O escritor escocês Irvine Welsh, de 54 anos, mostrou modos bem britânicos durante a entrevista que concedeu ao Valor
num café de temática africana no bairro Lake View, em Chicago, a poucas
quadras de sua casa, um dos vários cafés aonde costuma ir para criar
seus personagens às vezes malévolos e quase sempre envoltos por
narrativas sombrias como o vício em heroína ou a corrupção policial.
Munido de xícara de chá, Welsh não se negou a responder a nenhuma
pergunta, mostrando apenas leve reticência ao falar sobre a vida
pessoal, como quando explica laconicamente a cicatriz na têmpora
esquerda. "Foi uma briga de bar anos atrás, alguém me bateu com uma
garrafa."
Mas, quando se trata de macroeconomia e literatura, Welsh, que diz
acompanhar o noticiário econômico, solta a fala e discorre sobre
liberalismo, nacionalismo escocês e o que os escritores realmente
querem. E ele também quer participar da Festa Literária Internacional de
Paraty (Flip): "Gostaria muito, tenho lido bastante sobre ela", diz
Welsh. O autor conta que já passou duas semanas muito divertidas no Rio,
com direito a assistir a uma partida entre Flamengo e Botafogo.
Mundialmente famoso por "Trainspotting" (1993), mas acusado por
alguns críticos de ter perdido o gás literário nos últimos anos, Welsh
mostra que vive um momento mais focado e calmo da vida, diferente da
época logo depois do sucesso inicial, quando discotecava em casas
noturnas europeias para compensar o isolamento de escritor. Está mais
envolvido com diversos projetos, como roteiros para HBO e uma nova
adaptação de "Trainspotting" para os palcos americanos, bem como um novo
filme baseado em sua obra, no caso o romance policial "Lixo" (1998),
que deve estrear em Sundance em janeiro.
Com "Skagboys", que será lançado no Brasil pela Rocco no início do
ano, ele retomou os personagens que o eternizaram, mas evitou o
tratamento descompromissado de "Pornô" (2003), a continuação mais
bem-humorada das aventuras de Mark Renton, Sick Boy, Spud e todos os
outros fascinantes personagens da empobrecida Leith, perto de Edimburgo.
O novo livro, situado antes dos acontecimentos descritos em
"Trainspotting", versa sobre o que Welsh defende ser a desolação
econômica e social causada pelas políticas neoliberais da
ex-primeira-ministra Margaret Thatcher e os efeitos nefastos da epidemia
de heroína e aids que atingiu a Escócia no início dos anos 80.
Salpicado de recortes, como uma lista dos contaminados pelo HIV num
determinado mês em Leith, ou notícias sobre o referendo que restabeleceu
o Parlamento escocês, "Skagboys" é mais técnico e ambicioso do que
"Pornô", mas busca manter o vernáculo saboroso de "Trainspotting" e seu
elaborado desenvolvimento de personagens. A seguir, trechos editados da
entrevista.
Valor: O senhor começa "Skagboys" com uma frase
de Margaret Thatcher, deixando evidente que as políticas econômicas do
Reino Unido na época são muito importantes no romance.
Irvine Welsh: Isso moldou a nossa situação agora. As
coisas nunca mudaram de fato, Tony Blair manteve isso e [o atual premiê
David] Cameron intensificou, mas nada mudou de verdade. Já são muitos
anos de governo neoliberal no Reino Unido. Não mudou nada. O país sofreu
por causa disso, não só economicamente, nas partes da Grã-Bretanha que
são economicamente deprimidas, mas sofreu muito intelectualmente,
culturalmente, porque tem sido um sistema muito hegemônico, quase como
uma ditadura eleita, diante da maneira como essas políticas foram
buscadas. Isso causa um curto-circuito e uma aversão das pessoas. Para
mim, isso tem sido muito perigoso.
Valor: Em comparação com "Pornô", o outro livro
com o universo de "Trainspotting", "Skagboys" parece ser mais sério,
trágico e político.
Welsh: Sim, acho que tem mais a ver com os anos 80,
uma década importante, de muita mudança. "Pornô" é um livro mais
brincalhão, este é muito mais sério, "Trainspotting" é intermediário
entre os dois.
Valor: Num determinado momento do livro há um
trecho expositivo sobre o referendo que culminou na restauração do
Parlamento escocês em 1979, e depois os personagens discutem o tema. A
independência da Escócia é uma questão importante para o senhor?
Welsh: Sim. Sou a favor da independência da Escócia.
Acho que faz sentido para a Escócia, a Inglaterra e o País de Gales.
Acho que o Reino Unido é construído como um Estado reacionário, não acho
que o etos do país inteiro seja totalmente reacionário. Acho que seria
mais forte separado e até mais unificado de certas maneiras se fosse
mais separado. A atual organização do Reino Unido alimenta o
ressentimento mútuo, com uma instituição política centralizada. As
nações do Reino Unido se combinariam melhor como espécie de federação
mais solta.
"Sou a favor da independência da Escócia.
