quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Pode-se ‘aprender a aprender’ sem aprender coisa alguma?


Nuno Crato

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A partir de experiências clássicas desenvolvidas nas últimas décadas, a psicologia cognitiva concluiu que as capacidades não podem ser adquiridas independentemente das matérias concretas estudadas.

Por ocasião do seu doutoramento honoris causa na Universidade de Lisboa, António Guterres fez um discurso que teve grande eco na imprensa. Mas entre aquilo que foi destacado nas notícias e nos títulos apareceram afirmações sobre educação que julgo deverem ser lidas com algum sentido crítico. Disse, por exemplo, que “o que fundamentalmente hoje interessa nas universidades e no sistema educativo não é tanto o tipo de coisas que aí se aprende, mas a possibilidade de aí se aprender a aprender”.

Será que isto se pode dizer, e de forma tão geral? Na realidade, o “tipo de coisas que se aprendem” tem a sua importância. Muita importância!

Gostaria algum de nós de ser tratado por um médico que, na universidade, tivesse aprendido Literatura Germânica, não tivesse prestado grande atenção à Anatomia nem à Histologia, mas que tivesse sido fantástico a “aprender a aprender”? Gostaria algum de nós de andar num avião mantido por uma equipa de mecânicos que, na sua escola de formação técnica, tivessem estudado Anatomia Patológica, nada sobre motores nem sobre aeronáutica, mas que fossem extraordinários a “aprender a aprender”?

Exagero? Pensemos na mensagem que, no limite, se está a transmitir aos estudantes: aprendam a aprender, não interessa tanto o que aprendem. Não parece uma mensagem feliz.

Mais à frente, Guterres afirmou que tem netas com menos de dez anos e disse que “o seu êxito dependerá essencialmente das oportunidades de educação que vão ter, da capacidade que lhes derem para serem capazes de se adaptar à mudança, de desenvolver novas formas de intervenção na sociedade, novas atividades profissionais.”

Julgo que todos estamos de acordo. Mas em seguida acrescentou: “seguramente, os conteúdos concretos que vão ter na escola vão estar completamente ultrapassados quando exercerem as suas atividades profissionais ou outras formas de intervenção na sociedade.”

Ser-me-á permitido discordar? Façamos então um pequeno exercício mental: pensemos no que aprendemos na escola (no meu caso há várias décadas…), ou pensemos no que hoje se aprende: aritmética, geometria, história de Portugal, história mundial, português, inglês, geografia, ciências, etc., etc. De tudo isto, qual é a fração que será ultrapassada? 99%? 50%? 10%? Eu arriscaria dizer que, mesmo que 50% estivessem ultrapassados, valeria a pena ter estudado para saber os outros 50%. Mas arrisco mais: direi que talvez apenas 1% do conhecimento que adquirimos na escola estará ultrapassado; “completamente ultrapassado”, talvez nem metade disso.

Repito: não devemos passar nenhuma mensagem de desprezo pelos “conteúdos concretos”.

Vou citar Larry Sanger, fundador da Wikipedia, certamente alguém à frente do seu tempo: “as capacidades específicas necessárias para o mundo do trabalho eram, e em larga medida continuam a ser, aprendidas no próprio emprego. Então vejamos, o que terá sido para mim mais útil aprender em 1985, quando tinha 17 anos: todos os processos e truques do WordPerfect [processador de texto então em voga] e do BASIC [linguagem de programação muito usada na altura] ou a História dos Estados Unidos? Não há que haver dúvidas: o que aprendi sobre história mantém-se aproximadamente o mesmo, sujeito a algumas correções; as competências de WordPerfect e de BASIC deixaram de ser necessárias”.

A conclusão é simples: há matérias – “conteúdos concretos” – que perduram. E quanto mais universais e mais antigas mais deverão perdurar. Ou seja, quando eu tiver a sorte de ter netos, que espero vir a ter, vou dizer-lhes “aprendam matemática, aprendam história, aprendam geografia, aprendam literatura, aprendam línguas, pois esses conteúdos concretos não vão estar ultrapassados quando exercerem as vossas atividades profissionais ou outras formas de intervenção na sociedade”.
Mas o problema é muito mais vasto. Prometo a mim mesmo uma outra crónica para breve. Adianto apenas dois resultados científicos sobre a aprendizagem.

Primeiro. Não existe capacidade sem conhecimento específico, ou seja, as ditas “competências gerais” são essencialmente uma invenção. Por exemplo, para a leitura crítica de um texto é essencial ter um vocabulário rico, conhecer o tema discutido – política? história? ciência? arte? – e beneficiar de conhecimento de textos semelhantes ou sobre temas semelhantes. Como diz o educador norte-americano E. D. Hirsch, “a capacidade de leitura, de comunicação, de leitura crítica e tudo o mais são intrinsecamente conhecimento específico. Mais ainda: se tivermos conhecimento do tema em causa e nos faltar apenas a proficiência técnica, teremos mesmo assim um desempenho melhor (na análise do texto e na sua crítica) do que alguém proficiente, mas a quem falte o conhecimento relevante.”

Segundo. A partir de uma série de experiências clássicas iniciadas nos anos 40 do século passado e desenvolvidas nas últimas décadas, a psicologia cognitiva concluiu que as capacidades não podem ser adquiridas independentemente das matérias concretas estudadas. O pensamento crítico, o “aprender a aprender”, a capacidade de análise lógica não existem independentemente dos “conteúdos concretos”. Como explica o cientista cognitivo Daniel T. Willingham, “o pensamento crítico (tal como o pensamento científico e outro pensamento específico) não é uma capacidade. Não há um conjunto de capacidades de pensamento crítico que possam ser adquiridas e utilizadas independentemente da sua aplicação.”

Conclusão: ‘aprender a aprender’ em vez de aprender, é o caminho direto para nada aprender, nem sequer ‘aprender a aprender’.
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* Nuno Paulo de Sousa Arrobas Crato é um conhecido matemático e estatístico português que tem tido uma extensa atividade de promoção da cultura científica. Conhecido pelas suas crônicas.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

A utopia das redes sociais

 Joel Pinheiro da Fonseca*
 
Imagem mostra logo do Facebook

Imagem mostra logo do Facebook - 20/11/2017 - AFP

É uma surpresa que o resultado dos megafones nas mãos dos indivíduos seja barulho e tribalismo?


Havia um sonho no início da internet: o sonho de uma humanidade mais unida. Com mais facilidade de comunicação, pessoas de lugares distantes interagiriam mais e derrubariam muros. Com um mar de informações disponível a um clique, quaisquer discordâncias seriam facilmente resolvidas. A tecnologia abria as portas para um mundo da união universal pautada pela ciência.

Infelizmente, não foi o que aconteceu. O contato entre pessoas distantes permitiu que aqueles que pensam igual troquem mais figurinhas e articulem ações conjuntas. Ao mesmo tempo, a abundância de informações permitiu que cada narrativa se servisse de dados e exemplos para reforçá-la e aumentar seu poder de persuasão junto a ouvintes indefesos.

Hoje, aquele sonho de internet (um espaço amplo, aberto e descentralizado) se foi; vivemos no enorme condomínio fechado do Facebook, que acelera a polarização. No início dos anos 2000, alguns poucos aficionados por política e cultura discutiam entre desconhecidos em fóruns online sob identidades anônimas. Hoje, as coisas se misturaram: seu manifesto político na rede te dá reputação (ou ódio) entre pessoas que te conhecem.

O Facebook se apresenta como uma plataforma neutra, na qual o sucesso de cada post depende apenas do interesse que ele gera nos usuários. Quanto ao conteúdo ideológico (e excetuando uma política rígida de excluir nudez e possíveis ofensas a algum grupo), ele realmente não faz nenhum tipo de filtro ou controle do que é publicado.

