terça-feira, 31 de julho de 2018

Justiça, ideologia e narrativa

Juremir Machado da Silva*
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Lógica discursiva

      No mundo do direito, ou da filosofia do direito, duelam personagens que os mortais ignoram: Hans Kelsen X Carl Schmitt, Luigi Ferrajoli X Elizabeth Anscombe, constitucionalistas e supraconstitucionalistas, garantistas e consequencialistas, um universo de possibilidades e de argumentos. Não fuja, leitor. Esqueça o Google. Ou só o procure em caso de extrema necessidade. É tão excitante. Todos podem estar certos e errados ao mesmo tempo. Como vivem no relativismo, recorrem a autoridades absolutas por tradição.

O constitucionalista dá à corte suprema o papel de guardião da Constituição. O supraconstitucionalista acredita que um “príncipe” deve poder interpretá-la a seu bel-prazer ou em nome do espírito da nação. O garantista aplica a lei escrita e só a interpreta quando vê lacunas. O consequencialista interpreta lei conforme a consequência desejada. Os seus seguidores brigam sem parar. Pode acontecer assim:

– Algo está errado no funcionamento do judiciário…

– Você diz isso por ignorância.

– Entendi a sua estratégia. Todos os seus argumentos serão de autoridade. Acontece que cem juristas dizem o que estou dizendo.

– No caso deles é por ideologia.

– Entendi o raciocínio. Uns discordam por ignorância e outros por ideologia. Só o seu pensamento é verdadeiro e não ideológico.

O ministro Carlos Marun quer a criação de uma corte constitucional no Brasil para dirimir contendas entre o STF e a Constituição. Não seria mais fácil o STF ser corte constitucional e deixar quase tudo que vem fazendo excessivamente para o STJ? Nas brigas epistemológicas desse mundo estonteante acontecem coisas assim:

– Deve-se aplicar a lei interpretando-a.

– Que lei autoriza a interpretar legislando?

– A independência dos poderes.

– Em que lei está prevista a independência nesse nível?

– É uma questão de interpretação.

– Nem tudo pode ser interpretação.

– Isso é uma interpretação.

– Quem disse que não pode haver lei sem espaço para interpretação?

– A interpretação.

É claro como água da fonte. Wittgenstein dizia que os problemas filosóficos aparecem quando a linguagem sai de férias. É uma boa frase. Deliciosamente enigmática. No Brasil não faltará quem diga que os problemas jurídicos aparecem quando o juiz Sérgio Moro sai de férias. Cada qual com a sua referência. Olympia de Gouges, figura da Revolução Francesa, foi guilhotinada, honraria sem limitação de gênero. Eduardo Galeano destaca o seu discurso de despedida: “Se nós, mulheres, estamos capacitadas para subir até a guilhotina, por que não podemos subir até as tribunas públicas”. A resposta foi cortante. Não havia jurisprudência favorável a tal pleito nem interpretação da lei.

No Brasil, um dia, revoluto, José Bonifácio de Andrade e Silva escreveu: “Riquezas e mais riquezas gritam os nossos pseudoestadistas, os nossos compradores e vendedores de carne humana; os nossos sabujos eclesiásticos; os nossos magistrados, se é que se pode dar um tão honroso título a almas, pela maior parte, venais, que só empunham a vara da Justiça para oprimir desgraçados, que não podem satisfazer à cobiça, ou melhorar a sua sorte”.

A justiça então podia ser injusta.
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* Jornalista. Escritor. Prof. Universitário.
Fonte:  https://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/07/11046/justica-ideologia-e-narrativa/ 
Imagem da Internet

segunda-feira, 30 de julho de 2018

Espiritualidade contemporânea


Luiz Felipe Pondé*

Nutro uma desconfiança profunda pela idolatria da vida como prosperidade eterna


A espiritualidade está na moda. Muita gente diz que tem espiritualidade mas não tem religião. Com isso quer dizer que é legal, não é materialista, mas nada tem a  ver com as barbaridades cometidas pelo cristianismo. Se tiver grana, será uma budista light. Aquele tipo de budista que frequenta templo de fim de semana e paga R$ 100 reais para lavar o chão a fim de sentir a dimensão espiritual do trabalho físico.

