Estudo desenvolvido no IFCH por antropóloga
é constituído por três frentes etnográficas
é constituído por três frentes etnográficas
O Ambulatório Integrado dos Transtornos
do Impulso (Amiti), do Hospital das Clínicas de São Paulo, nasceu focado
principalmente no jogo patológico – compulsão para jogos de azar que
traz prejuízos emocionais, financeiros e sociais a muitas pessoas. Certo
dia, um médico foi procurado pela paciente cuja compulsão era discar o
número 145 da Telesp, serviço de linhas cruzadas para bate-papo entre
três ou mais participantes; acabava marcando encontros com vários deles e
assim seu dinheiro esvaía. “Mas qual é o jogo? Sua história não bate
com jogo patológico”, indagou o médico. A resposta: “Como não? Eu jogo o
jogo do amor”.
Ainda que o diálogo
não esteja transcrito fielmente, ilustra o surgimento no país da
especialidade voltada à adicção (ou vício) em sexo e amor. Foi no Amiti
que a antropóloga Carolina Branco de Castro Ferreira realizou parte do
trabalho de campo para a sua tese de doutorado, orientada pela
professora Adriana Grácia Piscitelli. Intitulada “Desejos regulados:
grupos de ajuda mútua, éticas afetivo-sexuais e produção de saberes”, a
tese foi defendida em outubro junto ao Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas (IFCH) da Unicamp.
“O vício
em sexo e amor é uma categoria relativamente nova, datada de meados da
década de 1960, vindo a ser divulgada em diversas mídias e popularizada
com mais intensidade nos últimos 20 ou 30 anos”, explica Carolina.
Segundo
Carolina Ferreira, seu estudo foi constituído por três frentes
etnográficas. A primeira junto a associações anônimas de autoajuda
frequentadas por pessoas com compulsão sexual e amorosa. A segunda
envolvendo a análise e reflexão sobre a circulação desses sujeitos e de
livros e outros materiais de autoajuda, bem como da propagação e
visibilidade de noções afetivo-sexuais por meio da mídia, novelas e
filmes. E a terceira sobre o surgimento de categorias médicas e
conceitos “patologizadores” relacionados ao amor e ao sexo.
“Na
maioria dos trabalhos em ciências sociais, pensa-se o surgimento de uma
categoria médica e como esta categoria influi na vida das pessoas. Eu
fiz o contrário, começando o trabalho de campo pelos grupos anônimos,
considerados como produtores de saberes, de uma expertise leiga”,
informa a antropóloga. “Fui até o Mada – Mulheres que Amam Demais
Autônomas – e percebi que as mulheres não frequentavam apenas aquele
grupo, mas muitos. Isso porque elas explicam a adicção sexual e amorosa a
partir, também, de um endividamento pessoal por causa do uso de
medicamentos, álcool ou drogas; havia uma narrativa que conectava vários
vícios.”
Ao seguir o circuito
percorrido por essas pessoas, Carolina constatou que não valia a pena se
ocupar de apenas um grupo, mas observar o fluxo dentro de uma rede de
variados grupos. “A primeira dessas entidades no Brasil foi dos
Alcoólicos Anônimos (AAA), que teve a sua metodologia adaptada para
outras categorias, como de neuróticos, introvertidos e narcóticos
anônimos. Eles funcionam baseados sobretudo na experiência: se digo que
sou alcoólatra ou viciado em sexo, este dizer legitima a experiência e
por isso posso participar do grupo. Não há mediação de especialistas,
embora muitos se relacionem com médicos ou psicólogos.”
Mas,
afinal, quem é o viciado em sexo e amor? “Segundo eles próprios, é
aquele que não fica sem se apaixonar, sem um relacionamento”, diz a
pesquisadora. “Existem vários jogos nisso. Quando surge a figura do
adicto sexual, a sua cara é de homem. Dez anos depois o problema é
associado à mulher, que só aparece como viciada em sexo quando o amor
entra em cena. No limite, é para não perder a parceria de determinados
homens que a mulher, segundo discursos de especialistas, se submete a
fazer sexo na hora que não quer ou com quem não quer. Produzindo a noção
de dependência emocional, de amor. Vejo esta forte marca de gênero,
tanto por parte de quem frequenta os grupos, como na visão médica.”