Se mentiras sensacionalistas capturam melhor a atenção dos leitores do que reportagens ponderadas, o que se há de fazer? É a natureza humana. É uma surpresa que o resultado dos megafones nas mãos dos indivíduos não seja imparcialidade e profundidade, e sim barulho e tribalismo?

Para quem se dispõe a ser protagonista da própria busca por conhecimento, a internet foi uma das maiores dádivas da história. Entre jornais e revistas do mundo todo, sites especializados, Wikipedia, blogs com análise de alta qualidade (que jamais teriam espaço na mídia tradicional), interlocutores inteligentes e proximidade com formadores de opinião, a vida melhorou muito. Agora, para quem adota uma postura passiva (infelizmente, a maioria), ficou mais fácil ser enganado e, pior, aumentou a propensão a se fechar dentro de uma bolha ideológica.

Por mais que seja neutra em sua proposta, a plataforma do Facebook, como qualquer outra, pode ser manipulada. Foi o que a Rússia fez (via a "Internet Research Agency", IRA, que serve aos interesses do governo russo), com milhares de usuários falsos e a criação de páginas e posts —compartilhados milhões de vezes— para desestabilizar o debate público americano em 2016.

As páginas criadas pela IRA ocupavam ambos os extremos do espectro ideológico: de ativismo negro a campanha anti-imigração de latinos. A finalidade era sempre a mesma: aumentar o caos para enfraquecer o país internamente. 

Não está claro o tamanho da influência russa. Eu acredito que o processo natural de interação nas redes já leve a esse resultado, com a interferência de agentes externos sendo apenas um acessório. 

No Brasil, nada indica que o governo russo interfira no debate público. Contudo, é curioso notar que, em sua luta sincera pelo que acreditam ser o bem do Brasil, cidadãos convictos e grupos de ativismo político se comportem exatamente da maneira que um inimigo gostaria de incentivar para destruir a nação.
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* É economista pelo Insper, mestre em filosofia pela USP e palestrante do movimento liberal brasileiro. 
Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/joel-pinheiro-da-fonseca/ 27.02.2018

A sociedade hipertecnológica? Não precisa de técnicos, mas de híbridos

 http://www.ihu.unisinos.br/images/ihu/2018/02/26_02_celulares_foto_pixabay.jpg
Serão necessários gestores da complexidade capazes de habitar as fronteiras entre os saberes, buscando oportunidades. Entrevista com Piero Dominici, Professor de Comunicação Pública e Atividades de Inteligência na Universidade degli Studi de Perugia, publicada por Morning Future, 16-02-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.

O futuro será das "figuras híbridas", os "gerentes da complexidade", de quem saberá "habitar o que hoje consideramos como os limites e limitações entre os saberes".

Professor universitário e formador profissional, Piero Dominici ensina Comunicação Pública e Atividades de Inteligência na Universidade degli Studi de Perugia. Há vinte anos está envolvido com as complexidades e a teoria dos sistemas, com referência específica às organizações complexas e as temáticas relativas à educação, inovação, cidadania, democracia e ética pública. É Diretor Científico do Complexity Education Project, coordena um blog sobre Nova em Il Sole 24 Ore, intitulado "Fora do Prisma".

Aqui estão os seus conselhos sobre o que os jovens deveriam esperar das escolas, universidades e, em geral, das instituições de educação e formação. Começando por aqueles que estudam ciências da comunicação.

Eis a entrevista.

O Fórum Econômico Mundial afirma isso há tempo, mas agora o conceito tornou-se dominante: 65% das crianças que estão no primário, "quando crescerem" estarão envolvidos em algum trabalho que hoje não só não existe, mas que nem sequer podemos imaginar. Neste cenário, no qual as competências e os conhecimentos rapidamente tornam-se obsoletos, o que devem buscar os jovens para sua formação?
A reflexão básica é que os jovens deveriam primeiro encontrar, descobrir e viver suas paixões. Não dos seus interesses, mas realmente das suas paixões, daquilo que aquece o coração, aquilo que quando você fica trabalhando até tarde te faz sentir bem e quase não te causa cansaço. Devemos ter a coragem de ir além da visão enganosa que nos impulsiona a sempre ter que encontrar a utilidade em tudo o que fazemos, mesmo no que diz respeito ao nosso crescimento e amadurecimento pessoal e intelectual. As paixões precisam ser descobertas, estimuladas, suscitadas e afloradas com um percurso educacional que deve começar nos primeiros anos escolares, que saiba como vincular razão e imaginação, pensamento e emoções, muitas vezes removidos dos trajetos educacionais e de formação. Tudo isso implica naquela que é - em minha opinião - uma questão de crucial importância, embora muito subestimada: redescobrir o valor da autenticidade e voltar para uma educação da autenticidade. Podem parecer dimensões desvinculadas com o tema do trabalho, mas é exatamente o oposto.

Por que este discurso pode parecer à primeira vista um tanto genérico ou de valores, mas é crucial em relação ao tema do trabalho?
Porque nós somos pessoas, ou seja, sujeitos de relação antes que trabalhadores, cidadãos e consumidores. Na base de todo o nosso discurso, existe a necessidade urgente de recuperar as dimensões (complexas) da complexidade educacional, na perspectiva sistêmica de uma educação sócio-emocional. Sobre esse ponto, teríamos muito a falar, inclusive sobre a ausência de uma "verdadeira" orientação e de políticas de orientação, capazes de acompanhar os nossos jovens na transição da escola para a universidade. Em segundo lugar, para dar uma tradução operacional para o que foi dito, é necessário focar em percursos de formação que sejam cada vez mais construídos e projetados com uma ótica interdisciplinar e multidisciplinar, em condições de deixar para trás as velhas lógicas de separação, como, por exemplo, aquela bem conhecida entre as chamadas "duas culturas". Aquelas que hoje são consideradas fronteiras e limites - entre os saberes, entre os conhecimentos e as competências, entre a racionalidade e a criatividade - devem tornar-se brechas, aberturas, percursos e oportunidades. Precisamos cada vez mais de figuras híbridas, de perfis curriculares que possam manter juntas imaginação e racionalidade, criatividade e rigor metodológico, o humano e o tecnológico. É a complexidade da mudança que está ocorrendo, a sua ambivalência, velocidade e imprevisibilidade que nos mostra a inadequação de processos educacionais e de formação atuais, mas também a inconsistência das explicações reducionistas e dos tradicionais modelos interpretativos lineares.

Para tanto como as escolas, universidades, instituições de ensino e formação deveriam mudar?
O discurso sobre os interesses, as paixões, que é capaz de emocionar e estimular a criatividade comporta em repensar sobre os processos educacionais e de formação, no sentido da redescoberta da construção social da pessoa e não apenas do indivíduo. Isso teria repercussões importantes sobre a existência dos jovens, não só no aspecto de trabalho e profissional. Pelo contrário, continuamos a alimentar aquelas que muitos anos atrás eu chamava de "falsas dicotomias", inclusive aquela entre pensamento e emoção: sobre elas continuamos a impostar a educação e a formação, baseando-as sobre uma determinada ideia da racionalidade e da utilidade do saber. Hoje, como nunca antes, é necessário recuperar as dimensões complexas da complexidade educacional: a empatia, o pensamento crítico, uma visão sistêmica dos fenômenos, a educação para a comunicação, além das dimensões que temos deliberadamente removidos, como o imaginário e a criatividade. Isso significa repensar o espaço relacional e de comunicação dentro das instituições educacionais e de formação, revitalizar a educação na perspectiva sistêmica de uma educação que só pode ser sócio-emocional. O "grande equívoco" da educação na civilização hipertecnológica é justamente aquele de pensar que sejam necessárias uma educação e uma formação de natureza especificamente técnica e/ou tecnológica; isso é exatamente o oposto do que temos e teremos desesperadamente necessidade.