Poderia lavar de graça o banheiro da própria casa, mas esse banheiro não teria o mesmo valor do banheiro do mosteiro chique. Trata-se de um day temple e não day spa.

Não vou entrar na questão técnica e histórica da relação entre espiritualidade e religião. Mas, sim, é possível uma pessoa cultivar uma busca de sentido na vida para além da banalidade das demandas e rotinas do cotidiano, estando ou não vinculada a alguma tradição religiosa.

O centro da busca é o reconhecimento de tensões nessa rotina que nos fazem sentir um esvaziamento de significado desta mesma rotina, sem necessariamente depender diretamente de conteúdos advindos das tradições religiosas à mão.

Mas um fato é necessário reconhecer, antes de tudo: as formas mais consistentes de busca espiritual estão associadas a temas concretos da vida e não a ET, Jedis, Thor ou bruxinhas de fim de semana.

A espiritualidade nasce da percepção de mal-estar da condição humana e da tentativa de lidar (ou superar esse mal-estar) e não apenas do deslumbramento com a série “Vikings”. Essa busca se iniciou no alto paleolítico quando o Sapiens começou a perceber que havia algo de “errado” em sua condição (sofrimento, insegurança, morte, violência e por aí vai).

Em termos contemporâneos, acho que três tópicos, entre outros possíveis, se prestam a uma inquietação espiritual. Um diretamente ligado ao mundo corporativo, mas que o transcende, outro ao avanço da longevidade, e outro mais derivado do impacto do avanço da inteligência artificial.

As grandes tradições espirituais sempre falaram de sofrimentos reais e não de modas culturais, como no caso que descrevi acima (day temple, Jedis, ET e semelhantes). Um dos temas contemporâneos mais avassaladores é a obrigação de ter sucesso e prosperar. Nesse contexto, repousar é justificado, apenas, se o repouso for causa de maior avanço. 

A pessoa é chamada a ver a si mesma e a sua vida como um recurso a ser explorado e transformado em ganho de alguma espécie. Formas variadas de “coaching” apressados, assim como workshops de fim de semana “ensinam” as pessoas que timidez é pecado, insegurança é “justamente” punida com fracasso financeiro, recusa de escolher o que é “novo” é uma nova forma de doença mental.

Nesse contexto de produtividade opressiva, formas falsas de espiritualidade associadas ao mundo corporativo ou do trabalho crescem como um discurso que daria ao imperativo do trabalhar 24 horas por dia (24/7, como dizem os americanos) uma aura de movimento quântico em direção ao sucesso eterno.

Por isso, qualquer espiritualidade contemporânea deve olhar de forma desconfiada para essas tentativas de associar o sucesso ao universo espiritual. Ou a ideia de que produtividade e eficácia implicam uma melhor gestão do karma.

Se a espiritualidade toca em temas “negativos”, ou seja, nas contradições que somos obrigados a enfrentar na vida, ela não poder ser infantil como essas formas de idolatria do sucesso. Nutro uma desconfiança profunda por quem, o tempo todo, vê a vida como uma empreitada para a prosperidade.
Talvez uma das maiores formas de prosperidade seja a longevidade. Produto de alto valor no mercado das utopias. Palestras de todos os tipos vendem a longevidade como algo que será, um dia, vendido nas prateleiras do free shop. A ideia é de que a morte será eliminada ou adiada 500 anos. 

Do ponto de vista espiritual, sendo a morte um dos temas que mais despertam indagações, a (quase) eliminação dela, ou a transformação dela em “opção”, traria elementos muito significativos para as inquietações humanas. Por que optar por virar pó (morrer) quando você poderia viver pra sempre? É bom mesmo estar consciente de si para a eternidade ou por 500 anos? Temo que não. A primeira reação minha seria uma profunda melancolia e tédio.