Acho que faz sentido para a Escócia,
a Inglaterra e o País de Gales",
afirma o escritor
Valor: Alguns especialistas defendem que o Reino Unido pode se fragmentar em algum momento. O senhor acha isso possível?
Welsh: Acho que sim. É inevitável em algum momento.
Não vejo o que está mantendo tudo junto. O Reino Unido sempre teve muito
a ver com a indústria e o imperialismo, e depois ficamos unidos porque
tivemos as duas guerras mundiais e o Estado de bem-estar social. Mas
nada disso existe mais. É difícil entender o que vai realmente manter a
união no longo prazo.
Valor: O senhor se concentrou na pesquisa para "Skagboys". Como foi esse processo?
Welsh: Basicamente conversei com pessoas que conheço
há muito tempo e viveram as mesmas coisas que eu para saber suas
ideias, para saber como as coisas aconteceram, acertar referências, nas
artes, na televisão, nos esportes.
Valor: A cena que abre o romance, da greve dos mineiros, foi fruto dessa pesquisa?
Welsh: Foi um momento tão importante na história do
Reino Unido, foi basicamente quando as vitórias do passado foram
perdidas para a elite e usaram o poderio do Estado para isso. [Para
reprimir esse protesto] Eles usaram a mesma força policial que usaram em
Hillsborough [tragédia num estádio em que várias pessoas foram
pisoteadas] e só agora isso veio à tona e houve justiça. O Estado se
alinhou com a elite que estava no poder na época.
Valor: Em 1996, a imprensa relatava um estilo de vida seu mais farrista. E agora, o senhor se considera num momento mais tranquilo?
Welsh: Sim, acho que estou tentando levar as coisas
adiante, meus trabalhos. Quando era jovem, podia fazer muita farra e
ainda trabalhar, mas agora só consigo dormir até mais tarde no dia
seguinte e ficar deprimido. Antes não, conseguia me levantar e
trabalhar. Agora não consigo. Não faço mais isso. Tem tanta coisa que
quero fazer em termos de trabalho, e isso é mais importante que fazer
farra. Talvez só esteja envelhecendo.
Valor: Quando se compara este livro com
"Trainspotting", parece que naquela época o senhor era movido pela sua
intuição e agora está voltado para a técnica, para a pesquisa.
Welsh: Em alguns aspectos, acho que tem que ser
diferente, porque "Trainspotting", da maneira como foi feito, você já
sabia o que ia acontecer com os personagens, enquanto este livro tem
mais a ver com por que aconteceu daquele jeito. Quando você faz isso,
precisa ter um olhar externo. Em "Trainspotting" as personagens olhavam
para si. Este livro tem mais a ver com como o mundo os vê. O gancho e a
orientação são diferentes.
Valor: Alguns críticos disseram que o establishment literário teve que aceitá-lo por causa da sua popularidade. Como vê isso?
Welsh: Sim, acho que [minha obra] não é muito do
agrado deles. A maioria dos escritores e críticos, especialmente
críticos, vem de uma elite educacional, social e econômica, isso impõe
certa hegemonia em relação ao que é aceitável e inaceitável em termos de
literatura. Mostrar vozes da classe trabalhadora, encontrar uma voz que
é engraçada e divertida, mas tem narrativa, foi muito ameaçador, porque
significou que pessoas de origens diferentes podem contar suas
histórias e elas são tão válidas quanto as de autores da elite. É
difícil para eles aceitarem isso. Acho que o que fez as pessoas
aceitarem foi o sucesso, ficou impossível de ignorar. E continua tendo
sucesso comercial, ainda bem. E também entre os críticos literários mais
sérios acho que tem um peso e uma credibilidade também. O livro
envelheceu bem. Já faz 20 anos que "Trainspotting" saiu como livro, e
agora entrou no cânon, ajudando também outros livros, e é estudado nas
faculdades. Para mim é esquisito, bizarro, ver isso.
Valor: Mas isso mostra que seu trabalho alcançou uma certa longevidade, não?
Welsh: Sim, de fato, mas não é algo que você
realmente fica pensando muito. O fato é que, quando você está
escrevendo, fica imerso naquilo, no livro que está fazendo, que, quando
acaba, fica para trás. É muito difícil falar sobre isso, porque já estou
imerso no próximo projeto. Quando estou escrevendo um livro, já no
final faço alguma viagem, vou para Hollywood ou coisa assim, e começo a
trabalhar no próximo, e o livro anterior se torna distante. É um
relacionamento estranho. O relacionamento que você tem com um livro,
como escritor, é diferente daquele como leitor. Eu mesmo, como leitor,
quando conheço pessoas, em conferências e festivais, e encontro autores
que admiro, fico entusiasmado, "o que significa isso, por que você
escreveu aquilo", mas você não percebe que, para eles, isso já ficou
para trás, deixou completamente o pensamento deles. Já estão imersos no
próximo projeto. Ter reconhecimento é bom, escritores querem escrever,
acho que a coisa que querem é conseguir sucesso porque lhes dá dinheiro,
royalties, pagamento, você não precisa fazer mais nada a não ser
escrever, como procurar emprego, ensinar ou pedir bolsa do governo. Você
conquista a autonomia de poder acordar de manhã e só escrever, e acho
que é isso que os escritores querem fazer.
