José Castello*
Algumas palavras, difíceis palavras, do escritor americano Philip Roth, que li em um
post de Guilherme Freitas no "Prosa On Line", não cessam de me
incomodar. Elas foram transcritas de uma entrevista que o escritor
concedeu à revista francesa "Les Inrockuptibles", em outubro
passado, quando anunciou o fim de sua carreira literária. Diz Roth, de
79 anos: "Escrever é estar sempre errado. Todos os nossos rabiscos
contam a história de nossos fracassos".
Sábias, preciosas palavras para um mundo em que não apenas muitos escritores, mas intelectuais, políticos, gurus, doutores, cientistas, especialistas de todas as áreas, agitam enfaticamente suas verdades. Não é qualquer um que consegue, como Roth, admitir (aceitar) a insuficiência dos próprios pensamentos. Não é qualquer um que sustenta, com coragem, os próprios (e estreitos) limites. No entanto, as duras palavras de Roth, ao delimitarem a potência humana, tornam a vida mais aceitável. E mais ainda: tornam a criação possível.
Andei relendo, com meus alunos do Laboratório On Line de Jornalismo Cultural, do Itaú Cultural, relendo como se fosse pela primeira vez, as "Seis propostas para o próximo milênio" de Italo Calvino. Assim como Roth, Calvino foi também um escritor de grande coragem intelectual. Por mais que apostemos em valores como a clareza e a precisão, ele nos mostrou, a maior parte do que desejamos dizer fica, inevitavelmente de fora. Escritores se parecem com os velhos lanterninhas de cinema: na sala escura, com seu foco de luz bizonho, desenham (escrevem) um delicado caminho. Um destino. Ele nos permite avançar (ler). Mas a maior parte da cena permanece nas sombras.
Para não me perder, volto a Roth: "Escrever é se frustrar: passamos todo nosso tempo escrevendo a palavra errada, a frase errada, a história errada. Nos enganamos sem parar, falhamos sem parar, e assim precisamos viver em uma frustração perpétua". Uma ficção não passa do resultado de um acúmulo de ensaios, tentativas e decepções. Eles se sucedem, como pragas: você quer dizer isso e escreve aquilo. Experimenta clarões, é tomado por imagens, iluminações, sonhos, mas as palavras não os capturam. E, a cada esforço, uma decepção. A cada parágrafo, a cada linha, a cada palavra, a certeza de que não se conseguiu. Contudo, é pelo acúmulo de enganos que, enfim, se escreve. Não o que se desejou escrever, mas o que se impôs. O que enfim se escreveu. Autonomia absoluta da verdade, que é sempre indiferente às conclusões humanas.
"Passamos o tempo dizendo a nós mesmos: isso não está funcionando, preciso recomeçar" (Roth). Há uma hora, porém, na qual - por cansaço, por desespero, ou (que seja) por vaidade _ o escritor, apesar de si, contra si, declara o livro pronto. Mas ele não está pronto. Não é o que desejou escrever. Se relê, já não aceita o que releu. Aquelas palavras já não parecem suas. Já não lhe pertencem. E, no entanto, ousadia máxima: é preciso assinar. Por exemplo: "José Castello". Cada vez que assino meu nome no fecho de um texto, sou dominado pelo sentimento de fraude. Não era isso o que eu buscava. Não: isso não sou eu. Não consegui _ como se outro tivesse tomado meu lugar. Como diz Roth: "Isso não está funcionando", pois uma assinatura não é garantia de nada. No entanto, nós a conservamos em seu lugar de ouro. Firma reconhecida, ou desconhecida? E o pior: ao leitor _ mesmo o mais corajoso _ só resta acreditar no que lê. Um leitor não tem escolha: o máximo que pode fazer é fechar um livro.
Curioso que o romance de despedida de Roth se chame "Nêmesis". No "Aurélio", encontro um verbete que me ajuda: "indignação provocada por uma partilha injusta ou
desigual". É injusta e desigual a relação que o escritor estabelece com seu texto. Costumamos acreditar que o escritor é o "autor": aquele que faz e acontece. Dizemos: Philip Roth, "autor de Nêmesis". Contudo, na partilha das origens, a maior parte não vem de quem escreve. Ou vem, mas é à sua revelia. A maior parte não lhe pertence, e ele só mal, muito mal, a sustenta. E, se faz isso, é porque tem consciência de seus limites. "Preciso recomeçar", o escritor se diz, enquanto luta para chegar a si. Recomeça, mas logo se desvia de novo. Desvia-se? O escritor (a escrita) é esse desvio, e não outra coisa. Diz Roth: "Escrever é se frustrar". Você não acerta e, no entanto, precisa ficar com seu erro. Porque você é isso: você é o seu erro.
O que podia ser mais humano? Desse deslocamento (dessa fratura) não procedem só a piedade e a compaixão, mas também a coragem. Saber que será assim, sempre assim, e no entanto seguir em frente. "Escrever é estar sempre errado" (Roth), mas tudo o que resta é persiste no erro como _ estranho destino _ única via possível para uma aproximação da verdade. Solavancos, tropeções, derrapadas, deslizes: esses são os verdadeiros materiais do escritor. Palavras, textos, firmas irreconhecíveis. Por isso, eu acredito, a literatura é tão potente: ela faz de sua fraqueza exposta, como uma ferida escandalosa, mas verdadeira _ a sua força.