Outro tópico avassalador é a entrada da inteligência artificial no universo humano. Aqui a experiência mais assustadora será a da humilhação cognitiva que vamos experimentar. A humilhação sempre foi um alimento espiritual poderoso.
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*Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP. 
Imagem:  Ricardo Cammarota
Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2018/07/espiritualidade-contemporanea.shtml

A elite brasileira e a manutenção do status quo

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Brasileiros ridicularizam mulher durante a Copa do Mundo na Rússia este ano. 
Imagem: divulgação
 
Família, pátria e religiosidade, pero no mucho! Como elite brasileira dá arcabouço teórico para tecermos 
vários comentários sobre ela


“Terra à vista…”, já dizia o vigilante a bordo de uma das naus que, depois de desbravar mares, enfrentar intempéries, aportou em território brasileiro. Terra de muitas palmeiras, onde canta o sabiá, o canário, o pardal, a arara… Esta terra chamada Brasil, e que tanto amamos, tem uma elite bem peculiar, que não raro, acaba por fazer aquilo que não prega, ou prega aquilo que não faz.

Muitas são as obras que trouxeram como assunto principal a formação da sociedade brasileira. Dentre as quais se destacam as seguintes: Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda; Casa Grande e senzala, de Gilberto Freyre, e Formação do Brasil contemporâneo, de Caio prado Junior. Essas não são as únicas que tratam do assunto supracitado, porém, são consideradas como clássicos importantes para se pensar a questão, e que ultrapassaram épocas, influenciando estudantes, intelectuais notáveis e boa parte da elite brasileira.

Esses autores, de maneira geral, trouxeram informações importantes para se pensar a formação do Brasil enquanto país e na construção da sociedade brasileira. Cada qual com sua narrativa, essas obras traçam um panorama histórico desde a chegada dos primeiros desbravadores dos mares em 1500, passando pela transformação sofrida no Brasil com a política colonizadora portuguesa (visando à exploração), refletem sobre a consciência escravista implantada aqui, e que resultou na política estatal escravocrata, até chegar nas tramas no campo da política nacional, causadora de eventos históricos a la tupiniquim.

Fatos históricos à parte, o que ocorre no Brasil, no tocante a participação da elite nacional, vale (no mínimo) uma boa reflexão, quando não, algumas sonoras gargalhadas. Sem mais delongas, vou discorrer a seguir sobre as minhas impressões da nossa elite nacional.

Bom, mantida (na maioria das vezes) pelo Estado, a elite brasileira estende seus tentáculos a todos os poderes da República (não que isso não acontecia na Colônia e no Império). A elite sempre esteve aí, atuando como sempre gostou de atuar, promovendo a si e aos seus, e alargando o antagonismo entres as classes que formam a sociedade, de forma latente, entre as classes operárias e as detentoras dos meios de produção (confesso que procuro não fazer menção a Marx, mas as circunstâncias me levam a citar o velho).

“Aqui plantando, tudo se dá…”, escreveu Caminha ao Rei de Portugal, comunicando, é claro, sobre as condições favoráveis para a agricultura na recém “descoberta” colônia portuguesa na América. E de fato aqui tudo se dá mesmo! Desde tempo outros, à elite se mantém na dianteira da vida social do Brasil. Evocando novamente o velho Marx, quando ele afirma que o Estado é o balcão de negócios da burguesia, a gente percebe o motivo pelo qual a dita elite nada de braçada em uma sociedade claramente dividida entre classes sociais. Uma vez plantada a semente da elite brasileira, dá-se os frutos cada vez mais.

Com o discurso de que quando se quer chegar em um determinado lugar se consegue, mas que nunca precisou enfrentar um gigante por dia como a maioria esmagadora da população, nossa elite tupiniquim, sai ano e entra ano, goza dos mais benevolentes privilégios que o meio oferece. Não obstante o discurso da meritocracia repetido pela elite como mantra, seus membros ainda reivindicam a pertença ao cristianismo, valorizando a família (que eles insistem em chamar de tradicional), o nacionalismo, a moral e os bons costumes.

Foi com este viés até simpático, que boa parte da elite brasileira foi às ruas no início dos anos 60 do século passado, clamando a Deus e ao Estado, que o “espectro comunista” que pairava sobre as cabeças, fosse dissipado; sabemos que este fato, associado a outros, ajudou os militares a tomar o poder, instaurando uma ditadura que perdurou duas décadas, causando terror, morte e muito sofrimento.

