sábado, 14 de julho de 2018

Guerrilha jurídica e ideológica

Juremir Machado da Silva*
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      Parece existir uma lei universal implícita, como alguns imaginavam ser a dialética hegeliano-marxista, regendo os comportamentos extremos da humanidade. Podemos chamá-la provisoriamente de Lei da Extrema Reversão (LER). Tudo precisa ter uma sigla para fazer mais sentido. Pela LER cada coisa é relida pelo avesso toda vez que o oposto se consagra. Como todo enunciado que se preze, o da LER tem algo de abstrato enquanto exposição de princípio. Na prática, é simples: quando um extremo se impõe, a sua negação fermenta até neutralizá-lo. Não se deve confundir a LER com a novelesca ideia de que para tudo há um troco. Uma sutileza as separa.

 Nada em nossa cultura acadêmica e jornalística se sustenta sem uma boa citação. A autoridade se expressa pelo nome do citado. O campo jurídico cultua as autoridades até com certa ingenuidade. A autoridade paira acima das leis. Umberto Eco detectou o princípio da LER ainda que não a tenha constituído como ideia universal. Segundo ele, “num grupo em que se difundisse a técnica da falsificação desagregadora, seria restabelecida uma ética da verdade muito puritana. A maior parte (para defender as bases biológicas do consenso) se tornaria fanática da ‘verdade’ e cortaria a língua até a quem mentisse pelo gosto de utilizar uma figura de retórica. A utopia da subversão produziria a realidade da reação”. Contra o falso, o excesso de verdade. Contra a retórica da humilhação, o politicamente correto. O jogo se multiplica.

Seria possível falar, por exemplo, de LER em relação ao campo sexual. Contra o assédio masculino, o fim da sedução. Essa proposição, porém, dificilmente seria aceita e provocaria uma reação típica de reversão, confirmando sua pertinência pela impertinência extrema. Ela seria considerada machista e apontada como uma tentativa de relativizar a violência masculina contra a mulher. Catherine Millet, a famosa escritora francesa que entrevistei na última segunda-feira para o Caderno de Sábado desta edição, assinou manifesto contra o “#MeToo” em nome do direito de seduzir correndo o risco de “importunar” e de levar um não que seja recebido como não e nada mais. Citar Catherine Millet remete para a autoridade da citação. Mas não resolve a questão.

As citações nunca resolvem as questões. Não passam de jogos retóricos de intimidação ou defesa. Usa quem pode, decodifica quem consegue, reclama quem não faz parte do clube. É um jogo para iniciados. O juiz Sérgio Moro já citou os ex-presidentes norte-americanos Lincoln e Roosevelt, Batman e o Homem-Aranha, a Operação Mãos Limpas, Don Corleone e juristas de vários países. O trabalho do juiz da Lava Jato é um caso típico – um “case”, em inglês pesa mais – de LER. Contra o excesso de recursos, um método expedito. Contra a impunidade por prescrição, a punição imediata como prescrição.

No campo jurídico, durante muito tempo predominou a ideologia positivista. Cabia julgar conforme a letra fria da lei. Disso resultava quase sempre julgamento em favor dos poderosos. Ao longo da escravidão, julgava-se em favor dos donos de escravo. Quem ajudasse um escravo a fugir incorria nas penas da lei. Esse universo togado por evolução sofreu um impacto da LER. Se a letra fria da lei engessava os julgamentos e produzia injustiças que a sociedade não podia mais admitir, abriu-se espaço para a hermenêutica e o juízo interpretativo das leis. Uma mudança de paradigma de grau nove na escala Richter.

Façamos uma leitura mais frontal dessa inversão. Durante muito tempo, progressistas, humanistas e esquerdistas, atributos normalmente concentrados numa mesma pessoa por autoelogio, reclamaram mais interpretação e menos aplicação literal das leis. Por óbvio, o campo oposto privilegiava a literalidade da lei contra o subjetivismo e o uso ideológico, o que era uma forma ideológica de objetivar a subjetividade dos poderosos. Ultimamente, como todos sabemos, a LER reverteu a reversão. A esquerda pede mais literalidade e a direita grita em defesa da interpretação. Os antigos positivistas viraram hermeneutas. Os interpretacionistas e ativistas jurídicos tornaram-se neopositivistas. Como o neopositivismo também já foi corroído pela LER, fala-se em pós-positivismo ou em perspectivismo pós-moderno.

O precipitado brada: “Incoerência”. O teórico pondera: efeito necessário da LER. Contra a falsificação, uma verdade integral. Realidade da reação. A cada época a sua necessidade de modulação. Os mesmos que aplaudiram a decisão do STF a favor dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo, contrariando o texto constitucional, exigem respeito à Constituição no que se refere à presunção de inocência. Estou entre eles. Pode ser uma contradição. Pode ser uma modulação. Num caso, a decisão parece estender direitos sem prejudicar terceiros, salvo nas suas convicções ou preconceitos. No outro, restringe. A LER é assim. Põe todos em contradição em busca de um novo parâmetro provisório. “I YOOOO, SILVER! Avante!!! Vamos, Tonto”. C’est la vie.
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* Jornalista. Prof. Universitário. Escritor. Sociólogo.
Fonte:http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/07/11012/guerrilha-juridica-e-ideologica/
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