Sábias, preciosas palavras para um mundo em que não apenas muitos escritores, mas intelectuais, políticos, gurus, doutores, cientistas, especialistas de todas as áreas, agitam enfaticamente suas verdades. Não é qualquer um que consegue, como Roth, admitir (aceitar) a insuficiência dos próprios pensamentos. Não é qualquer um que sustenta, com coragem, os próprios (e estreitos) limites. No entanto, as duras palavras de Roth, ao delimitarem a potência humana, tornam a vida mais aceitável. E mais ainda: tornam a criação possível.
Andei relendo, com meus alunos do Laboratório On Line de Jornalismo Cultural, do Itaú Cultural, relendo como se fosse pela primeira vez, as "Seis propostas para o próximo milênio" de Italo Calvino. Assim como Roth, Calvino foi também um escritor de grande coragem intelectual. Por mais que apostemos em valores como a clareza e a precisão, ele nos mostrou, a maior parte do que desejamos dizer fica, inevitavelmente de fora. Escritores se parecem com os velhos lanterninhas de cinema: na sala escura, com seu foco de luz bizonho, desenham (escrevem) um delicado caminho. Um destino. Ele nos permite avançar (ler). Mas a maior parte da cena permanece nas sombras.
Para não me perder, volto a Roth: "Escrever é se frustrar: passamos todo nosso tempo escrevendo a palavra errada, a frase errada, a história errada. Nos enganamos sem parar, falhamos sem parar, e assim precisamos viver em uma frustração perpétua". Uma ficção não passa do resultado de um acúmulo de ensaios, tentativas e decepções. Eles se sucedem, como pragas: você quer dizer isso e escreve aquilo. Experimenta clarões, é tomado por imagens, iluminações, sonhos, mas as palavras não os capturam. E, a cada esforço, uma decepção. A cada parágrafo, a cada linha, a cada palavra, a certeza de que não se conseguiu. Contudo, é pelo acúmulo de enganos que, enfim, se escreve. Não o que se desejou escrever, mas o que se impôs. O que enfim se escreveu. Autonomia absoluta da verdade, que é sempre indiferente às conclusões humanas.
"Passamos o tempo dizendo a nós mesmos: isso não está funcionando, preciso recomeçar" (Roth). Há uma hora, porém, na qual - por cansaço, por desespero, ou (que seja) por vaidade _ o escritor, apesar de si, contra si, declara o livro pronto. Mas ele não está pronto. Não é o que desejou escrever. Se relê, já não aceita o que releu. Aquelas palavras já não parecem suas. Já não lhe pertencem. E, no entanto, ousadia máxima: é preciso assinar. Por exemplo: "José Castello". Cada vez que assino meu nome no fecho de um texto, sou dominado pelo sentimento de fraude. Não era isso o que eu buscava. Não: isso não sou eu. Não consegui _ como se outro tivesse tomado meu lugar. Como diz Roth: "Isso não está funcionando", pois uma assinatura não é garantia de nada. No entanto, nós a conservamos em seu lugar de ouro. Firma reconhecida, ou desconhecida? E o pior: ao leitor _ mesmo o mais corajoso _ só resta acreditar no que lê. Um leitor não tem escolha: o máximo que pode fazer é fechar um livro.
Curioso que o romance de despedida de Roth se chame "Nêmesis". No "Aurélio", encontro um verbete que me ajuda: "indignação provocada por uma partilha injusta ou
desigual". É injusta e desigual a relação que o escritor estabelece com seu texto. Costumamos acreditar que o escritor é o "autor": aquele que faz e acontece. Dizemos: Philip Roth, "autor de Nêmesis". Contudo, na partilha das origens, a maior parte não vem de quem escreve. Ou vem, mas é à sua revelia. A maior parte não lhe pertence, e ele só mal, muito mal, a sustenta. E, se faz isso, é porque tem consciência de seus limites. "Preciso recomeçar", o escritor se diz, enquanto luta para chegar a si. Recomeça, mas logo se desvia de novo. Desvia-se? O escritor (a escrita) é esse desvio, e não outra coisa. Diz Roth: "Escrever é se frustrar". Você não acerta e, no entanto, precisa ficar com seu erro. Porque você é isso: você é o seu erro.
O que podia ser mais humano? Desse deslocamento (dessa fratura) não procedem só a piedade e a compaixão, mas também a coragem. Saber que será assim, sempre assim, e no entanto seguir em frente. "Escrever é estar sempre errado" (Roth), mas tudo o que resta é persiste no erro como _ estranho destino _ única via possível para uma aproximação da verdade. Solavancos, tropeções, derrapadas, deslizes: esses são os verdadeiros materiais do escritor. Palavras, textos, firmas irreconhecíveis. Por isso, eu acredito, a literatura é tão potente: ela faz de sua fraqueza exposta, como uma ferida escandalosa, mas verdadeira _ a sua força.
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* José Castello
Jornalista e escritor, colunista do caderno
Prosa, de O Globo, autor de "Vinicius de Moraes: O poeta da paixão"
(Companhia das Letras, 1993), "Inventário das sombras" (Record, 1999) e
"A literatura na poltrona" (Record, 2007), além de "Ribamar" (Bertrand
Brasil, 2010, prêmio Jabuti de melhor romance de 2011)
Fonte: http://oglobo.globo.com/blogs/literatura/ 14/11/2012
Imagem da Internet
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