sexta-feira, 30 de novembro de 2012

O mar de banalidade

 IVAN MARTINS*

Por que falamos tanto, se temos tão pouco a dizer?

A cena aconteceu dentro de um ônibus, durante um congestionamento daqueles que são frequentes em São Paulo. O rapaz ao meu lado sacou o celular e se pôs a conversar com a namorada. Era inevitável que eu ouvisse. Ele falou longamente sobre o trabalho, comentou sem pressa que era aniversário de um amigo dele, declarou repetidas vezes que ela – “amooorrr” – era a pessoa mais importante da vida dele.

Quando eu achei que a ligação iria acabar, ele se pôs a discutir, em detalhes minuciosos, tudo que os dois iriam fazer dali a poucas horas, ou talvez minutos, quando se encontrassem. Falou que queria comer pipoca, mas disse que preferia frango frito. Falou da mãe dela, da casa dela, da família dela. Previu o que ela iria dizer para ele e o que ele responderia para ela. Disse que a coisa que mais queria, depois do frango, era casar com ela. Juro! Falou, falou, falou até que eu me levantei, depois de mais de 45 minutos daquilo, e desci do ônibus lotado. Caminhei para casa por quase uma hora, feliz com o silêncio. Quando entrei em casa, segurei a minha mulher pelos ombros e disse, convicto até a medula: “Você agradeça todos os dias por estar comigo, e não com um chato carente que não consegue calar a boca.” 
Podem me chamar de chato, insensível e ranheta, mas a conversa do rapaz no ônibus deixou claro, para mim, algo que anda pululando ao nosso redor de um modo exasperante: a banalidade do bem. Do “meu bem”. Talvez por influência das companhias telefônicas e de seus planos que permitem conversas ilimitadas, as pessoas perderam a noção. Falam superficialidades umas às outras o tempo inteiro. Têm os melhores sentimentos, mas nenhum limite e nenhum conteúdo. Sobretudo os casais.  
Aquilo que os ingleses patentearam mundialmente como “small talk” – a conversinha boba sobre o tempo, que se tem com o vizinho no elevador ou com o estranho no trem de metrô – foi ampliada, turbinada e agigantada. Penetrou as relações mais íntimas. Os temas de conversa entre pessoas que se relacionam (amigos, namorados, colegas), passaram do cotidiano ao trivial e daí, rapidamente, despencaram para o banal mais rasteiro. As pessoas se viciaram na partilha incessante de irrelevâncias. Passam o tempo trocando bobagens que antes não se diziam. Há uma inflação de palavras e temo que por baixo dela haja escassez de compreensão. 
Estou sendo muito chato? Talvez, mas me parece que as pessoas perderam o sentido do silêncio. Ele deveria dominar a nossa vida. Devido à nossa natureza física, do cérebro unitário e impartilhável que cada um de nós carrega, estamos fadados a ficar em nossa companhia o tempo inteiro. Isso é bom, estávamos acostumados, mas, de alguma forma, parece que perdemos o jeito. Agora temos de falar o tempo todo para espantar o convívio com o silêncio interior. 
Em vez de ficar quieto no ônibus, pensando, o rapaz puxa o telefone e chama a namorada – ainda que não tenha nada remotamente importante a dizer. Talvez ele pudesse ler, talvez pudesse escutar música, quem sabe descobrisse algo novo sobre a cidade e seus moradores observando a rua pela janela ou a diversidade humana no interior do ônibus. Mas não. Ele prefere falar, como todo mundo parece estar preferindo. Jovens e velhos, homens e mulheres, ricos e pobres. Somos uma sociedade de faladores compulsivos que – misteriosamente, mas nem tanto – não se entendem.  
Como eu já disse, acho que parte importante da culpa por isso tudo é da tecnologia. O telefone celular e a internet – as redes sociais, que a gente agora carrega no bolso – parecem ter despertado uma monstruosa fraqueza humana. Somos socializadores compulsivos. Diante da possibilidade de falar, espiar a vida do outro, se exibir ou fofocar, não resistimos. Deve estar em nosso DNA, escrito nos genes da nossa constituição mais essencial. Há um vazio dentro de nós que só assim conseguimos preencher. É o medo de estar sós, isolados, longe do calor do grupo. Nós nos sentimos assim nas grandes cidades, e por isso falamos tanto, telefonamos tanto, twitamos tanto, lemos e atualizamos o Facebook o tempo todo: é a nossa forma de esticar a mão e tentar alcançar o outro. Pela palavra, tentamos acalmar o bicho assustado dentro de nós.

Apesar disso – ou por causa disso – o silêncio faz falta. Precisamos dele para ouvir os nossos pensamentos. Precisamos dele para pesar o valor das palavras, ou das músicas, ou dos filmes, ou da internet: cada uma dessas coisas vale mais ou menos que o silêncio precioso? Vale a pena rompê-lo neste momento para dizer o pouco que eu tenho a dizer? Essa pergunta, que parece esdrúxula, é fundamental ao convívio. Antes de passar uma hora ao telefone tentando suprir nossa insaciável carência, seria preciso se perguntar: vale a pena? Sim, por que há coisas a ganhar ficando quieto. 
A introspecção precede a compreensão, o entendimento das coisas. O fluxo incoerente de pensamento que nos habita ganha uma forma quando falamos, mas falar significa suprimir as outras formas de manifestação da mente. Enquanto o fluxo de pensamento está lá, em estado bruto, agitado e disforme, mas em silêncio, muita coisa se processa, de forma mais ou menos inconsciente. No silêncio encontramos respostas, soluções, inspirações, ideias. Mesmo sem perceber. Na troca incessante de palavras achamos apenas redundância.

Isso não é diferente para os casais. No interior dos relacionamentos tecemos um ninho aconchegante de palavras e hábitos. As mesmas conversas, os mesmos temas, as mesmas brincadeiras e carinhos. Isso tudo é bom, mas tem limites. Dentro de um casal ainda precisamos de espaço, tempo e silêncio. As conversas, além de indicarem aconchego emocional e cumplicidade, deveriam ter significado. Eu sei, eu pensei, eu descobri – então eu divido. Eu sinto, eu percebo, eu temo – então eu falo. Nos intervalos entre essas coisas, o silêncio. Cheio de amor, cheio de desejo, cheio de carinho. Partilhado e curtido. Silêncio oposto da palavra inútil e vazia, da palavra banal.

Ou então nós todos pegamos os celulares e falamos até explodir, que nem cigarras.
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* IVAN MARTINS É editor-executivo de ÉPOCA 
Imagem da Internet
Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/ivan-martins/noticia/2012/11/o-mar-de-banalidade.html

Aulas de história de volta

Gilles Lapouge*
 
Há dois anos o ministro da Educação Nacional da França, Luc Chatel, expulsou a história e a geografia do ensino médio. 

Ele se dizia um homem "moderno", eficaz, prático: essa Idade Média, com seus reis, suas damas, seus construtores de igrejas, seus camponeses malvestidos e até analfabetos, tudo isso era antiquado. A data de prescrição já tinha passado. Para o lixo com a Idade Média!
E, além disso, por que perder tempo com a Renascença? Todos esses papas libertinos, esses Bórgia, esses "condottieri", esse tal Da Vinci, esse Giotto, não servem para nada, não vão ajudar a encontrar petróleo. Não rendem um tostão. 

Quanto à Revolução Francesa de 1789, foi um bando de desaforados. E mesmo Napoleão era um bom soldado, de acordo, mas, enfim, para que serve narrar o seu gênio e sua loucura para alunos que, mais tarde, vão dirigir bancos, arrebatarão "partes do mercado" dos chineses ou construirão estradas do século 21? Ou somos modernos ou não, que diabo!
A história não se deixou envolver. Percebeu-se que os franceses adoram história. Um jornal popular, o Journal du Dimanche, aumentou sua tiragem quando promoveu o ensino da história e da geografia. Um protesto reuniu 28 mil assinaturas de pessoas indignadas. 

Retorno. Hoje, depois de dois anos de abstinência, a história retorna graças ao novo ministro da Educação Nacional, Vincent Peillon. Ela será novamente ensinada até o último ano do ensino médio e será uma das provas obrigatórias do exame de admissão à universidade. Como nos velhos tempos. 