Valor: Como compararia este livro em relação aos outros que escreveu?
Welsh: Acho que é o melhor. Mas comigo é assim: o
último livro que escrevo é sempre o melhor. O tempo dirá. Certamente é
um dos melhores. Tem livros que você fica muito satisfeito com o
resultado e outros, nem tanto, em que você pensa: "Eu poderia ter feito
melhor". Esse livro provavelmente é um daqueles com que fiquei realmente
satisfeito.
Valor: O senhor também usou uma citação de "Moby
Dick", de Herman Melville, para abrir "Skagboys". Significa que também
trouxe um pouco da literatura americana para a sua obra?
Welsh: Queria dizer que não dá para fazer tudo sobre
[Margaret] Thatcher e os Tories [Partido Conservador], dá para fazer
muito, mas não tudo. Acho que é para mostrar que há algo na cultura
escocesa, de caráter calvinista, que lembra um pouco essa depravação de
que Melville falava. É a mesma luta. Quando você analisa Mark Renton e
Sick Boy, por exemplo, e o relacionamento deles, eles estão usando
heroína por motivos muito diferentes, ou Allison, que a toma por um
motivo muito diferente, e Spud também. Spud toma porque ele representa a
classe trabalhadora que sofre com o colapso da indústria, o que
significa que não há mais trabalho para ele, tornando-o redundante em
todos os aspectos. Sick Boy tem mais a ver com esse rebeldia quase
subconsciente que ele tem. Todos têm seus motivos diferentes, mas o
importante é que, quando há um cenário que está sendo devassado,
destruído, socialmente e economicamente, e a heroína entra na história,
ela ganha automaticamente, porque não há mais nada ao redor para mudar
isso.
Valor: Antes de começar a entrevista, enquanto o senhor tomava café, notei que lia um manuscrito. Importa-se de contar o que é?
Welsh: São apenas trechos de um novo romance que estou escrevendo.
Valor: É sobre o quê?
Welsh: Fala sobre duas mulheres que ficam obcecadas
uma com a outra. Uma é artista, a outra é uma "personal trainer". Duas
mulheres muito diferentes, de origens diferentes, uma se torna cliente
da outra e há essa evolução em que elas acabam formando um
relacionamento forte e intenso, e acaba se tornando um relacionamento
muito estranho e problemático, como uma obsessão. Acho que pode ser
descrito como um suspense "lesbian noir" em Miami. Acho que vai sair em
2014.
Valor: Como é o seu processo de trabalho?
Welsh: Varia muito. Há dias em que acordo e começo a
trabalhar, a manhã costuma ser um bom momento, e as noites também.
Durante o dia acabo me distraindo um pouco. Há dias em que trabalho
mais, que não faço nada senão escrever, e outros em que faço outras
coisas, só fico de bobeira, vendo futebol.
Valor: O senhor já disse que tem uma reação
emocional quando escreve seus livros, como se estivesse relembrando
pessoas que conheceu. Continua sendo assim?
Welsh: Todo livro que você escreve se torna uma
experiência emocional. Ela muda você, muda sua perspectiva. O livro que
estou escrevendo agora usa duas vozes narrativas, e isso, por exemplo,
muda a maneira como você vê as coisas. Está me fazendo pensar que
deveríamos impedir todos os homens de entrar na política, o Parlamento
deveria ser totalmente formado por mulheres. Porque os homens só querem
fazer política. Mas ter essas mulheres no poder não para que apenas
imitem os homens, mas tentar formar um governo feminino, porque as
mulheres tomam decisões de maneira muito mais ponderada, em saúde,
previdência, educação e outras questões. Acho que o patriarcado já era e
está na hora de dar uma chance às mulheres, para ver se elas podem
fazer um trabalho melhor que os homens. Acho que não será muito difícil.
Valor: Há quanto tempo mora em Chicago?
Welsh: Minha mulher é de Chicago e faz mais ou menos
sete anos que tenho um apartamento aqui. Ficamos indo e voltando por um
tempo, mas só me mudei permanentemente para cá faz uns dois anos.
Estava passando muito tempo na Inglaterra, tentando fazer coisas lá e
encerrar projetos.
Valor: O senhor ainda enfrenta problemas com pessoas tentando oferecer-lhe drogas?
Welsh: Sim, mas não tanto mais. Já estou bem atento a
isso. Na última vez em que fiz uma turnê de livro, alguém me deu um
pedação de maconha prensada, e a deixei lá no quarto do hotel. Não
acompanhei o que aconteceu, se a polícia achou. Mas sempre me preocupo
de conferir se meus bolsos estão vazios antes de embarcar num voo ou
coisa assim. Se você recusa, as pessoas simplesmente enfiam no seu
bolso. Você tem que achar algum lixo ou um piloto de avião para se
livrar daquilo antes de a viatura passar.
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Reportagem Por Patrick Brock | De Chicago
Eu quero muito ler "Skagboys". A Rocco ainda não o lançou aqui no Brasil e meu inglês é bem ruizinho.
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