Então, quais são os melhores percursos sobre os quais apostar?
Os melhores percursos (não ideais), como resultado, serão aqueles que buscam uma interdisciplinar e multidisciplinaridade. Aqueles, em outras palavras, mais adequados para preparar as pessoas para viver a complexidade atual e futura, aqueles que irão formar, em todos os níveis, mentes críticas elásticas, figuras híbridas, abertas às contaminações entre os saberes e as competências. Figuras e perfis sempre prontos para ver as fronteiras e os limites, seja qual for a sua natureza, como uma oportunidade para crescer e experimentar.

Em seus estudos, você destaca que "na sociedade hiper complexa não são mais suficientes o ‘saber’ ou o ‘saber fazer’: precisamos ‘saber’, precisamos ‘saber fazer’, mas também precisamos ‘saber como comunicar o saber e saber comunicar o saber fazer’”. O quanto é importante a comunicação nos novos paradigmas do trabalho?
E, acima de tudo, qual comunicação? A comunicação importa muito, é quase banal dizer. A nova viralidade da comunicação, entre outras coisas, é um dos elementos que determinou a passagem da complexidade para a hipercomplexidade. A comunicação sempre foi estratégica para a sobrevivência dos sistemas sociais e das organizações, mas hoje é ainda mais porque a sua nova viralidade (que só em parte está relacionada com o aspecto digital) trouxe para fora da "torre de marfim" os saberes, os conhecimentos, as questões que antes eram de domínio exclusivo dos cientistas, dos estudiosos e dos especialistas, destacando a importância estratégica de questões relacionadas com a representação e a percepção dos fenômenos. Temas de fundamental importância para a própria manutenção das modernas democracias. O problema é não ter consciência da importância da comunicação, o problema é reconhecer que a comunicação, ou melhor, uma determinada ideia/concepção/visão de comunicação, deve ser repensada e redefinida, tomando cuidado para não confundi-la com o marketing e muito menos com a conexão.

Basicamente aqui, a comunicação é mais do que apenas uma técnica ...
A comunicação é um processo social complexo de compartilhamento de conhecimentos, não só onde o conhecimento é equivalente a poder (questão muito antiga), uma vez que a comunicação tem a ver com a criação de vínculos de confiança, com o fortalecimento das conexões entre os sistemas e os ecossistemas. Portanto, é importante estar ciente de que os conhecimentos e as competências no campo da comunicação não devem ser ligados exclusivamente com a habilidade técnica de governar instrumentos de comunicação ou de conexão; o problema é tentar governar a complexidade social e organizacional e, ao mesmo tempo, aprender a comunicar as suas numerosas implicações. Isso requer uma atenção especial à dimensão metodológica e àquela de cultura organizacional. Em vez disso, existe o risco muito concreto de que a nossa oferta de formação universitária, no que diz respeito ao papel do comunicador, venha a coincidir substancialmente com a formação de um vendedor ou um formador de opinião, mais ou menos oculto. O ponto principal, em minha opinião, é que não se deve apenas formar para a comunicação, mas também educar para a comunicação.

Você falou acima de figuras híbridas como protagonistas do próximo futuro. Também escreveu que "não podemos mais nos dar ao luxo de formar apenas técnicos e isso justamente porque estamos em uma civilização hipertecnológica": não é um paradoxo?
Não é apenas um paradoxo, é o "grande equívoco" da civilização tecnológica. Precisamos formar cada vez mais "gestores da complexidade", que é uma complexidade social, relacional, organizacional, uma complexidade não passível de objetivação por nenhuma fórmula, capaz de escapar a qualquer processo de redução. As organizações em que vão e irão trabalhar os jovens, são sistemas sociais, nós precisamos educá-los, formá-los e atualizá-los para isso, para viver essa complexidade, que nunca é previsível até o fundo. Ao nível do discurso público, em vez disso se continua a repetir que são necessários (apenas) engenheiros, profissionais das ciências exatas, algumas figuras e não outras; ainda se está pensando em termos de "duas culturas", sobre a falsa dicotomia entre educação humanista e formação científica, algo inacreditável. Precisamos obrigatoriamente superar tais dicotomias.

Qual é o risco de permanecer presos no antigo dualismo entre cultura humanista e técnico-científica?
Continuar a pensar que, para essa civilização hipertecnológica, só sirvam figuras muito preparados para "saber fazer", para "saber como usar", no âmbito de uma dimensão altamente técnica e tecnológica, responde a uma impostação míope que vai nos manter em um estado de perene atraso cultural. Como eu sempre repito, continuaremos a nos contar que a tecnologia é mais rápida que a cultura, como se a primeira fosse algo externo à segunda. Repito: precisamos de figuras híbridas, de gestores da complexidade (uso tal fórmula por conveniência e por síntese), que saibam enxergar oportunidades no que hoje definimos e reconhecemos como riscos, vulnerabilidades, variáveis de uma perigosa desordem, capazes de tornar ainda mais instáveis e inseguros os sistemas e a vida social. Para outros temas e questões muitas vezes se recorre à metáfora das "pontes, não muros", uma metáfora que podemos empregar também nesses contextos. É hora de facilitar a construção de pontes entre os saberes, entre as competências, entre o natural e o artificial (ultrapassando fronteiras), entre os saberes e a vida, entre o humano e o tecnológico. Habitar a hipercomplexidade, não só saber gerenciar/controlar as tecnologias, explorando todo o seu potencial: e há muito mais.
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Fonte:  http://www.ihu.unisinos.br/576411-a-sociedade-hipertecnologica-nao-precisa-de-tecnicos-mas-de-hibridos 27/02/2018

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Demência narcísica

Luis Felipe Pondé*
Ilustração de Ricardo Cammarota para Pondé de 26.fev.2018

No nível radical da doença, ela se revela como uma forma autoimune de demência irreversível

Não é só a febre amarela que está pondo em risco a saúde pública. Há uma outra epidemia em curso que ainda não invadiu a mídia: o narcisismo dos bons.

O fenômeno atingiu níveis epidêmicos. E os órgãos competentes não detectaram ainda os indícios desse quadro clínico. Talvez uma das razões seja que muitos desses órgãos competentes são grandes áreas de risco de contágio.

No passado, as áreas de risco eram mais localizadas dentro de instituições religiosas (não que estas tenham deixado de sê-lo).

Você está tendo dificuldade de entender o que vem a ser essa patologia designada "narcisismo dos bons"? Vou te ajudar.

Antes de tudo, a designação "narcisismo" tem credenciais sofisticadas, mas fiquemos com o seu sentido mais comum: narcisista é alguém que "se acha". Clinicamente, o narcisista é um miserável de autoestima que finge se achar o máximo pra combater justamente a sua miséria interior. Nesse movimento de negação, ele acaba por criar uma persona que tende a supervalorizar a si mesmo. Daí o apaixonar-se pela própria imagem refletida na água.

O narcisismo dos bons é uma patologia moral.

A sintomatologia associada ao quadro não tem apenas efeitos individuais privados.

Se assim fosse, talvez seu dano em níveis epidêmicos fosse apenas para as vidas de seus doentes e pessoas mais próximas. Como uma peste que ficasse localizada num ambiente de quarentena.