A retirada do estudo de história era particularmente escandalosa num país como a França, como se a soma de 20 séculos tivesse sido segregada, cristalizada. Paris, Roma, Bahia, Londres ou São Luís do Maranhão, o que são senão uma caminhada trágica e luminosa pela memória do mundo? 

E como compreender os arcanos da "modernidade" se o passado não pode ser percebido, um pouco como uma imagem que brilha atrás de um cristal? 

Em 1939, foi dito ao grande historiador Marc Bloch que era inútil vasculhar o passado, quando eclodiu a 2.ª Guerra. Bloch respondeu: "Eu me informo sobre Carlos Magno e Robespierre para compreender a guerra que Hitler acabou de nos declarar". 

Toda a pintura clássica, de Michelangelo a Picasso, de Cranach ou Dürer a Turner ou Paul Klee, é simplesmente uma maneira suntuosa de folhear os séculos que nos fabricaram. 

Excesso de informação. Ocorre que o currículo escolar de um aluno do século 21 é tão avassalador que excede a capacidade de um adolescente comum. Como conseguiria ele amontoar na sua cabecinha todas as matemáticas, as ciências físicas e a economia, a ortografia e o inglês, a química, o estudo das leis, etc? 

Se continuarmos a abarrotar os cérebros dos estudantes, eles acabarão explodindo. Esse é um dos grandes desafios do ensino. Esse desafio, a França acreditou tolamente que havia superado há dois anos, suprimindo numa penada uma disciplina julgada "inútil". 

Não teria sido mais inteligente refletir sobre novas maneiras, novos métodos de ensino? Essa é uma missão sutil. Talvez seja até uma "missão impossível". 

Contudo, mesmo impossível, ela merece ser levada adiante, em vez de demolir a grandes marteladas 2 mil anos da memória dos homens. 
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/ TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
* É CORRESPONDENTE EM PARIS. Escritor e jornalista francês.
Fonte: Estadão on line, 30/11/2012
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Joelmir

Celso Ming*
 
Há quem o tenha admirado pela facilidade com que criava metáforas engraçadas, como a do sujeito que, lá pelas tantas, metia "o pé 42 em sapato 38". Outros, pela fluência com que se expressava - ainda mais elogiável quando se soube que teve de superar uma séria gagueira na infância. Outros mais, pela especial capacidade de compreensão de um mundo tão complicado.

Depois de ter sido noticiada a sua morte, na madrugada desta quinta-feira, muita gente lembrou a grande contribuição que o jornalista Joelmir Beting deu à tarefa de traduzir o hermético economês para o brasileiro comum.

Ele deu, sim, enorme contribuição para isso quando soube explicar com palavras simples o que acontecia no jogo da produção, do emprego e das finanças pessoais. Mas sua maior contribuição foi anterior. Foi ter quebrado a resistência das pessoas, das mais simples às de escolaridade superior, para as coisas da economia, que sempre pareceram tão complexas. Quem ouvia o Beting se sentia mais seguro para navegar em águas que antes pareciam tão turbulentas, mesmo não tendo entendido o assunto.

Pelo menos até meados dos anos 60 a economia era o que a física quântica é hoje para tanta gente: assunto enfrentado quase exclusivamente por iniciados. O noticiário de economia nos jornais quase se limitava a passar recado do governo federal para as chamadas classes produtoras e o destas para o governo. Era o produtor de café que forçava o governo federal a fazer mais estoques e era o empresário têxtil a pressionar por mais liberação comercial para a matéria-prima e por mais proteção para o produto acabado. 

A partir de 1967 veio o chamado milagre brasileiro. As classes médias precisaram entender as reviravoltas do seu orçamento. As editorias de economia tiveram, então, de abrir espaço para comunicadores que se empenhassem em ajudar as pessoas a enfrentar situações novas.
Logo em seguida, o primeiro choque do petróleo, em 1973, e o segundo, em 1979, pegaram o País no contrapé, atolado na dívida externa. Foi um tempo de crises recorrentes e enorme inflação, quando o assalariado recebia no dia 30 menos da metade do salário combinado com o patrão no início do mês. Um vacilo na administração do patrimônio familiar podia provocar uma tragédia.

Foi também quando surgiram os comentaristas, cuja principal função foi ajudar o brasileiro a lidar com esse mundo adverso. Foi uma época em que até mesmo o Jornal Nacional da TV Globo teve de veicular comentários quase diários sobre o comportamento da economia.
Foi nesse cenário que Joelmir se notabilizou e foi nele que passou o recado diário ao leitor, ao ouvinte e ao telespectador - sempre com boa dose de bom humor, qualidade rara em desbravadores. Beting foi um pioneiro também na comunicação multimídia. Não foi eficiente só na produção de textos. Tornou-se grande comunicador ainda no rádio, na TV e nas apresentações para públicos mais restritos.

"O sapo não pula por boniteza, mas por precisão", já filosofou Guimarães Rosa. E foi também a necessidade criada pela crise econômica que ensinou o brasileiro a lidar com ela. O titular que me antecedeu nesta Coluna do Estadão teve grande mérito nessa boniteza.
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* Jornalista econômico
Fonte: Estadão on line, 30/11/2012
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Perdemos nossa relevância política no continente"


Por Cristian Klein | De São Paulo
 Ana Paula Paiva/Valor / Ana Paula Paiva/Valor

Fernando Henrique Cardoso: 
"Nosso modo de exercer liderança tem sido concordar, não tem sido dizer 'não, isso não'"

O Brasil só exerce liderança com seus vizinhos cedendo. E deixou de ser o ator mais influente na América do Sul, que vive um momento de fragmentação, com a criação de um terceiro novo bloco por países da região, a Aliança do Pacífico. A opinião do ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso contrasta com a imagem de um Brasil que passou a ser um global player e ganhou relevância na comunidade internacional, durante o mandato de seu sucessor, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. "Houve muita retórica. Quando você é global player não tem que bater tanto no peito dizendo que é", afirma FHC.

Fernando Henrique reconhece que o país ganhou peso, mas isso não implicou em aumento na capacidade de liderança. Entre as razões está a dificuldade, de vários atores - Estado, empresariado, sociedade civil organizada - em discutir uma maior liberalização da economia e se aproximar dos Estados Unidos. A seguir, os principais trechos da entrevista que FHC concedeu ao Valor, depois de participar do seminário "A liderança do Brasil na América do Sul":

Valor: O Brasil erra ao privilegiar as relações Sul-Sul em sua política externa?
Fernando Henrique Cardoso: Não é equívoco, tem que haver a Sul-Sul, o problema é acentuar exclusivamente. O Brasil é um grande país. É do interesse nacional ter uma diversificação nas suas relações econômicas e políticas. Agora, se concentrar em um dos polos, complica. Tem que ter um certo equilíbrio. O Brasil, além do mais, é industrializado. Não há nenhum outro país ao Sul do Equador com a base industrial igual à nossa. Isso implica que temos que ter um vínculo com a invenção e a criatividade tecnológica, o que nos leva necessariamente a ter relação com os produtores disso: Alemanha, Estados Unidos, mais tarde China, não podemos nos isolar desse fluxo de inovação.

Valor: E quais seriam as consequências da concentração no polo Sul-Sul?
FHC: Um certo descaso com o mundo, com os Estados Unidos, com a Europa. A nossa produção industrial manufatureira basicamente vai para a América Latina e para os Estados Unidos. Não vai para China, não vai para Europa. Agora, vai também para os países árabes, isso é uma coisa importante. O [Jorge] Gerdau colocou aí: no limite, ele perguntou: será que não precisamos de uma integração mais ampla, mais global? No fundo é o seguinte: será que o Chile quando tomou a decisão de uma integração global - que parecia, para nós brasileiros, uma coisa arriscada e sem efeito - não teria se antecipado àquilo que todos vão ter que fazer se quiserem estar à tona? Claro o Brasil é diferente. O Chile não tem a vantagem nem o peso de ter uma indústria grande. Nós temos mais complicações para fazer aberturas. Agora, será que, dado nosso grau de avanço, nós já não temos condições de realmente liberalizar mais? E ganhar com isso, pelas nossas vantagens competitivas? Aí vem outra pergunta: para isso não podemos continuar do jeito que estamos, pois nosso setor industrial está perdendo relativo espaço pela produtividade, e produtividade entendida como custo Brasil. Para o Brasil poder dar um passo maior na sua integração à economia global, ele precisa fazer mais reformas, ou não vale a pena, não tem condição de competir.

