domingo, 18 de novembro de 2012

Nós e os gatos

 Martha Medeiros*
 

Carência é uma enfermidade universal. 
Nem os gatos, tão altivos e 
superiores, escapam
Ao lado da minha escrivaninha, onde fica o meu computador, há um sofá repleto de livros, revistas e jornais, e que também acomoda o gato aqui de casa. É onde ele se instala quando está carente ou quando está com fome. Quando está carente, é um santo. Fica quietinho, perto de mim, e dorme a tarde inteira. Mas quando está com fome é um inferno. Fica miando com insistência e não sossega até que eu vá com ele à área de serviço onde fica seu prato. Só que no prato sempre tem comida. Por que tenho que ir junto? Ora, porque ele quer que eu coloque um pouco mais. Nem que sejam duas partículas extras de ração, é preciso que ele veja que está sendo colocado mais. O que está no prato não basta.

Eu estava aqui sem assunto, o que não é nenhuma novidade, quando meu gato se aproximou e começou a miar. Em vez de jogar um chinelo nele (estou brincando, estou brincando), olhei bem dentro de seus olhos e pensei: será que esse bichano, em vez de azucrinar, não me rende alguma crônica? Será que todos os gatos são assim voluntariosos? Por que diabos ele tem que ver o prato sendo abastecido a cada vez que deseja comer, se ali já tem comida suficiente?

Algum expert em felinos há de elucidar esse mistério, provavelmente estou errando em alguma coisa. Mas um profissional ligado às ciências humanas talvez me saísse com essa: ele apela para o dengo porque precisamos de constantes demonstrações de amor. Homens, mulheres e, pelo visto, gatos também.

Você sabe que é amado, o amor já lhe foi entregue, está ali, no seu prato. É todo seu. Em caso de dúvida, é só chegar e pegar seu quinhão, nunca vai faltar. Serve assim? Não serve. Você quer a renovação diária de declarações, quer ouvir “eu te amo” todos os dias, quer ser mimado, cuidado, quer que os outros parem de trabalhar para lhe dar atenção, quer que reparem na sua fome, quer se sentir importante. Em suma, quer que seja colocado mais amor no seu prato, de quatro a cinco vezes por dia, todos os dias.

Eu amo o Nero – é como ele se chama. Eu o adotei, o trouxe pra casa, deixo que ele se enrosque no meu edredom, que afie as garras nos meus móveis, que mastigue minhas plantas e que brinque com minhas lixas de unha. Como moro em edifício, fecho todas as janelas para ele não saltar (mesmo no auge do calor), o levo para tomar banho (principalmente no auge do calor), compro ração da melhor qualidade e de vez em quando até dou a ele uns pedacinhos de filé mignon extraídos do meu próprio almoço, o que ninguém recomenda fazer, mas faço. Encho o bicho de carinho, de cafuné, de olhares afetuosos – não é qualquer um que consegue isso de mim. O Nero consegue, e ainda assim é inseguro.

Pelo visto, carência é uma enfermidade universal. Nem os gatos, tão altivos e superiores, escapam.
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* Escritora. Colunista da ZH.
Fonte: ZH on line, 18/11/2012

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