Não. O narcisismo dos bons se caracteriza por ser uma peste pública. Seu modo de contágio, já identificado razoavelmente, se dá, justamente, pela contaminação em larga escala da população por meio de instituições de caráter social e político, quando não educativo.

As redes são uma cultura de bactérias poderosa para a reprodução do vírus. A mídia clássica, há muito tempo, já era uma área de risco. Os jornalistas carregam todos os sintomas da patologia há décadas.

A sociedade está, completamente, à mercê dessa epidemia porque, normalmente, quem deveria combatê-la tem, exatamente, a condição do mosquito transmissor. Mas vamos a dados mais objetivos do quadro.

Se você tem certeza de que representa o lado do bem no mundo, é quase certeza de que está contaminado. Se você tem certeza de que seu filho também representa, o risco aumentou muito. Se você tem certeza de que seu cachorro também representa, você está além de qualquer possibilidade de cura. Se você acha que sua bike também representa, não tenho palavras pra expressar minha misericórdia. Se você acha que o restaurante que frequenta é um templo, não sei o que dizer.

Sinto muito por você, seu filho, seu cachorro, sua bike e o restaurante que frequenta.

Melhor procurar ajuda profissional. Cuidado: sua terapeuta pode estar, ela mesma, contaminada.

O fato de haver tantos dramas no mundo que precisam de solução é uma das causas etiológicas da epidemia: a facilidade do contágio está no fato de que muita gente que se acha do bem acaba por conviver. Os efeitos são evidentes. As câmaras de eco dos bons carregam muitos vírus dessa patologia. O mundo da educação, da arte e da cultura são grandes áreas de risco.

O mundo da educação, coitado, luta para manter sua relevância enquanto agente de pensamento, quando, na verdade, está sucumbindo à competição mais violenta ou às modas mais fajutas, sejam elas vindas de setores "naturalistas" da sociedade, sejam elas vindas de setores "algorítmicos" do mundo dos negócios, sejam elas vindas de setores do mundo corporativo que tomou a dianteira na reflexão sobre o futuro por meio de "consultores de futuro".

Já o mundo da arte e da cultura é um caso especialmente interessante. Talvez seja uma das áreas de maior risco entre todas.

O número de pessoas "legais" nesse mundo é infinito. Pessoas "legais" são contaminadas ou "carriers", com certeza, do agente transmissor.

Se um dia você voltar pra casa de uma festa qualquer e tiver certeza de que todo mundo ali representa o bem, o quadro autoimune estará já instalado. No nível mais radical da doença, ela se revela como patologia autoimune que se manifesta como uma forma de demência irreversível.
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* Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião, ciência. Escreve às segundas. 
Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2018/02/demencia-narcisica.shtml

sábado, 24 de fevereiro de 2018

A estatal da maconha

Diego Olivera, Secretário Geral da Junta Nacional de Drogas do Uruguai

Presidente do órgão do governo uruguaio que controla produção, venda e uso da Cannabis diz que legalização é a política de drogas mais segura que existe

23 fev 2018
Diego Olivera, de 38 anos, assumiu o cargo de secretário-geral da Junta Nacional de Drogas (JND) do Uruguai quando a lei que regulava o consumo de maconha no país ainda não havia sido aplicada integralmente. Era junho de 2016, e já fazia três anos que o Parlamento aprovara a medida. O governo não demonstrava muito interesse em adotar um dos aspectos mais controvertidos da lei: a venda de maconha nas farmácias. Um ano depois, Olivera assumiu também a presidência do Instituto de Regulação e Controle da Cannabis, vinculado à JND, e conseguiu que algumas farmácias começassem a vender maconha recreativa a milhares de uruguaios registrados. Atualmente, há 21 559 cidadãos cadastrados. Cada um deles pode comprar até 40 gramas da droga por mês. Além disso, há 8 145 registrados para cultivar até seis plantas de Cannabis em casa e 78 clubes qualificados para fornecer a erva para fins medicinais a um máximo de 45 sócios. “A regulamentação da maconha veio para ficar”, disse Olivera a VEJA na entrevista a seguir.

Até agora, qual lição se pode tirar da legalização da maconha no Uruguai?  Uma das principais lições é que é possível regular o mercado de Cannabis e que isso não leva a uma situação disruptiva da sociedade. Quase 50 000 uruguaios, de diferentes idades e regiões do país, têm acesso à maconha por uma das três vias legais (farmácias, plantio doméstico e clubes especializados). Não ocorreram episódios inconvenientes ou críticos do ponto de vista da segurança nem da saúde pública. Ou seja, a sociedade uruguaia não entrou em colapso por ter regulamentado a maconha. Ao contrário, a imagem que fica é que essa se provou a política mais segura de todas as que se tentaram até hoje. Isso se reflete nas pesquisas de opinião pública. Há seis meses, 70% dos uruguaios eram contra a medida. Hoje, 50% rechaçam a legalização. A proporção ainda é alta, mas percebe-se uma tendência de reversão da percepção negativa. É claro que existem críticas sobre se estamos fazendo as coisas no ritmo adequado, se deveríamos aprofundar o modelo e se o peso regulatório ou de controle do mercado deveria ser mais frouxo. Mas a percepção é que tomamos o caminho certo.

A legalização da maconha reduziu a criminalidade no Uruguai? Neste momento e com os dados disponíveis, ainda não é possível afirmar que houve um impacto direto na queda da criminalidade. A violência social é um fenômeno complexo e estrutural demais para que se possa assegurar que em um prazo tão curto de implementação da lei se obtenha uma diminuição nos crimes. Nesse período, os homicídios caíram, os roubos violentos também, e a violência de gênero se manteve nos mesmos níveis. Paralelamente, houve uma reestruturação da polícia e das políticas de segurança, o que também influencia os indicadores de segurança. Por isso, ainda não é possível isolar o efeito da regulamentação da maconha sobre esses dados.

O que falta para avaliar o impacto da lei? Será possível vê-lo sobretudo na violência associada ao narcotráfico e na quantidade de pessoas processadas por delitos de drogas, que levam a um encarceramento massivo por infrações às vezes pequenas e à superlotação das cadeias. Essas pessoas passam a fazer parte de um ciclo de violência ou da “escola do crime” das prisões e acabam saindo pior do que quando entraram. É o caso, por exemplo, de cidadãos que eram processados por cultivar Cannabis para uso pessoal. Se houver uma queda nos indiciamentos por tráfico, teremos um indicador interessante de como a regulamentação da maconha contribui para a melhoria da segurança pública.


“A política de drogas proibicionista, que exige fortes medidas 
de coerção, fracassou. Em nenhum país 
essa estratégia diminuiu os impactos 
na saúde pública”

A venda de maconha em farmácias fez o crime organizado perder mercado? Graças à lei, algo como 30% dos usuários de maconha não recorrem mais ao mercado ilícito. Isso representa milhões de dólares que deixaram de ir para o tráfico (considerando que o mercado uruguaio de maconha legalizada é de 45 milhões de dólares por ano, o faturamento perdido seria de 13 milhões de dólares). Há, portanto, um impacto econômico real para os traficantes.

A legalização permite diminuir o combate aos narcotraficantes? São coisas distintas. A política de drogas proibicionista, que exige fortes medidas de coerção, fracassou. Em nenhum país essa estratégia diminuiu significativamente os impactos na saúde pública provocados pelo consumo de drogas, muito menos conseguiu vencer de forma clara o narcotráfico. Pelo contrário, o fato de criar um mercado negro — que necessariamente aparece como efeito do proibicionismo — gera um negócio ilícito altamente lucrativo e que é porta de entrada para organizações criminosas. O proibicionismo conduz a uma espiral de violência. Em uma política integral de drogas como a que adotamos no Uruguai, por sua vez, não se descartam as ações de caráter repressivo contra as organizações de tráfico. As medidas regulatórias de produção, comercialização e consumo da droga não substituem as medidas de coerção, mas convivem com elas e devem integrar-se a elas de maneira mais equilibrada. Temos de continuar perseguindo as organizações criminosas, que são cada vez mais polivalentes e incorporam o tráfico, a lavagem de dinheiro, o negócio das armas e a corrupção.