Valor: Quais são as reformas necessárias?
FHC: As que todo mundo fala, acho que a Gerdau resumiu bem. Em primeiro lugar é educação; em segundo é logística; em terceiro lugar é investir pesadamente em infraestrutura. Logística é parte da infraestrutura, mas prefiro citar como infraestrutura energética e tudo mais. Temos condições para tudo isso.

Valor: Destinar todos os recursos dos royalties do pré-sal para a educação, como defende hoje o governo federal, é uma boa saída?
FHC: Aí eu tenho uma posição um pouco divergente. Em desespero de causa, melhor que seja para a educação do que deixar indiscriminado, porque daí vai para gastos correntes. Eu acho que deveria ser uma parcela para educação. É muito dinheiro, você imagina... E educação não se resolve só com dinheiro; é com outras coisas mais. Quando tem muito dinheiro você pode pensar que resolveu o problema da educação; não vai, isso pode aumentar gastos correntes também. Como é que eu vou melhorar qualitativamente a educação e não simplesmente construir mais prédios? Agora, sem dúvida, é melhor que tenha gastos também com educação do que não ter limitação nenhuma de gasto, como ficou o projeto. O projeto como foi aprovado pelo Congresso foi o pior possível. Divide entre todos [Estados, União e municípios] e não dá restrição nenhuma.

Será que, dado nosso grau de avanço, nós já não temos condições de realmente liberalizar mais?"

Valor: Para que outras áreas poderiam ir os recursos?
FHC: Infraestrutura. Qual era a ideia da partilha? Era o modelo norueguês, que retira da circulação o lucro do petróleo, você o põe fora, porque o petróleo é um bem que se esgota, e tem que pensar nas gerações futuras. Esse foi o pretexto para fazer a partilha. Esqueceram disso. Uma parte do lucro tem que ser mesmo para um fundo soberano, pensando em duas coisas: gerações futuras e crise, amortecedor de problemas. A outra parte acho que seria razoável que se usasse em educação, inovação tecnológica e infraestrutura.

Valor: O senhor falou que o Brasil não é o Chile e que a dificuldade de mudança aqui se deve à indústria. Qual é o peso dos principais atores, como empresários e trabalhadores, nessa equação?
FHC: É grande, a dificuldade toda aí é que você tem que definir o interesse nacional, o interesse do Estado e do povo. Os empresários, claro, têm a legitimidade de puxar o quinhão para eles, mas a decisão não pode ser automaticamente para favorecê-los. Acho até que o governo atual está automaticamente favorecendo os empresários com as políticas do BNDES, com transferência de renda pesada em setores que não necessitam. Se você pegar fundo de petróleo para fazer isso, acho errado. Agora por outro lado, se você pegar isso e transformar tudo em gasto corrente, vai para o outro lado. É defender os interesses corporativos, de funcionários, sindicatos. Este, no Brasil, é um processo histórico, pesado, difícil. Reli o livro ["Os donos do poder", de 1958] do [Raimundo] Faoro, porque eu tinha que escrever um trabalho. É impressionante como ele já descreve todos esses processos. É claro que o peso do mercado hoje é maior do que ele imaginava ser possível. Mas de qualquer maneira ainda está muito presente a tradição corporativa, estamental. O estamento se choca com o interesse público.

Valor: E o que o senhor hoje faria diferente do que fez para a integração econômica do Brasil?
FHC: A nossa integração era basicamente o Mercosul, que estava baseada em fazer o seguinte: tarifa externa comum e intensificar o comércio - defesa comum e exportação dentro do bloco. Mas em vez de resultar numa efetiva liberalização, pelos direitos constituídos o que gerou foi um incremento das exceções, para manter o protecionismo, às vezes do Brasil e na maior parte das vezes da Argentina. Então isso levou, como leva atualmente, a choques grandes. Estava vendo ainda ontem um economista dizer que a queda do PIB do Brasil - porcentagem ridícula - se deve em grande parte à queda da exportação para Argentina. Então, fazer uma integração que nos leve a isso não foi bom resultado. Eu havia percebido isso e propus uma coisa que eles chamavam de Iirsa [Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana], que era uma outra coisa, independentemente de termos o Mercosul. Era fazer uma integração latino-americana baseada na logística, na integração dos eixos de energia, transporte, comunicações. Começou-se a fazer isso, mas virou Alba [Aliança Bolivariana para as Américas, formada por Venezuela, Bolívia, Equador, entre outros]. Virou muito mais uma retórica - embora tenha resultados concretos também. Acho que eu daria mais ênfase à Iirsa do que ao comércio, a investimentos conjuntos - nesses grandes blocos logísticos que permitissem a integração.

Valor: O que mais?
FHC: Nunca chegamos a discutir de verdade a Alca [Área de Livre Comércio das Américas], quando os americanos tinham interesse. Depois eles perderam o interesse, junto com o governo brasileiro, e fizeram acordos bilaterais com vários países aqui da América Latina. Nunca chegamos a pensar a fundo uma negociação com os Estados Unidos, sempre tivemos medo. Esse nós somos nós todos. O setor político por ideologia, muitas vezes; o setor empresarial por medo da competição; e o governo por ficar sem ter muita clareza, qual era o interesse do Brasil. Cozinhamos a Alca em banho-maria. Apesar de toda a gritaria que havia, nunca fizemos nada, não demos nenhum passo para fortalecer a Alca. Me pergunto: será que neste momento nós já não temos condições de pensar com mais liberdade? Não é fazer. É pelo menos perguntar: o que ganhamos e o que perdemos? Ficamos muito isolados no Mercosul. Não conseguimos fazer a relação do Mercosul com a Europa - eu tentei, mas não funcionou. Não fizemos a Alca e não avançamos tanto com nenhum outro bloco, nem com países. O Brasil tem um acordo automotivo com o México, um acordo de livre comércio com Israel ou algo semelhante e não sei com mais quem, se é que tem. Então, estamos muito desarmados. Como coincidiu de termos este boom na China, o boom das commodities, a questão perdeu relevância. No momento em que tiver uma diminuição dos fluxos favoráveis chineses, vai ter necessidade de ter outros mercados. E, aí?

Valor: Jorge Gerdau disse que a festa está boa, mas vai acabar.
FHC: Ele tem razão. Vai acabar. Acho que a gente poderia ter avançado mais, pelo menos para uma posição mais consistente a respeito: vamos ou não vamos? Ou vamos até certo ponto. Temos uma certa tendência histórica, por sermos um país grande, ao isolamento. Você quebra este isolamento só com relações com países menos poderosos que nós, alegando nos sentirmos confortáveis. Com o mais poderoso nos sentimos mais complexados. Achamos que, se vamos chegar perto, vamos perder.

Valor: A indefinição prejudica a liderança do Brasil na região?
FHC: O Brasil era naturalmente líder, hoje a coisa é mais complicada. O continente se dividiu. Há o Arco do Pacífico [com Chile, Peru, Colômbia e México], o Arco Bolivariano e o Mercosul [Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai]. O Brasil sempre teve a posição que o [ex-presidente da Bolívia] Carlos Mesa ressaltou, de conciliador, não de propriamente de quem impõe. Fomos perdendo espaço, não queremos assumir posição. Então de alguma maneira perdemos nossa relevância política no continente que era inconteste.

Nunca chegamos a pensar a fundo uma negociação 
com os Estados Unidos, sempre tivemos medo"

Valor: Mas durante o governo Lula o país não ganhou projeção como um global player?
FHC: Na verdade, houve muita retórica. Quando você é global player não tem que bater tanto no peito dizendo que é. Eu não vou negar que o Brasil ganhou muita força, em função do seu crescimento, da democracia, da inclusão social. Então deu mais peso para o Brasil, isso é indiscutível. Agora, que tenhamos utilizado isso para exercer liderança é mais discutível. Não exercemos na América do Sul. É o caso da Bolívia: só exercemos liderança cedendo. Nosso modo de exercer liderança tem sido concordar, não tem sido dizer "não, isso não".

Valor: Nos últimos anos, a região foi dominada por vários governos de esquerda. Isso não poderia ter facilitado a integração?
FHC: É um exagero. O governo do Uruguai é considerado de esquerda, mas o comportamento não tem nada a ver com o da Venezuela. Tem uma afinidade sentimental, digamos assim, de setores de governos e partidos, mas não tem necessariamente na condição política.