A elite que foi à rua pedir a intervenção do Estado, por intermédio dos militares, foi à mesma que se viu horrorizada quando os mesmos botaram pra quebrar, principalmente depois do Ato Institucional número 5. Nesta hora, a elite botou o rabinho entre as pernas e fez o seu famoso silêncio de cúmplice, até por que, poucos foram os quadros da elite que sofreram perseguição dos milicos.

Dando mais um salto histórico, e chegando até nossos dias, venho observado às manobras da elite para se manter no poder, não apenas econômico (como sempre foi), mas também no âmbito cultural, ou seja, ditando o comportamento que eles julgam adequados no discurso, mas não confirmado na prática. Me valho aqui de três fatos recentes ocorridos no Brasil, que é a mais acabada expressão de como a elite é uma senhora vetusta, que está fazendo hora extra no cenário nacional. Vamos a eles.

Posso começar narrando os fatos anunciados, partindo do forjado processo de impedimento da presidenta Dilma Rousseff, há dois anos. Lembro-me de como o país foi levado a uma divisão desnecessária e irreal, incitado por setores da elite nacional, que controlam mais de 80% dos meios de comunicação de massa. Era claro que a elite estava bancando a campanha de desmoralização da presidenta, com o discurso de fundo contra a corrupção e para extinguir o câncer maior, no julgamento destes, que ameaçava o Brasil, qual seja, o perigo do comunismo.

Manifestantes usaram camisas sa seleção brasileira de futebol em protestos contra a então presidenta Dilma em 2016 na Avenida Paulista. 
Foto: Rovena Rosa / Agência Brasil
Alegaram que o Partido dos Trabalhadores é comunista (algo que o PT nunca foi – Cf. Luís Inácio Lula da Silva: um animal político, esculpido e acabado) e, por isso, era preciso retirar quem estava no poder e restaurar a ordem em nome da pátria, de Deus e da família brasileira.

Essa mesma elite que entoava cânticos patriotas e de louvação à família, e brindava com champagne nas ruas deste país, promoveu um circo de horrores ao retratar a presidenta em uma figura de pernas abertas na lataria de alguns carros, dando a impressão que, ao colocar o combustível no veículo, o frentista do posto estava introduzindo a ponta da mangueira que leva o combustível da bomba ao veículo, para dentro da presidenta, pela sua vagina. Sem falar dos muitos xingamentos que dirigiram a Dilma. Isso, veja você, promovido pelos defensores da família dita tradicional!

Isso posto, vamos aos fatos que me valho aqui. Quem não viu ou leu alguma coisa sobre o cancelamento da exposição “QueerMuseu”, no Santander Cultural em Porto Alegre?! A elite nacional, representada por um grupelho de protofascistas de São Paulo, travou batalha conta a exposição, alegando que feria a moral e os bons costumes, além de incitar a zoofilia e a pedofilia. Depois de uma enxurrada de manifestações contrárias nas redes sociais, o mantenedor do espaço achou por melhor cancelar a exposição.

Outra intervenção da elite brasileira em algo relacionado com expressão cultural foi a não menos barulheira feita por ela, por conta de um vídeo que foi amplamente compartilhado nas redes sociais. Em uma sala fechada e sinalizada do Museu de Arte Moderna de São Paulo uma criança, acompanhada pela sua mãe, toca em um homem nu, que representava ali uma peça de uma exposição famosa nos anos de 1960, da artista Lygia Clark.

Os defensores da família, da moral e dos bons costumes, faltaram pegar em espadas, adagas e lanças, como no tempo das Cruzadas, para expurgar os “pedófilos” de plantão. Fizeram até uma campanha apelidada de: “deixem minhas crianças em paz”, desde que as crianças sejam brancas de classe média (as da elite), porque as crianças negras da periferia ainda convivem com cenas que mais parecem de outro mundo!

