Theodore
Twombly, o protagonista de "Ela" ("Her"), um dos candidatos
ao Oscar de melhor filme deste ano, existe de verdade. Ele pode não ter o
bigode característico do personagem interpretado por Joaquin Phoenix,
nem morar em Los Angeles, que serve de cenário à história passada em um
futuro indeterminado. Não precisa nem ser homem, ou adulto. Adolescentes
e crianças de ambos os sexos, e mulheres de diversas faixas etárias,
também têm estrelado dramas pessoais que lembram muito o que se vê na
tela. São histórias de pessoas que deixaram a tecnologia assumir um
papel tão crítico em seus relacionamentos afetivos que não conseguem
mais ir adiante sem essa intermediação. É o amor nos tempos dos bytes.
No filme, conduzido pelo diretor americano Spike Jonze, o fictício
sistema operacional OS1 torna-se alvo do afeto de Twombly, um
recém-divorciado que escreve cartas por encomenda de outras pessoas.
Samantha, o nome que o software dá a si mesmo, é a voz da atriz Scarlett
Johannson. O relacionamento avança aos poucos, até dar lugar a um
romance.
Os sistemas atuais não são páreo para Samantha. Seria impossível se
apaixonar por um software como o Windows, que faz funcionar a maioria
dos computadores, ou o Android, o mais usado em smartphones. Esses
programas nunca tiveram o propósito de simular uma existência humana.
Mas isso está mudando. As grandes companhias de tecnologia têm avançado
na direção de softwares que usam inteligência artificial para tentar
descobrir a vontade dos usuários e, dessa forma, se "relacionar" com
eles. A Apple criou o assistente pessoal Siri, para o iPhone, enquanto o
sistema Android conta com o Google Now.
"A inteligência artificial ainda é muito rudimentar e não consegue
enganar as pessoas, mas quando a experiência virtual mostrar-se tão
substantiva quanto a real, todos vão caminhar para o virtual", afirma o
psiquiatra Aderbal Vieira Jr., do Programa de Orientação e Atendimento a
Dependentes (Proad) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Para muita gente, nem é preciso esperar por algo parecido com
Samantha para se enamorar no mundo digital. O psicólogo Cristiano Nabuco
já atendeu a uma paciente apaixonada por um personagem do Second Life. O
site, que fez muito sucesso anos atrás, reproduz cidades nas quais as
pessoas assumem a aparência que quiserem na forma de figuras virtuais,
seus avatares. "Ela tinha problemas de relacionamento por causa da
obesidade", conta Nabuco, do Grupo de Dependências Tecnológicas do
Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Curiosamente, no Second Life a paciente tinha a mesma profissão do mundo
real. Depois de um tempo, porém, ela - ou melhor, seu avatar - passou a
se prostituir. Com o dinheiro, a mulher comprou um apartamento luxuoso
(o Second Life tem sua própria moeda) e foi viver com seu amado, tudo no
ambiente virtual.
Parece um caso isolado, mas no Japão esse tipo de ocorrência tem
assumido proporções tão grandes que começa a preocupar os responsáveis
pela demografia no país. Uma pesquisa feita em 2010 pelo Ministério da
Saúde, do Trabalho e da Previdência Social mostrou que 36% dos homens
japoneses entre 16 e 19 anos não demonstravam nenhum interesse em sexo,
informou a BBC. Eles são os otaku, uma geração de fanáticos por
tecnologia que cresceu em meio às dificuldades econômicas no país, e
preferiu se refugiar em um universo povoado por personagens de histórias
em quadrinhos, séries de TV e jogos de videogame.
Nem o Windows nem o Android pretendem simular uma existência humana, como no filme de Spike Jonze,
mas isso está mudando
Um dos maiores sucessos entre os otaku é o "Love Plus", um jogo para o
console portátil Nintendo DS. O jogador escolhe uma entre duas garotas
possíveis, ambas na faixa dos 15 anos, e assume o papel de um
adolescente. Os fãs mais ardorosos levam seus pares virtuais, de grandes
olhos e roupa de colegial - uma estética típica dos mangás, os
quadrinhos nipônicos - para passear ou tirar fotos. Alguns vão além. Em
2009, um homem conhecido apenas por seu apelido, Sal 9000, casou-se com a
namorada digital, Nene Anegasaki, em uma cerimônia em Guam, transmitida
pela internet. Ele tinha 27 anos na época.
Ao eleger pares perfeitos, a tentativa é de buscar uma relação
idealizada, sem sofrimento, "como se isso fosse possível", afirma o
psiquiatra Daniel Tornaim Spritzer, fundador e coordenador do Grupo de
Estudos sobre Adições Tecnológicas (Geat), do Rio Grande do Sul. "É como
no filme. O relacionamento do protagonista com Samantha é parecido com o
que ele mantém com as mulheres reais", diz Spritzer. "Quando a mulher
se comporta do mesmo jeito que ele, há uma aproximação, mas quando ela
manifesta seus próprios desejos, ele cai fora." O narcisismo dessas
relações virtuais é indisfarçável.
Mas nem sempre o que acontece na web fica na web. Pessoas com
dificuldades para estabelecer relacionamentos mais longos têm usado
aplicativos de namoro para encontrar sexo casual - e de verdade, não
virtual. Entre os aplicativos mais populares estão o Tinder, destinado a
heterossexuais, e o Grindr, para gays e lésbicas. Excetuando os EUA, o
Brasil é o país que cresce mais rapidamente em número de usuários do
Tinder, ao lado do Reino Unido. Para o Grindr, é o sétimo mais
importante, com quase 220 mil adeptos.
É preciso conectar os programas a um perfil em redes sociais como o
Facebook. Por geolocalização, os softwares identificam onde estão os
parceiros potenciais mais próximos, identificam a quantos metros está o
candidato e exibem seu perfil. Fotos sensuais são comuns na
apresentação. A pessoa então faz o convite para um encontro e espera a
resposta. "Tenho uma paciente que afirma só obter sexo pelo Tinder", diz
Nabuco. "A justificativa é que dessa maneira ela consegue ser de um
jeito que não é possível no mundo real."
Spike Jonze - que também é autor do roteiro de "Ela" - tem repetido
em entrevistas que o filme é sobre a dificuldade de criar intimidade e
não sobre tecnologia. É difícil, porém, separar as duas coisas. Com a
disseminação de celulares e tablets, muitos especialistas avaliam que o
fluxo de comunicação aumentou significativamente, mas tende a ser
superficial, embora isso varie de pessoa para pessoa.
A questão é mais grave entre os adolescentes. É nessa etapa que se
aprende como se relacionar com o outro, inclusive do ponto de vista
afetivo e sexual, diz Spritzer. "O problema é que esse aprendizado pode
ser tão facilitado pela internet que o indivíduo não desenvolve seu
potencial pleno", afirma o psiquiatra.
O fenômeno é chamado de "emotional numbing" ou anestesia emocional.
Sem desenvolver completamente a capacidade de "ler" o outro, a pessoa vê
o mundo como um lugar mais ameaçador, refugiando-se na tecnologia. Em
pesquisas feitas nos EUA, rapazes revelaram-se sexualmente agressivos em
seu contato com as meninas, na internet. "Quando colocados frente a
frente, no entanto, eles se mostravam tímidos", diz Nabuco.
Algo diz que a primeira empresa que desenvolver um sistema como Samantha vai ganhar muito dinheiro no futuro.
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Reportagem por João Luiz Rosa
Fonte: Valor Econômico online, 28/02/2014
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