J.J. CAMARGO*
“O
senhor me confortou quando pareceu consternado me ouvindo falar da minha
dor, e depois me destruiu quando ao sair, com a sua voz inconfundível,
saudou alegremente um colega no corredor. A tristeza dos amigos
verdadeiros
costuma ser mais duradoura”.
Muitos anos de atividade médica intensa levaram-me a
acreditar que podemos entender de gente mesmo sem formação
psicanalítica. Basta que aprendamos a ouvir e, assim, descobrir o que
pensam as pessoas doentes. Com isso, abrem-se as fechaduras das frases
entrecortadas, dos suspiros e das metáforas que são sempre mais do que
isso.
Com este exercício diário de humanidade, descobrimos que a nossa lide é um jogo de sedução e conquista de confiança, e nada atrai mais o paciente do que a identidade de afetos e sentimentos. Por outro lado, não há instrumento de aversão mais eficiente do que a desconsideração. Uma cara risonha no velório do meu avô fez com que, durante anos, eu lembrasse daquele primo, o da contramão da minha dor, cada vez que tinha uma náusea ou uma dor de barriga qualquer.
Depois de um tempo, acabamos perdoando esses descompassos estúpidos, mas as farpas ficam lá, e qualquer distraído roçar de insensibilidade vai pô-las, outra vez, a latejar. O Artêmio era um homem enfarruscado, que economizava gestos e palavras, mas havia uma franqueza naquele olhar vertical que evocava autenticidade.
Classificado assim, foi fácil me tornar amigo e interlocutor da sua solidão e desencanto quando os exames confirmaram a disseminação de um tumor que operáramos três anos antes. Alguém precisava ouvi-lo, e a família estava ocupada com outras coisas. Essas coisas que só descobrimos insignificantes depois que perdemos as outras. Nossas conversas tinham sempre dois estágios: o da inquirição técnica, em que ele respondia perguntas que lhe fazia ao pé da cama, e o da conversa pessoal, naquela interação que exige que sentemos, porque não há interface afetiva com os olhares desnivelados.
Ouvi dele as histórias de uma vida dura, em que a infância fora negligenciada em nome do trabalho precoce para substituir o pai desaparecido e quase justifiquei a sua inflexibilidade como retribuição pelo que a vida lhe presenteara. Próximo do fim, encontrei-o deitado, com aquele vão entre as pernas que resulta do sumiço da musculatura das coxas. As queixas de dor contínua e a sua declarada rebeldia pelo sofrimento sem destino me comoveram. Pensei nele como o cadáver adiado de Fernando Pessoa, e saí. A morfina nos ajudaria a enfrentar o fantasma da morte.
Quando voltei mais tarde, ele fez uma confissão: “O senhor me confortou quando pareceu consternado me ouvindo falar da minha dor, e depois me destruiu quando ao sair, com a sua voz inconfundível, saudou alegremente um colega no corredor. A tristeza dos amigos verdadeiros costuma ser mais duradoura”.
Tendo acreditado, depois de décadas de aprendizado, que alcançara a condição de um médico pronto, de repente me descobri um mero estudante em construção. Havia ainda muita vida por viver.
Com este exercício diário de humanidade, descobrimos que a nossa lide é um jogo de sedução e conquista de confiança, e nada atrai mais o paciente do que a identidade de afetos e sentimentos. Por outro lado, não há instrumento de aversão mais eficiente do que a desconsideração. Uma cara risonha no velório do meu avô fez com que, durante anos, eu lembrasse daquele primo, o da contramão da minha dor, cada vez que tinha uma náusea ou uma dor de barriga qualquer.
Depois de um tempo, acabamos perdoando esses descompassos estúpidos, mas as farpas ficam lá, e qualquer distraído roçar de insensibilidade vai pô-las, outra vez, a latejar. O Artêmio era um homem enfarruscado, que economizava gestos e palavras, mas havia uma franqueza naquele olhar vertical que evocava autenticidade.
Classificado assim, foi fácil me tornar amigo e interlocutor da sua solidão e desencanto quando os exames confirmaram a disseminação de um tumor que operáramos três anos antes. Alguém precisava ouvi-lo, e a família estava ocupada com outras coisas. Essas coisas que só descobrimos insignificantes depois que perdemos as outras. Nossas conversas tinham sempre dois estágios: o da inquirição técnica, em que ele respondia perguntas que lhe fazia ao pé da cama, e o da conversa pessoal, naquela interação que exige que sentemos, porque não há interface afetiva com os olhares desnivelados.
Ouvi dele as histórias de uma vida dura, em que a infância fora negligenciada em nome do trabalho precoce para substituir o pai desaparecido e quase justifiquei a sua inflexibilidade como retribuição pelo que a vida lhe presenteara. Próximo do fim, encontrei-o deitado, com aquele vão entre as pernas que resulta do sumiço da musculatura das coxas. As queixas de dor contínua e a sua declarada rebeldia pelo sofrimento sem destino me comoveram. Pensei nele como o cadáver adiado de Fernando Pessoa, e saí. A morfina nos ajudaria a enfrentar o fantasma da morte.
Quando voltei mais tarde, ele fez uma confissão: “O senhor me confortou quando pareceu consternado me ouvindo falar da minha dor, e depois me destruiu quando ao sair, com a sua voz inconfundível, saudou alegremente um colega no corredor. A tristeza dos amigos verdadeiros costuma ser mais duradoura”.
Tendo acreditado, depois de décadas de aprendizado, que alcançara a condição de um médico pronto, de repente me descobri um mero estudante em construção. Havia ainda muita vida por viver.
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