A atenção volta-se para os grandes traficantes? A guerra às drogas, quando aplicada de forma radical, golpeia, fundamentalmente, os elos mais fracos do narcotráfico. É ali que vemos o impacto sobre, por exemplo, as mulheres pobres chefes de família, que se veem empurradas para o tráfico por penúria social ou coagidas pelo entorno e terminam atuando como mulas ou microtraficantes. É assim que vemos a população carcerária aumentar basicamente com pessoas pobres e com um viés racial específico. A legalização da maconha permite mudar a equação, pois faz com que as infrações menores de drogas sejam substituídas pelo aspecto regulatório. Com isso, de fato, as organizações meramente criminais entram no foco das políticas de segurança.

Se a ideia é essa, todas as drogas deveriam ser legalizadas, não? No momento, essa possibilidade não está sendo considerada pelo governo. É de esperar, porém, que, com a regulação da Cannabis, se inicie um debate nesses termos. Mas o mercado de drogas ilícitas é, em grande medida, um mer­cado de maconha. As outras drogas psicoativas têm um peso significativamente menor no consumo (6,5% dos uruguaios são consumidores habituais de maconha, enquanto 0,6% usa cocaína).


“Algo como 30% dos usuários de maconha não recorrem 
mais ao mercado ilícito. Isso representa milhões de 
dólares que deixaram de ir para o tráfico. 
Há impacto real para os traficantes”

Qual é o papel do Estado no mercado de maconha? No esquema uruguaio, o Estado ocupa um papel regulatório central: supervisiona a produção, as movimentações financeiras e a distribuição. Controla até a qualidade dos produtos. Ou seja, é uma regulação exigente, não se trata apenas de criar um mercado liberalizado e deixá-lo andar com as próprias pernas.

Em 2017, das 2 toneladas de maconha apreendidas pela polícia, 17 quilos provinham da flor da planta, um produto de alta qualidade que pode ter saído dos clubes de Cannabis autorizados pelo governo. Como combater esse “mercado cinza” da droga? Considero esse conceito de “mercado cinza” pouco claro e, a rigor, equivocado. Existem atividades permitidas por lei, e ponto. As outras estão proibidas. Também é preciso dimensionar corretamente o fenômeno. Os dados da polícia mostraram que as apreensões de flores só representam 0,9% da maconha do mercado ilícito. Além disso, durante todo o ano de 2017 foram encontradas flores em apenas catorze operações em bocas de fumo. A situação merece nossa atenção, mas neste momento não a consideramos de alta gravidade. Em um processo de transição de um mercado ilícito para um mercado regulado, é de esperar que as coisas não entrem nos eixos da noite para o dia. Ainda estamos fazendo os ajustes para que não haja incentivos a quem queira atuar fora das regras do jogo. Uma maneira de fazer isso é consolidar e expandir o acesso à Cannabis legal, principalmente nas farmácias.

O interesse de turistas pela droga não incentiva o desvio de parte da produção legalizada para as bocas de fumo? O Uruguai tem uma posição muito clara a esse respeito. O acesso dos turistas não está permitido na lei e o governo não tem planos de mudar isso. A regulamentação da Cannabis no Uruguai pretende construir uma alternativa eficiente ao esgotado modelo de guerra às drogas no nosso país. Isso implica a necessidade de prosseguir com cuidado para não afetar os outros países, particularmente os nossos vizinhos que não escolheram seguir o mesmo caminho. Tendo em conta que uma porção importante dos mais de 4 milhões de turistas que o Uruguai recebe anualmente vem de países vizinhos, é essencial manter a nossa recusa em dar aos visitantes acesso ao mercado de maconha.

Uma lei como a do Uruguai poderia ser aplicada no Brasil? Seria muito atrevido da minha parte discutir a situação brasileira. Não tenho elementos suficientes para fazer isso. Por outro lado, em todo o processo uruguaio, desde a discussão da lei até a sua implementação, temos sido muito cuidadosos em ser livres para tomar decisões soberanas e defender essa soberania. Também tivemos a cautela de não entrar na discussão política de outros países. É evidente que a experiência uruguaia tem produzido informação e incentivado o debate nos países vizinhos, e há organizações e políticos que tomaram o caso uruguaio como um exemplo para defender suas posições, mas como governo nós não os incentivamos.

A produção científica uruguaia beneficiou-se com a regulamentação da maconha? Há novidades interessantes. Foram criados cursos de mestrado que não existiam. Agora há unidades acadêmicas dedicadas à política de drogas. Antes, havia somente dois pontos de vista sobre a questão: o jurídico-legal e o médico. Essas duas visões ainda existem, mas hoje também há pesquisas nas áreas de bioquímica, antropologia e sociologia. Com isso, outras profissões que não colocavam o tema das drogas na agenda da pesquisa agora o incorporaram. Na área da saúde, surgiram pesquisas associadas ao uso medicinal da Cannabis. A legalização ajudou nisso, porque antes os pesquisadores não podiam manter um cultivo ou não podiam comprar Cannabis para desenvolver seus estudos. Agora podem.

Com as eleições presidenciais de 2019 no Uruguai, há o risco de volta atrás na política de drogas? Não existem atores relevantes na política uruguaia propondo isso, salvo algumas exceções. Há diferenças de opinião sobre como a regulação deve acontecer ou qual alcance deve ter. As formas de comercialização são a questão mais debatida. Mas não vejo posições contrárias consistentes e que encontrem eco na população. A regulamentação da maconha chegou para ficar.
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Publicado em VEJA de 28 de fevereiro de 2018, edição nº 2571 - Páginas Amarelas
Fonte: https://veja.abril.com.br/revista-veja/a-estatal-da-maconha/

Do Sapiens ao Homo Deus

Juremir Machado da Silva*
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Quando saiu no Brasil “Sapiens” (L&PM), do historiador israelense Yuval Noah  Harari, fui um dos primeiros jornalistas a me encantar. Ninguém falava dessa obra, que ainda não era campeã de vendas entre nós. Escrevi aqui uns seis artigos sobre o livro. Depois, veio “Homo Deus” (Cia. das Letras) e ambos viraram best-sellers também no Brasil. Meu amigo Dr. Alcides Stumpf me presenteou com “Homo Deus – uma breve história do amanhã”, que ele considera ainda melhor do que “Sapiens”. Difícil escolha. Um falava do passado com conhecimento de causa. O outro fala do futuro com muita informação e as inevitáveis especulações. O primeiro era luminoso. O último tem algo de sombrio, de distópico, de assustador, de inquietantemente provocativo.

“Homo Deus” poderia render uma centena de textos. Basta abri-lo aleatoriamente depois da leitura e tem lá uma frase sublinhada para ser comentada. Faço o teste. Caio na página 278. Marquei duas passagens: “Os principais produtos do século XXI serão corpos, cérebros e mentes, e o abismo entre os que sabem operar a engenharia dos corpos e cérebros e os que não sabem será muito maior que entre a Grã-Bretanha de Dickens e o Sudão de Mahdi. Na verdade, será maior do que a brecha entre os Sapiens e os neandertais”. Haverá, como sugere o autor, uma elite de super-humanos e uma massa de humanos “inúteis vivendo como frangos em aviários administrados por máquinas que os conhecerão melhor do que eles mesmos garantindo-lhes bem-estar com a injeção de substâncias corretivas para qualquer deficiência?