Valor: O Brasil ainda carrega a herança do modelo de substituição de importações?
FHC: O país tem, um pouco tem. Qual era o ideal do passado? Aumenta a tarifa e dá juro mais barato, assegura o mercado. Com muitos setores empresariais ainda é isso o que o governo faz, de uma maneira ou de outra. Vai o BNDES e socorre; manda diminuir o imposto para aumentar a compra de automóvel para a indústria automobilística. É tópico, não era como antes. Mas é tudo assim, ainda tem muito da reverberação desse passado, com a ideia de que o Brasil para crescer tem que ficar isolado.

Valor: Mas outros países e blocos também não são protecionistas?
FHC: Isso não implica que você não tenha que defender seu interesse. Os americanos se defendem, a China também. O Brasil vai fazer isso sempre, em certas circunstâncias tem que fazer, só não pode ter medo de se abrir. Você não vai morrer porque é mais favorável a maior flexibilidade de mercado. Você se protege. Eu não sou um neoliberal, não é minha posição, eu não acho que o mundo se resolva ampliando o mercado e não dando papel ao Estado e à regulação. Tem que ser uma regulação inteligente, e quando você tem uma condição em que possa se dar ao luxo de competir, compete.

Valor: Qual é o papel do Estado?
FHC: Não existe nenhuma economia moderna sem o papel ativo do Estado, o resto é ideologia. Agora, você não pode confundir o papel ativo do Estado com impedir que a iniciativa privada e social existam. A relação entre Estado, sociedade e mercado não é um jogo em que alguém perde. Tem um jogo de ganha-ganha, desde que um entenda o papel do outro e colabore. Você não pode imaginar hoje que não haja regulação do Estado. Não pode imaginar que fundos públicos não possam ser utilizados para obras de infraestrutura; que você abdique do papel de condutor do Estado na política global do país.

Valor: Que direção pode ser tomada?
FHC: Por que não se pode fazer uma licitação aberta realmente? Mesmo que você tenha a Infraero, por que não abre outros setores? Minha posição com relação à Petrobras sempre foi essa: manter na mão do governo, porém compete. Banco do Brasil: mantém na mão do governo, porém compete. E dois, administra isso como empresa e não como repartição pública, ou seja, não deixe que o interesse partidário penetre nisso para impedir a gestão. O Banco do Brasil não precisa fechar, para que fechar? É até bom que exista. Em certos momentos é necessário - para baixar os juros foi importante. Agora não pode utilizá-lo como se fosse uma repartição pública, tem que respeitar os interesses de empresa. O papel do Estado é impedir isso também: tanto que o estamento e a corporação predominem quanto que os partidos penetrem lá e predominem.

Valor: Há quem pense que o modelo mais corporativista do Brasil tenha tido um efeito benéfico, ao isolar e proteger o país durante a crise internacional de 2008. O senhor concorda?
FHC: Eu sempre fui favorável a que o governo tenha instrumentos que permitam sua ação efetiva. O fato de termos ajudou nessa crise, principalmente de regulação e mesmo de ação. Eu acho que a economia brasileira, a economia francesa ou mesmo a economia alemã são mistas. Economia puramente capitalista, de mercado puro, tem nos Estados Unidos, com muita regulação, tem na Inglaterra, pode ter em um outro país europeu. Em geral não é assim. Em geral, há variedades de capitalismo. Não acho que o Brasil precise copiar o modelo anglo-saxão. Não pode, nós não somos anglo-saxões, nossa cultura não é.

Valor: Qual deveria ser o nosso modelo?
FHC: É o que estamos construindo. Agora, qual é... Aqui, às vezes, o Estado exagera. Nos Estados Unidos, o setor privado exagera.
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Fonte: http://www.valor.com.br/brasil/2923196/perdemos-nossa-relevancia-politica-no-continente

Saúde, Veríssimo!

Montserrat Martins*

Luis Fernando Veríssimo. Foto no site Pra Ler.

 Luis Fernando Veríssimo. Foto no site Pra Ler.

A inteligência do país esteve em risco quando Veríssimo foi hospitalizado em estado grave. Brecht já disse que há pessoas importantes por lutarem em alguns momentos e conclui que algumas são indispensáveis porque o fazem durante toda a vida. Luís Fernando Veríssimo é um incansável batalhador pela inteligência nacional, o que não costuma ser atribuído a ele porque suas armas são sutis, como quem plana suavemente sobre o cotidiano de todos nós, nos oferecendo observações irônicas, muito sofisticadas para que pareçam representar alguma causa.

Sua causa é a educação cultural, o senso crítico, a consciência social – que ele não nos cobra, nos seduz a ver. Somos eternos aprendizes de seus ensinamentos, de uma amplitude capaz de alcançar desde a sua própria geração até a dos jovens de hoje. Ao invés do senso comum moralista ou superficial, a capacidade de nos mostrar nossas fraquezas cotidianas, nossas hipocrisias e contradições. Até a futilidade nele atingiu sua mais alta graça, nas passagens fulgurantes por suas páginas de Dorinha, a socialite socialista. Os sagazes investigadores ganharam mais humildade, com Ed Mort, e os psicanalistas mais objetividade, com o Analista de Bagé.

Nele a leveza não é superficial, é calculada como o modo de nos atingir no âmago, pois a digerimos sorrindo. E é justamente por sua calculada leveza, por sua sutil profundidade, que Veríssimo abriu todas as portas da comunicação brasileira – contribuindo com jornais, revistas, publicando livros e até tiras das Cobras (mesmo sempre dizendo não saber desenhar). Já teve atividades tão variadas que incluem desde equipes de redação para programas de TV, ou cobrir a Copa do Mundo para a Playboy.

Com a autoridade que o conhecimento e a sabedoria lhe conferiram ao longo do tempo, foi adquirindo o direito de dizer o que ninguém mais poderia – chegou a confessar que já escreveu horóscopo, no início da carreira, e não causaria estranheza se fosse autêntica uma frase sua usada como post no facebook, “às vezes, a única coisa verdadeira num jornal é a data”. Para quem conquistou espaços nobres nos maiores jornais não só do sul como do centro do país, ironizar o próprio meio que o consagrou seria um exemplo extremo do grau de liberdade que ele, sedutora e audaciosamente, atingiu.

Em 2012 o próprio Veríssimo escreveu seu lamento pela perda do Millôr e Ivan Lessa, gênios da categoria dele, o que o fez se sentir mais solitário, podemos imaginar. Agora chega, 2012, você já nos tirou demais, ainda precisamos – e muito – do Veríssimo, de preferência por largo tempo, para nos ensinar a pensar criticamente, com inteligência e graça. Não estamos prontos para ficarmos órfãos do nosso grande mestre. Saúde, Veríssimo, por ti, por tua família. E por todos nós.
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* Montserrat Martins, Colunista do Portal EcoDebate, é Psiquiatra.
Fonte:  http://www.ecodebate.com.br/2012/11/30/saude-verissimo-artigo-de-montserrat-martins/

Torturadores de palavras

Luciano Pires*


Este texto é de 2009. Mas precisa ser relido já.

Olha que história sensacional recebi por email: Judy Wallman é uma pesquisadora na área de genealogia nos Estados Unidos. Durante a pesquisa da árvore genealógica de sua família deu de cara com uma informação interessante. Um tio-bisavô, Remus Reid, era ladrão de cavalos e assaltante de trens. No verso da única foto existente de Remus (em que ele aparece ao pé de uma forca) está escrito: “Remus Reid, ladrão de cavalos, mandado para a Prisão Territorial de Montana em 1885, escapou em 1887, assaltou o trem Montana Flyer por seis vezes. Foi preso novamente, desta vez pelos agentes da Pinkerton, condenado e enforcado em 1889.”

