Roberto Damatta*
A democracia promove, sem cessar, aparições. Começa a ficar
complicado para quem governa domesticar fantasmas. Os espíritos surgem
naquilo que Tocqueville descobriu como sendo o espírito da vida
democrática: a opinião pública. Esse poder inventado pela igualdade que
ele chamava de força geradora da vida liberal.
Sem opinião pública, as aparições somem ou são controladas. Hitler e
sua camarilha domesticavam o fantasma do projeto de extermínio de judeus
e de categorias marginais como os deficientes, os ciganos e os
homossexuais. Havia suspeição do extermínio, não a prova cabal que
apareceu na derrocada do nazismo, em 1945, confirmando as atrocidades. O
mesmo ocorreu com as torturas da ditadura militar. As torturas eram
negadas, ninguém era responsável e até hoje há quem nelas não creia ou
admita e, no entanto, tal como os fantasmas, elas existiram.
O fantasma é parente do boato, do banal "ouvi dizer" que serve como
alerta, aviso ou premonição. Os antigos psicólogos sociais escreveram
sobre o boato como um desejo secreto (a notícia da morte de uma figura
pública repudiada, por exemplo); e pelo menos um antropólogo da minha
decadente tribo - Max Gluckman - revelou como a intriga e o escândalo
eram elementos fundamentais de controle social. De fato, a igualdade de
todos perante a lei era uma fantasia no Brasil. Hoje, graças e uma
imprensa livre que honra a reportagem investigativa, pois sabe que
falcatruas jamais vão ser impressas no Diário Oficial da União,
começamos a assistir ao julgamento e à condenação de poderosos membros
do governo do PT. Se eles vão mesmo para a prisão é uma outra história,
já que pelo menos um ministro do Supremo defende multas pecuniárias em
vez de cadeia para crimes de "colarinho branco", essa excrecência
jurídica nacional. Ademais, com a figura da prescrição, é possível que
nós, o povo - as pessoas comuns, os governados -, tenhamos que indenizar
os responsáveis pela politicalha do mensalão e adjacências cujos
responsáveis já teriam cumprido suas penas. Os seus ilícitos seriam
fuxicos, fantasias, fantasmas e projeções.
O fuxico é a fumaça, o fato que a concretiza é o fogo. Onde há
fumaça, há fogo, diz-se confirmando uma perspectiva de plausibilidade
humana sem a qual a vida social seria impossível. O fuxico é a fantasia
que configura um ato antes de ele ocorrer ou surgir como fato, daí o seu
poder controlador. O boato tem que ser tratado com cuidado, tal como se
faz com as fantasias, porque certos eventos despertam o lado nosso
vingativo. Inimigos políticos tendem a fuxicar com exagero. São
inventores de fantasmas porque, muitas vezes, suas fantasias são como os
40 moinhos de vento que Dom Quixote via como gigantes. Quem não se
lembra da campanha contra o Plano Real e a sua "herança maldita"? Mark
Twain, cuja independência de pensamento causava inveja até mesmo na
América dos livres e iguais, disse uma vez que as notícias (ou boatos)
sobre sua morte eram muito exagerados.
Isso é suficiente para estabelecer o elo entre a projeção que aciona o
desejo e a fantasia. O desejo de morte do inimigo surge antes de sua
morte. O adversário vira um fantasma antes mesmo de ser enterrado.
O Brasil da era Lula está coalhado de fantasmas e, mais do que isso,
de aparições. É o que leio nos jornais com pavor e vergonha. O
julgamento do mensalão deixa ver melhor o queijo suíço de falcatruas,
nomeações indevidas e das roubalheiras programadas desses tempos. A todo
momento uma nova aparição, como é o caso da super-Rosemary Noronha,
essa prova de um aparelhamento deslavado do estado pelo partido no poder
que, obviamente, quer ser o poder. O partido que eu e milhões de
brasileiros supúnhamos que iria liquidar esse estado provedor, mas ao
mesmo tempo canalha, que sempre foi pai dos pobres e mãe dos ricos e,
hoje, é a madrinha dos correligionários que, com ele e por meio dele,
mas em nome do povo pobre, se tornam milionários!
O procurador-geral da República no seu libelo contra os mensaleiros
deu uma medida precisa dos atos vergonhosos que fizeram. O fantasma
tornou-se aparição e a aparição virou um cadáver que - espero - tenhamos
a coragem de sepultar, ao lado dos crimes cometidos contra o espírito
humano nos tempos da ditadura militar. Uma coisa tem uma óbvia ligação
com a outra. E uma não pode ser tratada como fantasma (o mensalão) e a
outra como verdade, ou vice-versa. Cabe a todos nós rasgar esse véu de
uma histórica hipocrisia, sempre justificada pela fantasia dos elos
pessoais: aos amigos o heroísmo de um passado que lhes permite tudo; aos
inimigos o opróbio da falsidade e dos interesses ocultos. O Supremo
liquidou essa lógica, colocando-a nos seus devidos termos. Todos,
inclusive e principalmente os amigos, são também sujeitos da lei.
A aparição é como os boatos e fuxicos um exemplo da operação da
opinião pública. Essa figura que, numa democracia, representa o todo e a
alma de um país democrático. Esse modo de existir que não é mais um
fantasma, mas uma realidade de nossas vidas.
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* Antropólogo. Escritor. Colunista do Estadão
Fonte: http://www.estadao.com.br/28/11/2012
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