segunda-feira, 29 de abril de 2024

Crime, violência e suas possíveis soluções

 Por Angélica SilveiraCorreio do Povo entrevista Marcos Rolim

Correio do Povo entrevista o doutor em Sociologia e professor universitário, Marcos Rolim

Marcos Rolim é doutor em Sociologia e professor universitário. Ele também é membro fundador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Rolim concluiu seus cursos de mestrado e doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde também realizou seu pós-doutoramento. Ele é especialista em Segurança Pública pela Universidade de Oxford, na Inglaterra. Rolim também é jornalista graduado pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Ele é professor do curso de mestrado em Direitos Humanos da UniRitter, membro fundador do Instituto Cidade Segura, integrante do conselho administrativo da ONG Artigo 19 e ainda membro da Assembléia Brasil da Anistia Internacional. Rolim é autor de livros, entre os quais estão “A Síndrome da Rainha Vermelha, policiamento e segurança pública no século XXI”, publicado pela editora Zahar, o “Bukying o pesadelo da Escola”, publicado pela Dom Quixote e “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema”, publicado pela Appris.

Em uma fala sua, durante o Connex, o senhor se mostrou contrário ao fim das saídas temporárias dos presos. Por quê?

Porque as saídas temporárias beneficiam apenas os presos do regime semiaberto, ou seja, aqueles que já trabalham ou estudam fora da prisão e que se recolhem à noite no estabelecimento. O benefício permite que, em algumas datas, como o Natal, os presos desse regime passem alguns dias com suas famílias. Quando o Congresso acaba com esse benefício, vende a ideia de que está reduzindo o risco de fugas, sem que as pessoas saibam que o próprio regime semiaberto já envolve a presença do preso no convívio social e é baseado na confiança. O pior, entretanto, é que o projeto aprovado reintroduz a necessidade dos laudos técnicos para a progressão de regime, o que irá fazer com que o tempo de encarceramento em regime fechado aumente para todos os presos, porque não há técnicos suficientes para elaborar os laudos e a superlotação impede que os presos sejam classificados e suas penas individualizadas.

Devido à subnotificação de crimes, como chegar aos verdadeiros índices de criminalidade?

A maioria das vítimas não registra ocorrências criminais, o que ocorre por muitos motivos, sendo que, quanto menor for a confiança da população nas polícias, maiores serão as taxas de subnotificação. Por essa razão, registros policiais não devem ser usados para diagnóstico e para acompanhamento das tendências criminais, porque eles refletem apenas parte do problema. Por isso, muitos países lançam mão de pesquisas de vitimização, um recurso que permite estimar com muito mais precisão o que, de fato, está ocorrendo.

Como prevenir para que a violência ocorra?

Há muitas formas de violência e seria preciso tratar cada uma delas para definir medidas correspondentes de prevenção. Toda supressão arbitrária de direito é violência, embora situações como a fome, por exemplo, não costumam ser classificadas como violentas. Se estamos pensando na violência física letal, por exemplo, é preciso saber o perfil dos autores e das vítimas, as circunstâncias, os locais e os horários onde os fatos se concentram para que seja possível, por exemplo, realizar o policiamento de “pontos quentes” (hot spots), uma das estratégias mais exitosas de policiamento preventivo no mundo. Se lidamos com homicídios correlacionados ao abuso de álcool, podemos estabelecer regras mais restritivas para o consumo de bebidas alcoólicas, como foi o caso da experiência preventiva de Diadema (SP); se lidamos com homicídios provocados por disputas entre gangues juvenis, as estratégias serão outras. Aqui, como em todos os demais problemas de segurança, não há remédios genéricos e quem imaginar que há uma solução simples é porque não sabe sobre o que está falando.

Para o senhor como alguém que caiu no mundo do crime pode verdadeiramente se recuperar?

50 anos de pesquisas criminológicas em todo o mundo demonstraram que sim, sem qualquer dúvida. As evidências disponíveis comprovam que a grande maioria das pessoas que se envolveram com o crime desistem desse caminho diante de determinadas situações ou oportunidades como maior escolarização, emprego formal, casamento, conversão religiosa, etc. Então, não se trata de opinião, mas de uma dinâmica conhecida como desistência do crime que é muito conhecida em todo o mundo.

O que seria uma repressão mais qualificada?

Chamamos de repressão qualificada aquela que atua com foco e a partir de um planejamento a respeito dos objetivos a serem alcançados. Se a polícia, após cuidadoso trabalho de inteligência, efetuar a prisão de um matador, isso irá impedir que muitos homicídios ocorram e protegerá também a vida dos policiais que hoje são expostos a riscos desnecessários por conta de um discurso a favor do “confronto”. Se a polícia passa o tempo todo prendendo jovens pobres que sobrevivem no varejo do tráfico, essas prisões não causam qualquer prejuízo ao modelo de negócio, porque essa mão de obra é rapidamente substituída. Tais prisões, entretanto, terminam por recrutar jovens para as facções criminais que atuam nas prisões. O encarceramento em massa produzido pela política de “Guerra contra as drogas”, aliás, só favorece o poder das facções e amplia os termos do problema que se pretendia enfrentar. As apreensões de drogas ilegais, por seu turno, estão muito provavelmente, produzindo migração para roubos – forma de resgatar os compromissos com os fornecedores.