Acontece que o ladrão Remus Reid é ancestral comum de Judy e do senador pelo estado de Nevada, Harry Reid. Então Judy enviou um email ao senador solicitando informações sobre o parente comum. Mas não mencionou que havia descoberto que o sujeito era um bandido.A atenta assessoria do Senador respondeu desta forma:

“Remus Reid foi um famoso cowboy no Território de Montana. Seu império de negócios cresceu a ponto de incluir a aquisição de valiosos ativos eqüestres, além de um íntimo relacionamento com a Ferrovia de Montana. A partir de 1883 dedicou vários anos de sua vida a serviço do governo, atividade que interrompeu para reiniciar seu relacionamento com a Ferrovia. Em 1887 foi o principal protagonista em uma importante investigação conduzida pela famosa Agência de Detetives Pinkerton. Em 1889 Remus faleceu durante uma importante cerimônia cívica realizada em sua homenagem, quando a plataforma sobre a qual ele estava cedeu.”

Não é sensacional? Palavras e números podem ser torturados pra dizer o que o torturador quiser!

Portanto, é indispensável se preparar para os discursos, matérias e reportagens com os quais você se depara diariamente. E esse processo de preparo começa com o estudo, com a leitura. Quem não lê não está preparado para assistir televisão, por exemplo. É a leitura que nos ajuda a construir um repertório suficiente para embasar nossas reflexões, enriquecer nossas comparações, orientar nossos julgamentos e refinar nossa capacidade de tomada de decisão.

Através da leitura tomamos contato com as idéias de homens e mulheres que ao longo da história trataram dos problemas que nos afligem. Com a leitura aprendemos como o mundo funciona e como o homem se comporta em sociedade. Aprendemos sobre po-lí-ti-ca.

Através da leitura e do estudo é possível desenvolver uma espécie de “sexto sentido” para perceber os malabarismos dialéticos, a tortura das palavras. No mínimo isso ajuda a não fazer papel de trouxa.

Sem leitura, repertório e pensamento crítico nos tornamos reféns dos torturadores profissionais de palavras. E então um “não”passa a significar “sim”. E vice versa. Erros viram acertos. Ladrões são tratados como empresários. Planos eleitoreiros são vendidos como a salvação da pátria. Terroristas passam por refugiados. Corrupção vira caixa dois. Assassinos transformam-se em vítimas.

Ah, ia me esquecendo! Em vez de simplesmente acreditar e repassar, decidi ler e estudar. E descobri que a história de Judy, Harry e Remus Reid é falsa. É uma mentira que circula pela internet há mais de dez anos...

Viu só?
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*Luciano Pires é editor do Café Brasil. Publica seus artigos às sextas-feiras.
Fonte: http://www.portalcafebrasil.com.br/artigos/torturadores-de-palavras?29/11/2012

"O caminho do Advento nos convida a não ter medo da noite"

Carta de dom Leuzzi aos estudantes universitários de Roma, por ocasião da peregrinação ao túmulo de São Pedro presidida por Bento XVI
Queridos estudantes universitários,

Ao voltar de Assis, eu pensei muitas vezes, com grande alegria, nos seus rostos serenos e sorridentes: uma nova geração de amigos apaixonados de Jesus, como Francisco e Clara!
Não fazemos nenhum gesto clamoroso: apenas o silêncio da escuta e a alegria de retornar à casa do Pai, que nos vê de longe e corre ao nosso encontro. Francisco estava certo: este é o único e verdadeiro milagre da nossa existência! Mas, em Roma, como geralmente acontece nas grandes cidades, oprimidos por tanto ruído e pelo ritmo dos compromissos e dos ires-e-vires, será possível ainda reviver esse milagre?

Eu tenho certeza de que sim. Mas temos que nos organizar, porque o tempo não é, como dizia Kant, um a-priori. É um presente! Eu não sou o tempo, mas eu estou no tempo e tenho que preenchê-lo para aproveitar a minha vida. E o que pode preencher o meu tempo?
Precisamos, acima de tudo, evitar a desordem e a confusão. Quem vive com eles tem a ilusão de dominar o tempo, mas é o tempo quem na verdade o domina. Há um tempo para cada coisa: tempo para o estudo, para a oração, para a amizade, para a partilha... E há um tempo até para o sono!

Um tempo para dormir? Sim, dormir, porque a noite nos é dada para descansar!

Na minha vida, não me lembro de ter perdido muitas noites, exceto em determinadas circunstâncias de trabalho, como ocorre com tantos irmãos que trabalham à noite para dar assistência à comunidade. Nunca estudei à noite, nunca perambulei pelas noites...  a não ser nas três vezes em que participei da peregrinação noturna ao Divino Amor!

 "Porque o repouso durante a noite 
nos prepara a surpresa de um novo dia. 
Escolher dormir durante o dia nos 
faz perder essa grande alegria!"

Todo homem, depois de cumprir com fidelidade o seu trabalho, precisa descansar para recomeçar! A primeira reação de alguns é perguntar por que descansar justamente à noite e não durante o dia. Porque o repouso durante a noite nos prepara a surpresa de um novo dia. Escolher dormir durante o dia nos faz perder essa grande alegria!

Meus pensamentos se voltam para a noite de Natal, para o silêncio daquela noite, em que uma luz brilhou: a da visita de Deus. Em muitos mosteiros do mundo, homens e mulheres velam durante a noite com o Senhor, mas o fazem por nós, para nos lembrar que em breve Ele virá e que por isso podemos dormir tranquilos. Eles merecem o nosso muito obrigado!

Mas há também um episódio do Evangelho que nos faz entender a alegria do repouso da noite. Quando Judas, decidido a trair Jesus, saiu do cenáculo, o evangelista João comenta: “e era de noite” (Jo13,30). Nós todos sabemos como Judas viveu aquela sua noite.

É de noite quando o homem quer dormir e tentar esquecer! Ele não dorme por causa do cansaço do trabalho, mas para esquecer o que ele viveu de dia. Ele não espera que o novo dia nasça com alegria, mas tem medo e desânimo.

Assim, ele dorme também de dia; na verdade, ele dorme sempre! Nada mais diferencia o dia e a noite, porque o tempo se torna homogêneo, incolor. Quem confiaria a responsabilidade de liderar uma instituição, uma empresa, uma realidade educacional a quem não consegue dormir e, quando dorme, só dorme para tentar esquecer? Será que crise atual não é causada por homens e mulheres que não se lembram por que vivem na noite e dormem durante o dia?

A resposta, queridos amigos, cabe a vocês, porque vocês assumirão responsabilidades na Igreja e na sociedade. Ai de nós se dissiparmos a noite para nos esquecermos das responsabilidades para com os nossos irmãos! Esta é a grande escolha que está diante de nós: dormir para esquecer ou dormir para recomeçar!

 "Não durmam para esquecer; 
durmam serenos, à noite, 
porque Deus se fez criança para vocês 
poderem pegá-lo nos braços."

O caminho do advento, que vamos começar com o papa Bento XVI na celebração das primeiras vésperas do primeiro domingo, é um convite a não termos medo da noite, porque o tempo está repleto da Palavra que se fez carne no seio de Maria. No silêncio da noite, a luz brilha e nos vigia, como os pais que guardam o sono dos filhos em casa!

Queridos amigos, esta é a certeza verdadeira da nossa vida. Não corram, não façam barulho, não dêem cotoveladas. Pensem em recuperar o tempo da noite para dormir, em descansar com o Senhor, para que, quando acordarem, o sol os desperte (visitavit nos Oriens ex alto), os ilumine e os guie no novo dia.

O seu hoje não é a repetição do ontem, mas é uma nova etapa rumo à plenitude da sua vida. Não durmam para esquecer; durmam serenos, à noite, porque Deus se fez criança para vocês poderem pegá-lo nos braços. Ele nunca abandonará vocês e, mais importante, nunca os trairá!

É Natal. Para vocês também! Feliz Natal!

+ Lorenzo Leuzzi
Bispo Auxiliar de Roma
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FONTE: ROMA, quinta-feira, 29 de novembro de 2012 (ZENIT.org) – Publicamos a carta de dom Lorenzo Leuzzi, bispo auxiliar da diocese de Roma e delegado para o Instituto da Pastoral Universitária, dirigida a todos os estudantes das universidades de Roma que participarão na peregrinação de 1º de dezembro até o túmulo do Apóstolo Pedro, presidida pelo papa Bento XVI, em preparação para o Natal.
Destaques do BLOG.

