categoria de gente
comum. Perdemos, nós da intelligentsia, a capacidade de enxergar essa
gente comum, porque vivemos em nossa "casinha" correndo atrás da
produtividade inócua da Sua Excelência Capes ou delirando com seres
humanos que não existem.
E qual é a psicologia de gente comum? Gente comum é duramente
meritocrática: quem não trabalha é vagabundo. Não quer ser assaltada
quando vai para o trabalho ou para casa (e se for, quer ver o ladrão se
ferrar feio!), quer também casa própria, metrô e ônibus que andem,
comprar um carro logo que for possível, hospital sem muita fila, comer
pizza no domingo, transar por cinco minutos quando não estiver muito
estressada, ir para praia, ganhar cada vez mais, ir ao cinema mais perto
de casa, ir ao salão de beleza, ver os filhos crescerem, tomar cerveja,
e se der, ler alguma coisa além de ver TV.
E, digamos: pagam impostos e tem todo o direito de viver assim (menos de
bater em gente na rua). Mas vão bater em supostos (ou comprovados)
ladrões cada vez mais porque estão sentindo que a sociedade não está nem
aí para eles.
Quando a chamada classe D alcançar os níveis do consumo da classe C, vão
querer a mesma coisa. Uma vida pautada por rotinas de trabalho, escola,
lazer, consumo e férias. E quem ficar no caminho vai apanhar. Esta é
única "consciência social" que existe.
Quando essa massa de gente que está de saco cheio de ser pisada no trem,
de pagar imposto e não poder andar com seu carro nas ruas, de ver sua
filha com medo, agir, o homem de Hobbes fará sua "revolução". A vida
será doída, violenta e breve.
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* Filósofo. Escritor.
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