A segunda passagem sublinhada nessa página é esta: “Se Marx voltasse a viver hoje em dia, provavelmente incitaria seus poucos discípulos remanescentes a ler menos O Capital e a estudar a internet e o genoma humano”. Será que os “poucos discípulos remanescentes” de Marx passam, de fato, o tempo lendo “O Capital”? Harari, contudo, quer dizer apenas que o passado não pode explicar um futuro revolucionado pela ciência e pela tecnologia. Fecho o livro. Abro de novo ao acaso. Caio na página 346: “Logo os livros estarão lendo você enquanto você os lê”. Segundo Harari, a leitura de livros eletrônicos já ultrapassou nos Estados Unidos a dos livros impressos. Os dispositivos eletrônicos de leitura vão cada vez mais auscultar cada reação do leitor:

“Por exemplo, o seu Kindle pode monitorar quais partes do livro você lê depressa e quais lê devagar; em que página fez uma pausa e em que frase abandonou o livro para não voltar mais a ele (…) Se o Kindle tiver um upgrade para reconhecimento facial e sensores biométricos, pode saber como cada frase que você lê influencia o seu batimento cardíaco e sua pressão sanguínea”. Esses dados permitirão saber melhor o que oferecer aos leitores, o que reescrever e como produzir um best-seller. O livro em papel está com os dias contados. Há pessoas que detestam saber disso e recusam essa profecia. É uma questão geracional, afetiva, de hábito. Quando o papel se disseminou também houve muita resistência. Temia-se a perda da memória natural.

Pulo duas páginas. A passagem sublinhada é forte: “Nesse processo, será revelado que o indivíduo não é senão uma fantasia religiosa. A realidade será uma malha de algoritmos bioquímicos e eletrônicos, sem fronteiras bem definidas, e sem centros de controle individuais”. Para Harari as ciências biológicas estariam provando que não somos indivíduos e que não temos alma nem consciência. Seríamos apenas o produto de bilhões de reações eletroquímicas. Exemplares, não indivíduos, de uma espécie, essencialmente tão diferentes uns dos outros quanto dois frangos de aviário. Que perspectiva confortante.

Yuval Harari acredita que estamos a caminho do pós-liberalismo. O humanismo liberal baseava-se na ideia de unicidade do indivíduo, que ninguém poderia conhecer melhor do que ele mesmo. Agora, aplicativos já estariam aptos a saber mais sobre mim do que eu mesmo. O autor provoca: “Hábitos liberais, como eleições democráticas, irão se tornar obsoletos, porque o Google será capaz de representar até mesmo minhas opiniões políticas melhor do que eu mesmo”. Cometemos erros quando votamos por distração, ignorância ou incapacidade de escolher racionalmente. Acabamos elegendo quem nos arruína. Harari cutuca: “Eu poderia ter me salvado de tal destino com o simples gesto de autorizar o Google a votar por mim”. A escolha do algoritmo é mais racional.

O leitor para e pergunta: esse cara está nos gozando? Quer nos assustar? Fala sério, meu! Ele está falando. De vez em quando, relativiza para não se comprometer demais. Não garante que tudo vai acontecer. Seriam tendências. Adepto de um darwinismo radical, faz uma pergunta apavorante: o que acontecerá “quando ricos e pobres estiverem separados não apenas pela riqueza, mas também por brechas biológicas reais?” Para ele é isso que vai ocorrer. Bilhões de pessoas não terão mais utilidade no pós-trabalho e poucos se beneficiarão dos superpoderes da tecnologia e da ciência. Ele não parece achar ruim.
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* Jornalista. Sociólogo. Prof. Universitário. Escritor.
Fonte:  http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/02/10675/do-sapiens-ao-homo-deus/
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sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Tempo de inflexão e reflexão

 Frei Betto*

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As quaresmeiras florescem nesta época do ano. Lindas e tristes as flores roxas, delicadas miçangas de um colar inconsútil.


Nos quarenta dias prévios à Páscoa, a fé cristã celebra, antecipadamente, a vitória da vida sobre a morte. Ressurreição experimentada a cada manhã ao despertar. Vindos da inércia e da inconsciência, da perda de si no sono, súbito revivemos! Na curva final da existência, proclama a fé, desponta a eterna benquerença.
 
Tempo de inflexão e reflexão. De que vale abster-se de carne terrestre ou aérea se as marítimas nos repletam a pança? Sacrifício, ofício de cultuar o sagrado. Não Deus, que se basta, e sim nós humanos, ossos revestidos de carne, o que há de mais sagrado. Feitos de pó cósmico, de partículas elementares consubstanciadas em átomos, congregadas em moléculas, revitalizadas em células. Quarenta trilhões de células em um corpo humano. Umas, revestidas de seda pura, fragrâncias raras e joias preciosas. Outras estiradas nas calçadas, fétidas, famélicas, entorpecidas pela química da fuga.
 
Jejuar, mas não de alimentos nessa era de dietas anoréxicas que não transferem ao prato alheio o que se priva no próprio. Valem os jejuns da maledicência, da ira gratuita, da empáfia autoritária, do preconceito arrogante, da discriminação insultuosa. Jejuar do monólogo solipsista no celular e dar atenção ao diálogo com o próximo.
 
Vale abster-se da indiferença e abraçar causas solidárias. Deixar de praguejar contra o mundo e tratar de transformá-lo. Esperar mais de si do que dos outros. Poupar críticas aos efeitos e denunciar as causas. Evitar o pessimismo da razão e alentar o otimismo da vontade. Ousar converter o protesto em proposta.
 
Tempo de penitência. Descer do pedestal e admitir os graves pecados contra a natureza: poluição dos ares, contaminação das águas, agrotoxização dos alimentos. A corrupção em doses cínicas, pois enquanto se torce pela higienização da política, emporcalha-se o varejo com a sonegação de impostos, o furto de objetos no local de trabalho, o salário injusto pago à faxineira, a propina ao guarda de trânsito, as maracutaias que engordam o lucro pessoal e lesam a coletividade.
 
Tempo de refluir à interioridade. Dedicar-se às flexões da subjetividade. Trilhar sendas espirituais. Extirpar gorduras da alma. Arrancar a trave do próprio olho antes de apontar o cisco no olho alheio. Cuspir camelos que entopem o coração antes de vociferar perante quem engole mosquitos.
 
Ah, como é cômodo ser juiz do mundo e proferir duras sentenças condenatórias! Fácil apontar o suposto criminoso, difícil erradicar as causas da criminalidade. Fácil identificar os maus políticos, difícil abandonar a própria zona de conforto para inovar a política.
 
Em tempo de quaresma há de ter presente que o pior pecado não é o da transgressão, é o da omissão. 
 
Graças a ele proliferam tantas transgressões imunes e impunes.
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* Frade Dominicano. Escritor. Jornalista.
Fonte: http://amaivos.uol.com.br/amaivos2015/?pg=noticias&cod_canal=53&cod_noticia=37171 
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ÚLTIMA SAÍDA


José de Souza Martins*
 Carvall
 "Uma nova concepção de vida e de finitude 
está sendo gestada nas entrelinhas invisível 
da trama social."

Sabemos que a crise social do mundo de hoje não se reduz ao que é o econômico e o político. Difícil é saber quais são suas consequências inesperadas. Ela cria incertezas no reconhecimento subjetivo da durabilidade da vida, das instituições, dos costumes. Uma área afetada pela expansão da modernidade, de que a crise é parte, é a da concepção de morte e da relação do homem com o sobrenatural. Aí, os que se acham donos da vida interferem, mas não mandam.