Morte, chá e duas colheres de açúcar

Sucesso em diversos países ao redor do mundo, “Café da Morte” chega a São Paulo
 
Jayd Kent tinha medo da morte. Pensava sobre o assunto três ou quatro vezes ao dia. Também temia que descobrissem sua fobia e a trancassem em um hospital psiquiátrico. Decidiu permanecer calada – até que, certo dia, descobriu um grupo que se reunia em cafés de Londres para discutir o assunto. Arriscou-se a contar sua história e recebeu, em troca, apoio e relatos semelhantes. E não se sentiu mais anormal.

 "... existem três modos de encarar a vida: 
como um recém-nascido, 
um moribundo ou 
uma pessoa de meia-idade."

A história acima é uma das favoritas de Jon Underwood, 40, ex-funcionário da prefeitura de Londres que, inspirado pela iniciativa do sociólogo suíço Bernard Crettaz, organizador de “Cafés da Morte” desde 2004, levou o evento à cidade inglesa. “A ideia é ajudar as pessoas a tomar consciência da finitude de suas vidas e, a partir disto, passar a aproveitá-las mais intensamente”, diz Underwood.

Em um ambiente informal e servidas de bolos e chá – “o açúcar ajuda a deixá-las mais confortáveis e relaxadas”, diz –, pessoas de variadas idades se encontram para debater o assunto. Além da Suíça e Londres, o modelo já acontece na França, Bélgica, Estados Unidos e Austrália.

Agora, o evento chega ao Brasil: o Espaço Revista CULT, em São Paulo, sedia o primeiro encontro, coordenado pelo filósofo Juliano Pessanha. “Acho interessante a discussão. Falar da morte é um tabu, as pessoas preferem esquecer que ela existe”, diz.

Para ele, existem três modos de encarar a vida: como um recém-nascido, um moribundo ou uma pessoa de meia-idade. “Enquanto os dois primeiros se equivalem por possuírem o encantamento, o outro não tem consciência de sua condição passageira na Terra e, portanto, tende a não dar valor às pequenas experiências cotidianas”.
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Reportagem por  Helder Ferreira
Fonte:  http://revistacult.uol.com.br/home/2012/11/morte-cha-e-duas-colheres-de-acucar/

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Paris diz 'sim' a palestinos

Gilles Lapouge*

 
O presidente François Hollande é tido como uma pessoa indecisa, insegura e medrosa. A fama é justa? Em política externa, ele não corresponde a esse retrato. Ao contrário. Hollande consegue resistir ao impacto de buldôzeres como a alemã Angela Merkel, de se atirar de peito aberto, por exemplo, no Oriente Médio, esse formigueiro de problemas, de hostilidades, de fronteiras e trincheiras, enquanto a maior parte das outras potências corre para o abrigo. 

Foi o que o presidente fez, dias atrás, ao reconhecer na frente de todos a Coalização Nacional Síria, que agrupa os rebeldes em luta contra o ditador Bashar Assad. E agora ele recomeça. Anunciou que votará na ONU em favor da solicitação apresentada pelo presidente da Autoridade Palestina, o líder da Fatah, Mahmoud Abbas. 

O que pede Abbas? Ele reclama para a Palestina o status de Estado observador da ONU, conceito ambíguo e nebuloso, melhor do que o simples assento provisório de observador, que a Palestina já ocupa há anos, mas bem inferior a uma verdadeira cadeira na ONU. 

A questão é bem delicada. A Palestina está dilacerada entre duas tendências, o Fatah, de Abbas, que exerce a diplomacia e reprova a luta armada e o terrorismo. E o Hamas, que controla a Faixa de Gaza e jamais renunciou à luta armada. Por que Abbas apela à Assembleia-Geral e não ao Conselho de Segurança da ONU? Porque na Assembleia ele dispõe de uma maioria, graças aos países do sul, enquanto no Conselho de Segurança, os EUA, que são o principal aliado de Israel, vetariam imediatamente qualquer solicitação da Fatah. 

Para Abbas, seria importante nesse embate contar com o apoio de algumas potências ocidentais, particularmente na Europa. Por isso, a posição da França faz sentido: Paris poderá convencer, pelo exemplo, outros membros da União Europeia. 

A decisão de Hollande já mostrou um primeiro resultado. A Espanha apoia agora a solicitação de Abbas. Madri reconhece que a decisão de Paris funcionou como uma alavanca e levou a Espanha a dar o grande passo. A Grã-Bretanha será a próxima? O premiê David Cameron hesita. Mas ele precisa levar em conta a opinião pública do seu país- 54% dos britânicos aprovam a reivindicação palestina. 

Duas ou três outras capitais europeias afirmam estar dispostas a dar também seu apoio a Abbas. Mas há um grande bloco do países favoráveis à abstenção, com a Alemanha à frente.
Em Israel, predomina a moderação. Em primeiro lugar, porque Abbas é uma pessoa confiável, ao contrário dos líderes do Hamas da Faixa de Gaza. Em segundo lugar, porque a mudança de estatuto da Palestina não mudaria profundamente a atual situação. Certamente, o novo status palestino permitiria acesso às agências da ONU, como a Unesco. Mas, para o governo israelense, isso não constituiria um motivo para declarar guerra. 
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* Jornalista e escritor francês.
Fonte:  http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,paris-diz-sim-a-palestinos-,966745,0.htm
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Torcida por Luis Fernando Verissimo

Juremir Machado da Silva*

Tenho torcido muito pela recuperação total de Luís Fernando Verissimo. Quero que todo ser humano tenha saúde e longa vida. Há 17 anos, voltando da França, critiquei Verissimo. Ataquei o seu estilo, que raramente me convence, o pouco engajamento do seu pai na luta contra todos os abusos da ditadura, não apenas contra a censura, e o esquerdismo do cronista, que, no contexto da queda do muro de Berlim e do inventário do estragos do stalinismo, parecia-me esdrúxulo e anacrônico. Não me arrependo de coisa alguma.

Por linhas tortas, minha vida só melhorou depois desse episódio. Devo dizer, no entanto, que, reflexão feita, num ponto ele tinha razão: a sua crítica à direita. O posicionamento político de Verissimo é digno de aplauso.

Não interessa se tardio ou nos bons tempos.

Na época da polêmica, por causa da qual perdi um emprego, eu, como o anarquista que continuo sendo, quis criticar o stalinismo e o direitismo ao mesmo tempo. Não era possível. O Brasil, mal saído da ditadura, não estava maduro para isso. Verissimo pragmaticamente mirava no alvo certo: o reacionarismo responsável pelos séculos de desigualdade, de miséria e de parasitismo das elites no Brasil. Continuo convencido, porém, de que Erico poderia, com seu prestígio, ter sido mais veemente na denúncia aos horrores do hediondo regime militar brasileiro, o que, de resto, muitos intelectuais e jornalistas cobraram dele. Cada homem, no entanto, como diria Ortega y Gasset, é ele e suas circunstâncias. Luís Fernando foi inflexível na defesa da memória do pai. Eu faria o mesmo em relação ao meu.

Outro ponto para ele.

Condeno apenas os métodos.

A direita odeia Verissimo. Odeia ainda mais na medida em que jamais pôde atingi-lo. Se pediu a sua cabeça aos patrões, como costuma fazer quando incomodada, obviamente não conseguiu, embora, vez outra, o patrão hesitasse. Parte da direita passou a gostar de mim por imaginar que, tendo me tornado desafeto dele, eu passava a integrar automaticamente as fileiras do reacionarismo. As simpatias posteriores à minha degola eram pura tentativa de cooptação. O meu ângulo de ataque, porém, havia sido outro. Por mais que meus inimigos duvidem, continuo não sendo de esquerda nem de direita. Sou libertário e teimoso. Só me guio pela minha consciência. Franco-atirador, não me importo de ser minha primeira vítima. A idade me ensinou, porém, que o anarquismo é poesia e que a realidade exige posturas mais práticas.

A esquerda brasileira é cheia de defeitos. A direita consegue ser bem pior. Verissimo, pelo jeito, compreendeu isso muito antes de mim. Sou mais lento. Essa polêmica marcou a minha vida do ponto de vista dos outros. Virei nota de rodapé na biografia de Verissimo. O resto é bola de neve: um golpe levou a outro e assim sucessivamente. Encontramo-nos três vezes depois da briga: dentro de um elevador em Belém do Pará, numa pontezinha de pedestres na avenida Ipiranga, em Porto Alegre, como se estivéssemos num clima de duelo, e em poltronas vizinhas num show. Não nos cumprimentamos.