Convidada para proferir palestras em um evento, em parceria com a Universidade de São Paulo e a Universidade de Berkeley, a filósofa estadunidense Judith Butler foi alvo de protesto em frente ao SESC Pompéia e no aeroporto de Congonhas. Os manifestantes contrários a presença da professora, e uma das mais respeitadas pesquisadoras de estudos sobre questão de gênero no mundo, alegavam que ela não deveria estar no Brasil, divulgando suas ideologias nefastas (como se a sexualidade humana fosse algo ideológico).

Manifestantes queimam boneco que representava a filósofa Judith Butler. Foto: Tiago Queiroz/Estadão Conteúdo
Esses são os fatos que escolhi para trazer neste texto, mas não foram os únicos promovidos pela elite defensora da família brasileira. À primeira vista, os desavisados de plantão podem embarcar nesta onda, afirmando que as manifestações foram justas e precisam de apoio da população, mas, por dois motivos eu refuto veementemente esta linha de raciocínio, isso por que: a) a Constituição garante a liberdade de expressão para todos os cidadãos brasileiros; b) as atitudes farisaicas da elite, ou seja, “faça o que eu falo, mas não faça o que eu faço”, me faz manter uma distância segura dela.

A mesma elite que gritou contra o que eu trouxe de exemplo neste texto esteve (representada) na noite do último dia 7 de abril em frente ao um famoso bordel de luxo na cidade de São Paulo, conhecido como “Hotel Bahamas”, de propriedade do impoluto Oscar Maroni, que fora condenado por manter um estabelecimento que facilitava a prática de prostituição, mas que fora solto por falta de provas (é pra rir ou não?!).

Na calçada do estabelecimento, sob dois ícones que traziam um juiz da 13ª Vara Federal em Curitiba, e da presidente do Supremo Tribunal Federal, o citado senhor despia uma de suas funcionárias, sob o olhar atento e cheio de volúpia dos espectadores, além de cerveja liberada gratuitamente para a rapaziada. Isso em comemoração à prisão do ex-presidente Lula.

Durante a Copa do Mundo de futebol, na Rússia, a elite (também representada) por distintos senhores, pais de família, trabalhadores, que lutaram contra à corrupção, levaram uma mulher (de origem não conhecida), a repetir em português (língua que ela não domina), que a vagina dela, supostamente deveria ser rosa. Isso causou revolta nas redes sociais. Mas, sabe como é a elite, né?, cheia de influência. Teve quem viesse na defesa dos senhores, alegando que tudo não passou de brincadeira, zoação. Imagina se no lugar dessa mulher estivesse uma filha, uma esposa, uma irmã, uma mãe de algum deles. Será que a brincadeira teria graça?!
É importante ressaltar que no caso da Copa do Mundo, muito mais do que a elite passando vergonha e sendo ridícula, aquela atitude não é exclusividade da dita, mas sim de machistas! Me referi a elite nesse caso, pois não é todo mundo que dispões de no mínimo 10 mil reais para ficar desfilando em outro país durante um evento com a envergadura de uma Copa do Mundo.

Como se vê (e se lê), a elite brasileira dá arcabouço teórico para tecermos vários comentários sobre ela. Às vezes, confesso, me dá “ranço” de ver algumas atitudes, ler alguns comentários por parte de membros da mesma, mas logo recobro a sobriedade e recorro aos meus alfarrábios para consultar as grandes cabeças que já passaram por este mundo e me servem de guia para a caminhada sem conflitos belicosos. E para finalizar este texto, parafraseando o sociólogo e escritor Jessé Souza, a elite brasileira é de fato tola e vive em um imenso atraso!
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*  Poeta, bibliotecário, estudante de Ciências Sociais na UFRJ e mestrando no em Biblioteconomia – PPGB/INIRIO; Pesquisa sobre competência informacional, empoderamento do indivíduo, relações sociais, biblioteconomia social, sociedade e costumes, questão de gênero e educação. Colabora de forma permanente com a Biblioo.
Fonte:  http://biblioo.info/a-elite-brasileira-e-a-manutencao-do-status-quo/

sábado, 28 de julho de 2018

Isenção, neutralidade, imparcialidade

Juremir Machado da Silva*
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Teoria da isenção

Como certos filósofos que passam a vida tentam resolver questões inconclusas desde Platão, eu, por excesso de ócio, decidi superar alguns impasses e polêmicas da mídia. Quero que na minha lápide escrevam: “Resolveu o problema da imparcialidade em jornalismo”. Claro que deixo esse elogio para o túmulo por ser modesto e discreto. Não quero louros em vida. Que venham as rosas da posteridade. Obrigado.