O modo de morrer, que é o do preâmbulo da morte, muda historicamente. Afeta âmbitos inesperados da vida. Um dos reflexos das mudanças no direito trabalhista e no previdenciário, antes mesmo de plenamente consumadas, é o das mudanças também em nossa cultura do morrer. Uma nova concepção de vida e de finitude está sendo gestada nas entrelinhas invisível da trama social.

Numa roda de amigos, em dias recentes, discutia-se a importância econômica do enxugamento dos direitos dos que vivem do trabalho, que oneram os ganhos das empresas. Permitirá a racionalização da produção. Alguém mencionou a robotização e a substituição de trabalho humano por máquinas e computadores. Hoje, o sistema produtivo pode produzir muitíssimo mais com menos gente. Mas já no século XIX se sabia que a lógica da produção moderna implica em produzir também cada vez mais seres humanos supérfluos.

Muito preocupado, alguém indicou que, ao mesmo tempo, a esperança de vida logo chegará aos 105 anos de idade. As mudanças nas condições de vida, o extraordinário desenvolvimento da medicina e dos medicamentos já permite a cura de doenças que há alguns anos eram fatais. Hoje, muitas pessoas vivem quase o dobro do que seus bisavós viveram. Os porta-vozes das instituições previdenciárias apontam o dedo para os idosos e dizem descaradamente que estão vivendo demais. Quem vai pagar os custos da dádiva da sobrevida possível?

Na roda, alguém mencionou os hospitais ultramodernos, onde se pode dar nova vida a quase mortos. O milagre da ressurreição é real. Porém, tem gente ocupando leitos e UTIs por tempo demais. A Justiça não leva em conta os custos desse progresso e dá sentenças para fornecimento de remédios caríssimos, importados, e permanências hospitalares longas de pacientes de recuperação improvável. Vivos, mas sem vida? Afinal, o que é a vida?

Fica-se sem saber se tudo melhorou muito ou se tudo piorou muito. Longa vida é possível, mas, dizem, morte ligeira é necessária. Acho que era isso que Karl Marx chamava de contradição da sociedade da acumulação: o importante não é viver, é ser barato.

Um caboclo do Mato Grosso explicou-me que, quando nascemos, já nascemos com a data de nossa morte definida. Não adianta querer ficar. O escritor baiano José Guilherme da Cunha, em seu livro "Esquina do Badu", narra costumes antigos de uma localidade do sertão de sua terra. Um deles, o das técnicas para reduzir a resistência dos moribundos à morte. Ali, há tempos, ainda havia o profissional da arte de bem morrer. O ajudante de Tânatos sentava-se sobre o ventre do teimoso, dificultava-lhe a respiração e o incentivava a fazer a passagem do tenebroso transe. Hoje o custo crescente do prolongamento da vida se encarrega de sentar na barriga dos moribundos para ajudá-los a desistir de ficar.

Esse cenário de terror é a mais importante evidência do que chamam de pós-modernidade. O que vem impondo quase imperceptíveis mudanças de costumes e invenções sociais para preencher o tempo e o espaço novos dos que têm a vida prolongada. O progresso econômico e a ciência abriram um abismo entre viver e sobreviver e criaram um modo de vida e uma sociabilidade muito peculiar, com novos personagens e novas rotinas: a mediação das cuidadoras, as visitas frequentes a hospitais e clínicas. Já há hospitais pouco diferentes de hotéis. A indústria da sobrevida prospera enquanto a vida é precarizada.

Uma nova humanidade de sobreviventes povoa a realidade, bem diversa daquela de anos atrás em que era curtíssimo o tempo que separava a manifestação dos primeiros sinais da morte próxima e o desfecho final do então chamado último suspiro. A médica Elizabeth Kubler-Ross fez a distinção entre o morrer e a morte. A morte é o instante derradeiro. O morrer é outra coisa. É o lento processo da singular sociabilidade entre os primeiros sinais da morte possível e a morte propriamente dita. É o mundo novo do morrer.

Temos hoje consciência de que a morte nos rodeia constantemente, de que a vida ficou mais longa e mais curta ao mesmo tempo. A incerteza relacionada com a morte e o medo que dela temos redefiniram valores sociais. A saída tem sido inventar um mundo de artimanhas e relacionamentos sociais para viver as alegrias do morrer.
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*José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Uma Sociologia da Vida Cotidiana” (Contexto).
Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5341139/ultima-saida  23/02/2018

Intervenção: um mal necessário?

Maria Clara Lucchetti Bingemer*
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O Estado do Rio de Janeiro está sob intervenção federal. O presidente da República nomeou interventor o general de Exército Walter Souza Braga Netto, do Comando Militar do Leste, sediado na Cidade do Rio.  O oficial assumirá o comando das forças de segurança e da ordem no Estado, a saber: as Polícias Militar e Civil e o Corpo de Bombeiros.  Seus comandados do Comando Militar do Leste serão mobilizados para interferir nos problemas de segurança, respondendo apenas ao Presidente da República. 
 
Ninguém nega que o estado precisa encontrar um caminho para resolver a situação de insegurança em que se encontra.  Com um governo inoperante, uma prefeitura da cidade do Rio ausente e o poder paralelo do tráfico armado até os dentes e cada vez mais organizado, as mortes se multiplicam e os cidadãos não conseguem sequer exercer seu direito de ir e vir com um mínimo de tranquilidade.

Porém é fato igualmente inegável que intervenção militar desencadeia em nossa memória recente recordações – e, portanto, reações – muito mais negativas que positivas.  O Brasil conheceu por décadas o gosto amargo da intervenção militar feita ditadura, com um saldo irreparável de violência, medo, torturas e morte.  Continuam sendo encontradas ossadas de uma geração ferida de morte por aqueles que saíram dos quartéis para garantir a ordem que acreditavam perturbada e tardaram muito em retornar a eles. 

Por isso, intervenção é palavra ambígua e movediça. Com origem no vocábulo latino interventĭo, intervenção é formada pelos vocábulos “inter” e “venire”, e indica a ação ou o efeito de intervir.  E isso faz referência direta a diversas questões onde identidade e alteridade se cruzam e se esbarram mutuamente. Abrange desde o ato cirúrgico que, em medicina, destina-se a solucionar um problema de saúde com a ciência exercida na prática, até o ato de dirigir os assuntos que correspondem a outro, seja este pessoa física ou entidade coletiva. 

Uma intervenção militar supõe o fracasso da sociedade civil em resolver seus próprios problemas, sua incapacidade de controlar uma situação que está sob sua alçada.  Outra esfera da sociedade vem então e intervém para solucionar aquilo que a sociedade não consegue administrar.  Assim foi nos tristes idos de março de 1964.  Acreditando o Brasil em perigo diante do comunismo internacional, o Exército interveio e assumiu o controle do país. Quando se trata de relações internacionais, a intervenção diz respeito a dirigir, de forma temporária, os assuntos internos de outra nação. 

Na recente história da humanidade, podemos contar várias destas intervenções, protagonizadas por distintas potências estrangeiras, como a Alemanha nazista e a Rússia comunista.  Ambas fracassaram em seus intentos e a médio ou longo prazo foram derrotadas e substituídas por regimes democráticos.  Ainda que essas democracias não sejam perfeitas, os povos que se encontravam sob o tacão intervencionista preferem as dificuldades que têm hoje do que se sentir invadidos em casa e ver sua soberania atacada. 