Desejo cumprimentá-lo agora pela perspicácia política.
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* Sociólogo. Escritor. Prof. Universitário. Colunista do Correio do Pvo.
Fonte:  http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/29/11/2012
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O sentido de ver a Terra de fora da Terra

Leonardo Boff*
Os últimos séculos se caracterizaram por infindáveis descobertas: continentes, povos originários, espécies de seres vivos, galáxias, estrelas, o mundo subatômico, as energias originárias e ultimamente o campo Higgs, espécie de sutil fluido que pervade o universo; as partículas virtuais ao tocá-lo recebem massa e se estabilizam. Mas não havíamos descoberto ainda a Terra como planeta, como a nossa Casa Comum. Foi preciso que saíssemos da Terra para vê-la de fora e então descobri-la e constatar a unidade Terra-Humanidade.

Este é o grande legado dos astronautas que tiveram, por primeiro, a oportunidade de contemplar a Terra a partir do espaço exterior. Produziram em nós o que foi chamado de Overview Effect, vale dizer, “o efeito da visão de cima”. Belíssimos testemunhos de astronautas foram recolhidos por Frank White em seu livro Overview Effect (Houghton Mifflin Company, Boston 1987). Eles produzem em nós forte impacto e um grande sentimento de reverência, uma verdadeira experiência espiritual. Leiamos alguns testemunhos.

O astronauta James Irwin dizia:”A Terra nos recorda uma árvore de natal dependurada no fundo negro do universo; quanto mais nos afastamos dela, tanto mais vai diminuindo seu tamanho, até finalmente ser reduzida a uma pequena bola, a mais bela que se possa imaginar; aquele objeto vivo tão belo e tão caloroso parece frágil e delicado; contemplá-lo muda a pessoa, pois ela começa a apreciar acriação de Deus e a descobrir o amor de Deus”. Outro, Eugene Cernan, confessava:” Eu fui o último homem a pisar na lua em dezembro de 1972; da superfície lunar olhava com temor reverencial para a Terra num transfundo muito escuro; o que eu via era demasiadamente belo para ser apreendido, demasiadamente ordenado e cheio de propósito para ser fruto de um mero acidente cósmico; a gente se sentia, interiormente, obrigado a louvar a Deus; Deus deve existir por ter criado aquilo que eu tinha o privilégio de contemplar; espontaneamente surge a veneração e a ação de graças; é para isso que existe o universo”.

Com fina intuição observou Joseph P. Allen, outro astronauta:” Discutiu-se muito, os prós e os contras a respeito das viagens à lua; não ouvi ninguém argumentar que deveríamos ir à lua para poder ver a Terra de lá, de fora da Terra; depois de tudo, esta tem sido seguramente a verdadeira razão de termos ido à lua”.

Ao fazer esta experiência singular, o ser humano desperta para a compreensão de que ele e a Terra formam uma unidade e que esta unidade pertence a uma outra maior, à solar, e esta à outra ainda maior, a galáctica e esta nos remete ao inteirouniverso e o inteiro universo ao Mistério e o Mistério ao Criador.

 "Nós humanos somos aquela porção da Terra 
que sente, pensa,ama, cuida e venera."

“De lá de cima”, observava o astronauta Eugene Cernan,”não são perceptíveis as barreiras da cor da pele, da religião e da política que lá em baixo dividem o mundo.” Tudo é unificado no único planeta Terra”. Comentava o astronauta Salman al-Saud:“no primeiro e no segundo dia, nós apontávamos para o nosso país, no terceiro e quarto para o nosso continente; depois do quinto dia tínhamos consciência apenas da Terra como um todo”.

Estes testemunhos nos convencem de que Terra e Humanidade formam de fato um todo indivisível. Exatamente isso foi escrito por Isaac Asimov num artigo no The New York Times de 9 de outubro de1982 por ocasião dos 25 anos do lançamento do Sputnik que foi o primeiro a dar a volta à Terra. O título era:”O legado do Sptutnik: o globalismo”. Ai dizia Asimov:”impõe-se às nossas mentes relutantes a visão de que Terra e Humanidade formam uma única entidade”. O russo Anatoly Berezovoy que ficou 211 dias no espaço afirmou a mesma coisa. Efetivamente não podemos colocar de um lado a Terra e do outro a Humanidade. Formamos um todo orgânico e vivo. Nós humanos somos aquela porção da Terra que sente, pensa,ama, cuida e venera.

Contemplando o globo terrestre presente em quase todos os lugares, irrompe, espontaneamente em nós, a percepção de que apesar de todas as ameaças de destruição que montamos contra Gaia, o futuro bom e benfazejo, de alguma forma, está garantido. Tanta beleza e esplendor não podem ser destruídos. Os cristãos dirão: Esta Terra é penetrada pelo Espírito e pelo Cristo cósmico. Parte de nossa humanidade por Jesus já foi eternizada e está no coração da Trindade. Não será sobre as ruinas da Terra que Deus completará a sua obra. O Ressuscitado e seu Espírito estão empurrando a evolução para a sua culminância.

Uma moderna legenda dá corpo a esta crença: “Era uma vez um militante cristão do Greenpeace que foi visitado em sonho pelo Cristo ressuscitado. Este o convidou para passearem pelo jardim. O militante acedeu com grande entusiasmo. Depois de andarem por longo tempo, admirando a biodiversidade presente naquele recanto, perguntou o militante:”Senhor, quando andavas pelos caminhos da Palestina, disseste, certa feita, que voltarias um dia com toda a tua pompa e glória. Está demorando demais esta tua vinda!. Quando, finalmente, retornarás de verdade, Senhor? Depois de momentos de silêncio que pareciam uma eternidade, o Senhor respondeu:”Meu irmãozinho, quando minha presença no universo e na natureza for tão evidente quanto a luz que ilumina este jardim; quando minha presença sob a tua pele e no teu coração for tão real quanto a minha presença aqui e agora; quando esta minha presença se tornar corpo e sangue em ti a ponto de não mais precisares pensar nela; quando estiveres tão imbuído desta verdade que não mais perguntarás insistentemente como estás perguntando agora, então, meu irmãozinho querido, é sinal de que eu terei retornado com toda a minha pompa e com toda a minha glória”.
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* Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor, autor de O Tao da Libertação,Vozes 2012.
Fonte:  http://leonardoboff.wordpress.com/28/11/2012
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O caminho como arquétipo

 Leonardo Boff*

Tenho especial fascínio por caminhos, especialmente caminhos de roça, que sobem penosamente a montanha e desaparecem na curva da mata. Ou caminhos cobertos de folhas de outono, multicores e emtardes mortiças, pelos quais andava nos meus tempos de estudante, nos Alpes do sul da Alemanha. É que os caminhos estão dentro de nós. E há que se perguntar aos caminhos o porquê das distâncias, porquê, por vezes, são tortuosos, cansativos e difíceis de percorrer. Eles guardam os segredos dos pés dos caminhantes, o peso de sua tristeza, a leveza de sua alegria ao encontrar a pessoa amada.

O caminho constitui um dos arquétipos mais ancestrais da psiqué humana. O ser humano guarda a memória de todo o caminho perseguido pelos 13,7 bilhões de anos do processo de evolução. Especialmente guarda a memória de quando nossos antepassados emergiram: o ramo dos vertebrados, a classe dos mamíferos, a ordem dos primatas, a família dos hominidas, o gênero homo, a espécie sapiens/demens atual.

Por causa desta incomensurável memória, o caminho humano apresenta-se tão complexo e, por vezes, indecifrável. No caminho de cada pessoa trabalham sempre milhões e milhões de experiências de caminhos passados e andados por infindáveis gerações. A tarefa de cada um é prolongar este caminho e fazer o seu caminho de tal forma que melhore e aprofunde o caminho recebido, endireite o torto e legue aos futuros caminhantes, um caminho enriquecido com sua pisada.

Sempre o caminho foi e continua sendo uma experiência de rumo que indica a meta e, simultaneamente, ele é o meio pelo qual se alcança a meta. Sem caminho nos sentimos perdidos, interior e exteriormente. Mergulhamos na escuridão e na confusão. Como hoje, a humanidade, sem rumo e num voo cego, sem bússula e estrelas a orientar as noites ameaçadoras.