Durante muito tempo se sustentou que a obrigação do jornalista era ser isento, imparcial, objetivo e neutro. Ninguém duvidava da possibilidade cognitiva de se realizar tão nobres ideais. Depois, tudo se inverteu. Tudo isso passou a ser considerado um mito. Há quem diga que filme de ficção e documentário são iguais: recortes, seleções, edições, enquadramentos, angulações, escolhas. Contradições pululam. A esquerda é a primeira a declarar que a imparcialidade é impossível. Mas volta e meia cobra imparcialidade da Veja e da Rede Globo. Teóricos quebram a cabeça para mostrar as diferenças entre esses conceitos. O leigo simplifica com razão: usa-os como sinônimos. Ser neutro, imparcial, isento e objetivo significa não ser tendencioso.

O tendencioso distorce os fatos consciente ou inconscientemente por fazer parte de uma tendência. Por ter lado. Eu acredito em imparcialidade, isenção, objetividade e neutralidade. Defino objetividade negativamente: faculdade de neutralizar a subjetividade. Imparcial é quem não é parte. Como, em tese, um juiz. Não é parte, não tem lado prévio, mas toma parte, ou seja, posiciona-se a cada vez conforme os dados disponíveis, evidências, indícios, provas e situações concretas. Avalia, julga, sentencia, escolhe. Se há um estupro provado, condena-se o estuprador. Se há uma injustiça evidente, denuncia-se quem a comete. Neutralidade é ponto de partida. A isenção é a disponibilidade para a prática da independência.

Ser imparcial não é impossível intelectualmente falando. Mas, além de difícil e de pouco praticado por quem deveria, é sempre pertinente? A quem interessa isso? Diante de uma injustiça deve-se tomar parte ou permanecer alheio? A esquerda considera imparcial quem diz o que ela pensa. A direita tem por imparcial quem ataca a esquerda. Pode-se ter lado e não ser tendencioso conscientemente. Basta que se pratique a honestidade intelectual. Um jornalista de opinião obviamente não pode ser parte, mas deve se posicionar. A partir de quê? Do seu livre entendimento, da sua consciência. Se é pênalti contra o seu clube do coração, deve dizer sem hesitar.

Independência implica ser capaz de frustrar todos os lados. No meio da polêmica dominical sobre a soltura de Lula, disparei uma fórmula que transbordava independência e provocação: “A direita prende sem provas. A esquerda solta sem competência”. Não sou parte. Posso desagradar a todos. Sempre consigo. Sou chamado de isento por quem concorda com minhas posições. Sou rotulado de parcial por quem discorda de mim. Os mesmos que afirmam a impossibilidade lógica da imparcialidade chamam de isentão quem não se decide, ainda que momentaneamente, por uma parte. Jornalista não é parte. Faz parte.
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* Jornalista. Sociólogo. Escritor. Prof. Universitário PUCRS.
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/07/11040/isencao-neutralidade-imparcialidade/

quarta-feira, 25 de julho de 2018

PAUL AUSTER: O VELHO E O MARASMO

No arrastado '4321', Paul Auster sucumbe à intoxicante influência de Hemingway e prova que grandes romances americanos têm pouco a ver com romances grandes

Por Maicon Tenfen 


É difícil encontrar um romancista americano que escape à angustiante influência de Ernest Hemingway, mesmo entre os que não veem problema em pegar carona nas modinhas do nosso tempo e encher as suas narrativas de truques pós-modernosos. É o caso evidente de Paul Auster. Desde os primeiros livros, o autor de A Trilogia de Nova York esperneia contra a sombra do mestre e luta para fazer o oposto simétrico do que pressupõe a cartilha do — atenção para o apelido — Papa Hemingway. Esse repúdio ao estilo de antecessores patriarcais foi chamado de daemonization pelo crítico literário Harold Bloom, que relacionou o ato à figura de linguagem “hipérbole”, expressão do exagero. Conclusão? Mais uma rebeliãozinha edipiana chega ao clímax com a publicação do novo romance de Auster.