Os Estados Unidos – muitas vezes com o auxílio de outras potências mundiais – têm se especializado nessas intervenções, que se revelam tanto militares como políticas.  Na América Latina, contamos mais de um caso, como o Panamá do General Noriega, El Salvador, a Nicarágua entre outros.  Hoje, o Oriente Médio – Iraque, Afeganistão, etc. -  é o palco principal dessas intervenções que pretendem forçar uma mudança de rumo político com o pretexto da segurança mundial e do bem-estar do povo local.  

E o que temos visto como consequência é um constante recrudescimento da violência e dos fanatismos os mais diversos como resposta de povos que não desejam ser tutelados por outros povos e reagem negativamente a este tipo de intervenções que ameaçam sua autonomia. 

É o profundo desejo da sofrida população carioca que a intervenção federal agora decretada não acrescente mais sangue, mais luto e mais dor aos que já povoam diariamente seu cotidiano.  Que seja uma medida destinada a restabelecer a segurança no território do Rio de Janeiro apenas por um tempo até que a situação melhore e atinja níveis um pouco menos traumáticos. Para tal, os métodos não podem ser mais violentos do que a violência já presente na situação estabelecida. 

Violência gera violência. Dinâmicas de paz não poderão ser aplicadas se o ponto de partida for a intervenção truculenta e agressiva.  Isso só gerará revolta e mais agressividade, sobretudo naqueles que diariamente sofrem as consequências da injustiça.  A violência é filha da injustiça.  Se a intervenção pode ser uma necessidade para dirimir uma situação que chegou a um ponto de estrangulamento, pode ser um profundo fator de risco que tende a piorar esta situação em lugar de minorá-la ou resolvê-la. 

Que não se deixe de, a par das ações que a intervenção federal realizará na cidade e no estado, buscar construir soluções a longo prazo.  E isso implica  escolhas políticas que tragam governantes mais capacitados e desejosos de investir naquilo que realmente importa: educação, saúde e superação das injustiças.  Só aí estará o caminho para uma paz dinâmica e realista para o Rio, que já não suporta mais contar cadáveres e deseja voltar a viver com dignidade. 
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* professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc)
Fonte:  http://www.jb.com.br/sociedade-aberta/noticias/2018/02/22/intervencao-um-mal-necessario/ 
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quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Como o patriarcado se impôs ao matriarcado

Leonardo Boff*
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"Estamos assistindo a uma mudança de paradigma nas relações masculino/feminino. Esta mudança deve ser consolidada com um pensamento profundo e integrador que possibilite uma felicidade pessoal e coletiva maior do que aquela debilmente alcançada sob o regime patriarcal".

É difícil rastrear os passos que possibilitaram a liquidação do matriarcado e o triunfo do patriarcado, há 10-12 mil anos. Mas foram deixados rastos dessa luta de gênero. A forma como foi relido o pecado de Adão e Eva nos revela o trabalho de desmonte do matriarcado pelo patriarcado. Essa releitura foi apresentada por duas conhecidas teólogas feministas, Riane Eisler (Sex Myth and Poilitics of the Body: New Paths to Power and Love, Harper San Francisco 1955) e Françoise Gange (Les dieux menteurs, Paris, Editions Indigo-Côtes Femmes,1997).

Segundo estas duas autoras se realizou a uma espécie de processo de culpabilização das mulheres no esforço de consolidar o domínio patriarcal.
Os ritos e símbolos sagrados do matriarcado são diabolizados e retroprojetados às origens na forma de um relato primordial, com a intenção de apagar totalmente os traços do relato feminino anterior.

O atual relato do pecado das origens, acontecido no paraíso terrenal, coloca em xeque quatro símbolos fundamentais da religião das grandes deusas-mães.

O primeiro símbolo a ser atacado foi a própria mulher (Gn 3,16) que na cultura matriarcal representava o sexo sagrado, gerador de vida. Como tal ela simbolizava a Grande-Mãe, a Suprema Divindade.
Em segundo lugar, desconstruiu-se o símbolo da serpente, considerado o atributo principal da Deusa-Mãe. Ela representava a sabedoria divina que se renovava sempre como a pele da serpente.

Em terceiro lugar, desfigurou-se a árvore da vida, sempre tida como um dos símbolos principais da vida. Ligando o céu com a terra, a árvore continuamente renova a vida, como fruto melhor da divindade e do universo. O Gênesis 3,6 diz explicitamente que “a árvore era boa para se comer, uma alegria para os olhos e desejável para se agir com sabedoria”.

Em quarto lugar, destruiu-se a relação homem-mulher que originariamente constituía o coração da experiência do sagrado. A sexualidade era sagrada pois possibilitava o acesso ao êxtase e ao saber místico.

Ora, o que fez o atual relato do pecado das origens? Inverteu totalmente o sentido profundo e verdadeiro desses símbolos. Dessacralizou-os, diabolizou-os e os transformou de bênção em maldição.

A mulher será eternamente maldita, feita um ser inferior. O texto bíblico diz explicitamente que “o homem a dominará”(Gen 3,16). O poder da mulher de dar a vida foi transformado numa maldição: “multiplicarei o sofrimento da gravidez”(Gn 3,16). Como se depreende, a inversão foi total e de grande perversidade.

A serpente é maldita (Gn 3,14) e feita símbolo do demônio tentador. O símbolo principal da mulher foi transformado em seu inimigo figadal: ”porei inimizade entre ti e a mulher...tu lhe ferirás o calcanhar” (Gn 3,15).

A árvore da vida e da sabedoria vem sob o signo do interdito (Gn 3,3). Antes, na cultura matriarcal, comer da árvore da vida era se imbuir de sabedoria. Agora comer dela significa um perigo mortal (Gn 3,3), anunciado por Deus mesmo. O cristianismo posterior substituirá a árvore da vida pelo lenho morto da cruz, símbolo do sofrimento redentor de Cristo.

O amor sagrado entre o homem e a mulher vem distorcido: “entre dores darás à luz os filhos; a paixão arrastar-te-á para o marido e ele te dominará”(Gn 3,16). A partir de então se tornou impossível uma leitura positiva da sexualidade, do corpo e da feminilidade.

Aqui se operou uma desconstrução total do relato anterior, feminino e sacral. Apresentou-se outro relato das origens que vai determinar todas as significações posteriores. Todos somos, bem ou mal, reféns do relato adâmico, antifeminista e culpabilizador.

O trabalho das teólogas pretende ser libertador: mostrar o caráter construído do atual relato dominante, centrado sobre a dominação, o pecado e a morte; e propor uma alternativa mais originária e positiva na qual aparece uma relação nova com a vida, com o poder, com o sagrado e com a sexualidade.

Essa interpretação não visa repristinar uma situação passada, mas, ao resgatar o matriarcado, cuja existência é cientificamente assegurada, encontrar um ponto de equilíbrio maior entre os valores masculinos e femininos para os dias atuais.

Estamos assistindo a uma mudança de paradigma nas relações masculino/feminino. Esta mudança deve ser consolidada com um pensamento profundo e integrador que possibilite uma felicidade pessoal e coletiva maior do que aquela debilmente alcançada sob o regime patriarcal. Mas isso só se consegue desconstruindo relatos que destroem a harmonia masculino/feminino e construindo novos símbolos que inspirem práticas civilizatórias e humanizadoras para os dois sexos. É o que as feministas, antropólogas, filósofas e teólogas e outras estão fazendo com expressiva criatividade. E há teólogos que se somaram a elas.
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* Teólogo, filósofo e escritor.  
Fontes:
- http://www.jb.com.br/leonardo-boff/noticias/2018/02/15/como-o-patriarcado-desmantelou-o-matriarcado/
- http://www.ihu.unisinos.br/576301-como-o-patriarcado-se-impos-ao-matriarcado
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