sábado, 21 de julho de 2018

Sartre e Camus na mesa de bar

Juremir Machado da Silva* 
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      Éramos jovens. As nossas preocupações giravam em torno de questões simples como as estações do ano: saber se teríamos dinheiro para o Restaurante Universitário ao meio-dia, decidir quem era mais bonita, Anete ou Carmem, mudar o mundo em discussões no bar do Maza e escolher um lado com argumentos extremos, o de Jean-Paul Sartre ou de Albert Camus. Sim, no começo dos anos 1980, na faculdade de História, andávamos com livros dos existencialistas franceses embaixo dos braços e fazíamos longos debates – ou seriam embates? – sobre o que líamos:

– Não tem nem graça, ora essa.

– O que não tem nem graça, tchê?

– A diferença entre Camus e Sartre.

– Ah, vai me dizer que Camus é melhor?

– Vou mesmo. Dá de relho no Sartre.

– Não vai querer me convencer que “O Estrangeiro” é melhor que “A Náusea”, vai? Esse Camus precisaria ter comido muito feijão na vida para fazer uma obra-prima como essa do Sartre. Vai por mim, cara.

Como era bom ter tantas certezas apesar do pouco, ou nenhum, dinheiro no bolso e da falta de pressa para arranjar um emprego. Tínhamos a ferocidade da quase adolescência, a liberdade dos que nada têm a perder, a sensação de eternidade dos vinte anos e o desconhecimento dos intermediários da arte que permite a tomada de posição sem entraves. Ricardo, nosso amigo que infelizmente partiu cedo desta para talvez alguma outra, ficava horas em silêncio tomando seu martelinho de cachaça com limão, que chamávamos de pingado, ouvindo as discussões. De repente, soltava um grito, um urro tremendo:

– Eu odeio Sartre.

Ficávamos atônitos por um segundo. Sabíamos o que viria, mas ainda assim sentíamos o choque. Como podia ser tão atrevido? Como se permitia soltar tamanha blasfêmia? O segundo grito era terrível:

– Eu odeio Camus.

Ricardo amava Henry Miller, Charles Bukowski e Robert M. Pirsig. “Zen e a arte da manutenção de motocicletas” era talvez o seu livro predileto. Às vezes, acordo no meio da noite a ainda me pergunto:
– Ricardo odiava Sartre e Camus ou apenas nos provocava?

Uma tarde de verão regada à cerveja, o que significava fartura de meios obtido nalguma viagem ao interior ou generosidade de algum tio, subi na mesa, com o Maza, o dono do bar, mergulhado na sua banheira instalada no pátio, à sombra de uma árvore, e recitei:

– Ei, rapaziada, segurem esta se for possível: “Algo me aconteceu, não posso continuar duvidando. Veio como uma doença, não como uma certeza ordinária nem como uma evidência. Instalou-se pouco a pouco, eu me senti estranho, algo incomodado, nada mais…”

– Isso me dá náusea – berrou Ricardo.

Maza tapou a cara com o chapéu para não ter de impor a ordem. Ricardo foi até ele, tirou-lhe a cobertura do rosto e perguntou:

– Sartre ou Camus?

O calejado dono do bar saiu-se da melhor maneira possível da enrascada. Deu a resposta que até hoje me faz rir de felicidade:

– Cerveja de graça para a gurizada.

A gente lia. Nem sempre o que os professores pediam. Éramos existencialistas atrasados e tropicais. Houve quem virasse, certa época, “dark”, uma tribo que andava de preto no Bom Fim e fazia ar blasé. Cheguei a pensar nessa conversão, mas não tinha roupa preta nem dinheiro para comprar. Numa sexta-feira à noite, no Maza, fizemos uma espécie de seminário sobre Sartre e Camus. Lia-se um trecho de “A Náusea” e outro de “O Estrangeiro”. Em seguida, quem quisesse explicava e defendia as qualidades de um dos fragmentos e atacava o outro. Foi um dos melhores debates da minha vida. As regras eram flexíveis. Eu defendi Camus. Havia um viés não literário em nossa divisão: os marxistas ficavam com Sartre; os anarquistas, com Camus.

Quando penso nisso, sou tomado pela nostalgia. Ricardo poderia ter sido um grande escritor. Foi, entre nós, o mais existencialista e o mais livre. Só tinha compromisso com a sua inteligência. Sempre o imaginei escrevendo romances com algo de Camus, Sartre, Miller, Bukowski e Pirsig. Um existencialismo desabusado, safado, sexual, desbocado, irreverente, histórias de um anarco-marxista em busca de um porto onde atracar para beber mais uma cerveja e pegar alguém para uma noite a ser vivida como se fosse a última. “A Náusea”, de Sartre, foi publicada há 80 anos. Será que o livro ainda é lido nos bares?

Eu me lembro com saudades do que fomos e nunca mais seremos pois entramos na idade da razão. Será que um guri de cabelos compridos sobe nalguma mesa e grita: “Cai a tarde, acendem-se, na cidade, as primeiras luzes. Santo Deus! Como a cidade parece natural, apesar de todas as suas geometrias, como parece prostrada pela tardinha! É tão… tão evidente, daqui! Serei acaso o único a percebê-lo? Não haverá em mais parte nenhuma outra Cassandra, no cume dum outeiro, olhando para uma cidade a seus pés, sumida ao fundo da natureza? De resto, que me importa? Que poderia eu dizer-lhe? O meu corpo, muito brandamente, vira-se para leste, oscila um pouco, e põe-se a caminho”.
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* Sociólogo. Jornalista. Prof. Universitário. Escritor.
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/07/11029/sartre-e-camus-na-mesa-de-bar/
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