Carolina
Ferreira afirma na tese que o conjunto de informações colhidas revelou
que a socialidade produzida nos grupos anônimos opera a partir de ideias
e categorias específicas. “Nesta socialidade, o engajamento emocional
envolve a produção de teorias nativas da doença e horizontes éticos
afetivo-sexuais criados a partir de práticas pedagógicas no âmbito
amoroso-sexual. Há uma espécie de bricolagem entre saberes médicos e
psicológicos. Também entram noções de uma religiosidade laicizada: a
crença em um poder superior, não de um Deus como o concebido, mas de um
deus transcendente, criado na imanência das relações colocadas em jogo
nos grupos.”
Um exemplo de teoria
nativa da doença, de acordo com a autora da pesquisa, é a ideia de uma
anorexia social, sexual e emocional, que ela não encontrou no hospital
ou nos livros de autoajuda. “A teoria é para um transtorno de outra
ordem, não a anorexia como a conhecemos, mas de uma metáfora para tratar
de determinadas tensões, principalmente nas relações sociais: a busca
de parcerias afetivo-sexuais por parte das mulheres e, no caso dos
homens, as relações travadas no mercado do sexo, como por clientes de
prostitutas ou viciados em vídeos e revistas de pornografia. Para lidar
com uma suposta falta, eles utilizam esta categoria de anorexia, que
seria um transtorno físico-moral.”
Regulação dos desejos
Na
tese, Carolina procurou abordar o aparecimento de determinadas
categorias médicas e psicológicas que “patologizam” a sexualidade, no
intuito de regular alguns comportamentos e desejos. “A adicção em sexo e
amor está dentro do conceito de vício, de compulsão. Existe uma
diferencial na produção e nas relações de saberes entre os grupos de
autoajuda e o campo médico, principalmente diante de toda uma discussão
sobre o uso de medicamentos. Embora o Amiti, no caso, priorize bastante
os tratamentos terapêuticos em grupos, uma questão que merece atenção no
que se refere à regulação da sexualidade é o uso de medicamentos e da
relação pejorativa que pode se estabelecer entre identidades e práticas
sexuais.”
Agora em 2012, lembra a
antropóloga, o chamado hypersexual disorder aparece incluído na quinta
revisão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM,
na sigla em inglês), publicação da Associação Americana de Psiquiatria
que lista diferentes categorias de transtornos mentais e critérios para
diagnosticá-los. “Os grupos, produzem as próprias categoria, mas vejo
um diferencial na relação de poder quando certas convenções saem do
campo leigo e entram para o campo médico-científico. É uma janela de
pesquisa que se abre.”
Segundo
Carolina, as categorias leigas que circulam dentro dos grupos anônimos
produzem conhecimentos que acabam bastante difundidos, por exemplo,
através dos livros de autoajuda. “Desde a década de 90, houve no Brasil
um aumento de 270% desses títulos no mercado editorial. Essas categorias
vulgatas servem um pouco como intermediários culturais, tradutores de
um saber médico-científico para a linguagem mais popular, mas também
acabam produzindo conhecimento.”
Outro
aspecto interessante ressaltado por Carolina Ferreira é o que os
participantes buscam dentro dos grupos. “Há uma busca de éticas
afetivo-sexuais em que essas pessoas nem são bonecos normatizados pelo
que o grupo diz, tampouco possuem livre arbítrio para fazer escolhas que
não estejam reguladas por questões sociais. Os grupos abrem um
horizonte de gradientes pelos quais as pessoas vão se movimentando, se
aproximando ou se afastando de noções consideradas transgressoras,
adquirindo competências emocionais com as quais vão jogar em outros
campos sociais, como por exemplo, na busca de parcerias amorosas e de um
trabalho melhor, produzindo noções de mobilidade e de ascensão social.
No começo da pesquisa, imaginava que os grupos eram frequentados por
pessoas de classes alta e média, que vão ao psicanalista. Mas eu
sugeriria que vem ocorrendo uma popularização cada vez maior, abrindo o
leque para classes média/média e média/baixa.”
Publicação
Tese: “Desejos regulados: grupos de ajuda mútua, éticas afetivo-sexuais e produção de saberes”
Autora: Carolina Branco de Castro Ferreira
Orientadora: Adriana Grácia Piscitelli
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)
Autora: Carolina Branco de Castro Ferreira
Orientadora: Adriana Grácia Piscitelli
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)
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Fonte: http://www.unicamp.br/unicamp/ju/547/tese-mergulha-no-universo-de-viciados-em-sexo-e-amor 26/12/2012
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