Cada ser humano é homo viator, é um caminhante pelas estradas da vida. Como diz o poeta cantante indígena argentino Atahulpa Yupanki, “o ser humano é a Terra que caminha”. Não recebemos a existência pronta. Devemos construí-la. E para isso importa rasgar caminho, a partir epara além dos caminhos andados que nos antecederam. Mesmo assim, o nosso caminho pessoal e particular nunca é dado uma vez por todas. Tem que ser construído com criatividade e destemor. Como diz o poeta espanhol António Machado: “caminhante, não há caminho, se faz caminho caminhando”.

 "Cada ser humano é homo viator, 
é um caminhante pelas estradas da vida. 
Como diz o poeta cantante indígena argentino 
Atahulpa Yupanki, “o ser humano é a Terra que caminha”. Não recebemos a existência pronta. 
Devemos construí-la."

Efetivamente, estamos sempre a caminho de nós mesmos. Fundamentalmente, ou nos realizamos ou nos perdemos. Por isso, há basicamente dois caminhos como diz o primeiro salmo da Bíblia: o caminho do justo e o caminho do ímpio, o caminho da luz ou o caminho das trevas, o caminho do egoísmo ou o caminho da solidariedade, o caminho do amor ou o caminho da indiferença, o caminho da paz ou o caminho do conflito. Numa palavra: ou o caminho que leva a um fim bom ou o caminho que leva a um abismo.

Mas prestemos a atenção: a condição humana concreta é sempre a coexistência dos dois caminhos e o entrecruzamento entre eles. No bom caminho se esconde também o mau. No mau, o bom. Ambos atravessam nosso coração. Essa é o nosso drama que pode se transformar em crise e até em tragédia.

Como é difícil separar totalmente o joio do trigo, o bom do mau caminho, somos obrigados fazer uma opção fundamental por um deles: pelo bom embora nos custe renúncias e até nos traga desvantagens; mas pelo menos nos dá a paz da consciência e a percepção de fazermos o certo. E há os que optam pelo caminho do mal: este é mais fácil, não impõe nenhum constrangimento, pois vale tudo contanto que traga vantagens. Mas cobra um preço: a acusação da consciência e os riscos de punições e até da eliminação. 

Mas a opção fundamental confere a qualidade ética ao caminho humano. Se optamos pelo bom caminho, não serão pequenos passos equivocados ou tropeços que irão destruir o caminho e seu rumo. O que conta realmente frente à consciência e diante d'Aquele que a todos julga com justiça, é esta opção fundamental.
Por esta razão, a tendência dominante na teologia moral cristã é substituir a linguagem de pecado venial ou mortal por outra mais adequada à unidade do caminho humano: fidelidade ou infidelidade à opção fundamental. Não se há de isolar atos e julga-los desconectados da opção fundamental. Trata-se de captar a atitude básica e o projeto de fundo que se traduz em atos e que unifica a direção da vida. Se esta opta pelo bem, com constância e fidelidade, será ela que conferirá maior ou menor bondade aos atos, não obstante os altos e baixos que sempre ocorrem mas que não chegam a destruir o caminho do bem. Este vive no estado de graça. Mas há também os que optaram pelo caminho do mal. Por certo passarão pela severa clínica de Deus caso acolherem misericórdia de suas maldades.

Não há escapatória: temos que escolher que caminho construir e como seguir por ele, sabendo que “viver é perigoso”(G. Rosa). Mas nunca andamos sós. Multidões caminham conosco, solidárias no mesmo destino acompanhadas por Alguém chamado:”Emanuel, Deus conosco”.
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* Teólogo. Escritor.
Fonte: http://leonardoboff.wordpress.com/2012/11/28/o-caminho-como-arquetipo/
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O Evangelho não justifica o acúmulo de riquezas.

Enzo Bianchi*

 

Este artigo do prior de Bose, Enzo Bianchi
 refere-se a um tema 
que o atual discurso cristão subestima, mas 
que é de grande importância na tradição espiritual. 
Aqui está em jogo uma grande parte 
da credibilidade da Igreja

Conhecemos bem o episódio evangélico em que uma mulher quebra um vaso de alabastro que contém um perfume preciosíssimo e o derrama sobre a cabeça de Jesus, Judas e os outros discípulos contestam esse gesto, acusando a mulher de desperdiçar o perfume: seria melhor vendê-lo – dizem – e ajudar os pobres com o dinheiro obtido! Mas Jesus vê nesse ato gratuito o amor profético por ele, dirigindo-se para a morte, e não só o justifica, mas o relaciona o anúncio do Evangelho à memória dessa mulher (cf. Mc 14, 3-9; Mt 26, 6-13; Jo 12, 1-8).

No cristianismo, não há lugar para o legalismo, mas é preciso viver a gratuidade, a liberdade e, no limite, o excesso de beleza. Isso, porém, não justifica nem o acúmulo de riqueza, nem o luxo de quem quer se impor, se fazer ver, ostentar a própria arrogância.

Além disso, os profetas de Israel já haviam lançado injúrias contra os reis de Jerusalém, que se construíam casas suntuosas (cf. Jer 22, 13-17), contra as mulheres que colocavam à mostra ornamentos e joias (cf. Is 3, 16-24), contra os poderosos que banqueteavam lautamente todos os dias (cf. Am 6, 4-7)...

E quando apareceu João Batista para pregar a conversão, "estava vestido com pêlos de camelo, com um cinto de couro na cintura" (Mc 1, 6; Mt 3, 4), como os antigos profetas, pobres e quase nus. Apenas com a sua pessoa, ele contestava – segundo as palavras do próprio Jesus – "aqueles que vestem roupas de luxo e estão nos palácios dos reis" (Mt 11, 8; cf. Lc 7, 25).

Os Padres da Igreja só continuariam essa tradição, estendendo a sua crítica à vida da Igreja.

João Crisóstomo lembra que "o corpo de Cristo que está sobre o altar não precisa de mantos, mas sim de almas puras" (Homilias sobre Mateus 50, 3). Ambrósio afirma ter "quebrado e vendido os vasos sagrados para resgatar prisioneiros" (Os Deveres II, 28, 136). Bernardo de Claraval também se torna voz da sobriedade exigida aos sacerdotes e bispos, na consciência do contratestemunho oferecido quando se privilegia a exterioridade e a aparência com relação à intensidade da vida espiritual. Mas essa sua correção fraterna nem sempre foi bem recebida pelos destinatários: ele mesmo recorda ter denunciado o luxo e as extravagâncias mesmo de homens da Igreja, mas confessa que, "quando escreve isso em uma carta, eles desprezam a sua leitura, ou, se por acaso a leem, ficam indignados com quem a escreveu" (Sermões sobre o Cântico 77, 2).

Sim, às vezes a vaidade se torna uma tentação na Igreja também, e por isso o Concílio lembrou que "os ritos devem brilhar pela sua nobre simplicidade" (Sacrosanctum Concilium 34) e "as vestes e ornamentos sagrados por uma beleza que seja nobre" (cf. ibid. 124). Há um estilo absolutamente decisivo na vida da Igreja, o estilo que sempre deve significar a glória de Deus na simplicidade e na beleza que não ofuscam, que não confundem os pobres e os necessitados.

Certamente não é fácil fazer escolhas: sempre há o risco de uma rigidez legalista que não conhece a gratuidade nem a alegria; ou, ao contrário, de um luxo inapreensível, que lembra os palácios dos reis. Recentemente, o Papa Bento XVI também retomou com força a "invectiva do apóstolo Tiago contra os ricos desonestos, que põem a sua segurança nas riquezas acumuladas à força da opressão (cf. Tg 5, 1-6)" e que depois a ostentam com vanglória.

Em todo caso, justamente com relação ao luxo, alguns acontecimentos dos nossos dias nos ensinam que quando há arrogância, exibição de poder, luxo desenfreado pelos poderosos, o seu fim e a devastação podem estar muito mais perto do que se possa imaginar.

De fato – como canta o salmista – o luxo e a riqueza desenfreada impedem a compreensão, e assim se acaba percorrendo um caminho mortífero, como animais levados ao matadouro (cf. Sl 49, 21), que não entendem o que está acontecendo ao seu redor.
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* Prior de Bose.
O artigo foi publicado no blog Sperare per Tutti, 26-11-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU on line, 29/11/2012
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