Começando pelo tamanho, tudo é exagerado em 4321. A obsessão de deixar para a posteridade o grande romance americano fez com que Auster imaginasse quatro vidas distintas para um mesmo personagem, Archie Ferguson, baby boomer no­va-iorquino que passa por múltiplos processos de amadurecimento enquanto o seu país reluta em amadurecer. O assassinato de Kennedy, a luta pelos direitos civis, a Guerra do Vietnã, tudo é acompanhado por um dos Ferguson, e é por isso que certos fatos históricos podem ser contaminados pelas realidades alternativas em que vive o protagonista. Com exceção desses momentos em que o pano de fundo histórico fica sozinho em cena, a leitura de 4321 vai aos poucos se transformando num teste de resistência. Para chegar à última página, é preciso vencer os infindáveis episódios em que o personagem se regala diante das mínimas coincidências para atribuir significados a um cotidiano que não faz muito sentido.

 
Papa difícil – Hemingway: fantasma que assombra autores americanos (
Kurt Hutton/Picture Post/Getty Images)

Os romances de Auster normalmente têm origem em questionamentos sobre o poder do acaso e da linguagem: e se eu tivesse outro nome no documento de identidade, a minha vida seria diferente? Obras mais vigorosas, como Leviatã e O Livro das Ilusões, dão verdade ficcional às possíveis respostas porque apostam na elipse e na sutileza, ou seja, ainda utilizam a Teoria do Iceberg de Hemingway, que pressupõe a omissão de certos detalhes — ainda mais se forem óbvios — para convocar o leitor à coautoria da obra. O gelo que vemos na superfície do oceano é o texto do qual se depreende a massa submersa. Em 4321, no entanto, Auster consegue a façanha de virar o iceberg de ponta-cabeça e inflacionar o relato com absolutamente todos os pormenores desnecessários que cercam a vida de Ferguson, ou melhor, as vidas, quatro, tornando as coisas mais lentas e redundantes.
Tudo no romance é quantificado com uma obviedade que afasta o leitor de qualquer contribuição criativa. Conhecemos as minúcias do primeiro namoro de Ferguson, inclusive o número de cartões-postais trocados durante o rompimento, depois conhecemos as minúcias do segundo namoro, e também do terceiro, sem que nada seja novo o bastante para fazer a história dar um passo à frente. Trata-se de um romance de formação em que o herói não aprende nada porque está ocupado demais com a lição de casa. De repente o leitor se dá conta de que as miudezas existenciais de mais três Ferguson devem preencher o resto do tijolo, que começa a pesar. Se o objetivo de Auster foi realçar, por meio da leitura, a morosidade de quatro cotidianos descritos em detalhes, então ele merece congratulações.
 
4321’, de Paul Auster (tradução de Rubens Figueiredo; Companhia das Letras; 
816 páginas; 89,90 reais e 39,90 reais na versão digital)

Existe a esperança de que a disposição das vidas paralelas de Ferguson preencha as entrelinhas de subentendidos capazes de conferir um valor mais robusto à obra — afinal de contas, por que alguém escreveria quatro versões do mesmo livro sem que elas se alimentassem mutuamente? A verdade, porém, é que 4321 forma um conjunto de vasos comunicantes que pouco dialogam entre si. Em mais uma molecagem contra a cartilha do Papa, Auster se vale de um narrador intruso que tudo sabe e tudo vê, que em vez de “mostrar” se limita à facilidade de “contar” as situações e que chega ao cúmulo de explicar, nas últimas páginas, a piada que abre o livro. É como se estivéssemos diante de um mau romance do século XIX, algo lastimável para um autor que já havia encontrado soluções mais gratificantes para o problema da angulação.

Não se pode dizer que uma daemonization como a de Auster contra a escola Hemingway seja de todo má, mas ele poderia ter aprendido com o autor de O Velho e o Mar que grandes romances americanos têm pouco a ver com romances americanos grandes.
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Publicado em VEJA de 18 de julho de 2018, edição nº 2591
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