Falando em prevenção, qual a sua opinião sobre o Proerd da Brigada Militar?

O Proerd possui a melhor das intenções e mobiliza policiais que se dedicam à prevenção voluntariamente. O problema do Proerd é que todas as pesquisas já realizadas no Brasil a respeito dos seus efeitos mostram que ele não funciona. Ou seja, não se verifica redução de violência ou de consumo de drogas entre os estudantes que participam do Proerd quando comparados aos grupos de controle. Então, trata-se de um exemplo impressionante de um programa que existe há mais de 25 anos em todo o Brasil e que não se sustenta com base em evidências. Mais uma vez, não se trata de opinião, mas de fato.

Fonte:  https://www.correiodopovo.com.br/blogs/di%C3%A1logos/crime-viol%C3%AAncia-e-suas-poss%C3%ADveis-solu%C3%A7%C3%B5es-1.1487502

Ailton Krenak, o filósofo da terra

 por


Mergulho nas ideias do pensador indígena, em possível diálogo com Heidegger e Butler. Eurocentrismo, diz, gesta a humanidade zumbi, sem memória e identidade. A perda do nós plural e criativo é o fim do mundo. E o ancestral, antídoto

Imagem: Mavi Morais (@moraismavi)/Elástica
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I. Eduardo Viveiros de Castro, no posfácio de Ideias para adiar o fim do mundo, do intelectual e ativista indígena Ailton Krenak, contextualiza as/os leitoras/es do livro que se trata, assim como faz Davi Kopenawa e Daniel Munduruku, de uma reflexão em busca da história da descoberta do Brasil pelos índios. Quer dizer, uma contra-história e, também, uma contra-antropologia atravessa o ensejo de Krenak. Seu objeto é a desnaturalização da história única da humanidade, aquela mesma da cultura dominante do Estado-nação moderno que se voltou belicosamente contra as populações indígenas. Krenak é propositor, segundo Viveiros de Castro, de perguntas inquietante: somos uma humanidade? Uma humanidade única e não diversa? Uma humanidade e não uma rede “inextrincável” e “interdependente” de humanos e não humanos? Quem seria esse “nós” no questionamento krenakiano? “Nós” relativo a quem? Ao quê? Uma pergunta sobre identidade? Sobre o quem somos? Estamos ante, pois, de questionamentos existenciais, em que esse “nós” deixa de se portar unívoco e unidimensional, voltando-se para um nós pluralista, móvel, criativo e variável – diferencial. Para os Krenak isso incluiria a terra, as pedras, as montanhas, os rios, os seres em geral. Esses são alguns dos questionamentos, ou ideias propositivas, para se lançar, então, o adiamento do fim do mundo.

Talvez tenhamos perdido uma percepção um tanto quanto elementar em termos de existência humana: nos esquecemos que coabitamos o mundo, que o compartilhamos com outras pessoas, sendo ele, pois, a nossa grande morada. Esse questionamento, contudo, não passou desapercebido na história da filosofia ocidental, dado que já tratado por Martin Heidegger. Também ele se ocupou de refletir sobre os modos (im)possíveis de sermos e de estarmos na terra, logo, coabitando-a. O habitar encontra-se, de uma maneira ou de outra, implícito em todas as dimensões da existência humana, ao ponto desse gesto se confundir com o próprio viver. O modo como vivemos decorre de uma extensão, ou de uma conservação, do nosso repertório de crenças, de valores e de intenções que, ao verterem-se enquanto escolhas, se concretizam no habitar. Habitar incorre, nesse sentido, na própria existência, na própria maneira como decidimos ser. Como podemos, enfim, coabitar o mundo? A questão colocada pelo filósofo alemão, conhecida através da sua influente conferência Construir, habitar, pensar, de 1951, nos servirá, então, como uma espécie de horizonte dialogal para refletirmos os alcances do pensamento do indígena, ambientalista, filósofo e escritor brasileiro Ailton Alves de Oliveira Krenak.

II. As relações entre construir e habitar se imbricam na explicação de Heidegger. São dialogais e retroalimentares. Isso porque o objetivo da construção é o habitar, contudo, é na própria ação de habitar que o construir encontra o seu sentido. Assim, o desempenho de uma atividade implica habitar. A reflexão de Heidegger se inicia com a própria pergunta: “O que é o habitar”? Não se trata da simples relação com o morar, com o plano utilitário das edificações. Entendendo a linguagem não apenas como veículo, mas como força criadora do mundo, recorre ao emprego do termo no antigo alto-alemão para situar o significado de construir: baun. A descoberta do filósofo é de que, em sua origem, construir significava, justamente, habitar. A vocábulo baun não se referia, pois, apenas a ação de habitar, mas englobava o permanecer, o morar, que indicaria um aceno de “(…) como devemos pensar o habitar que aí se nomeia” (HEIDEGGER, 2012, p. 126). De todo modo, não se encerra, aí, a definição do habitar. Isso porque baun, o construir, derivou do verbo bauen, que, também, guarda relação direta com aquele, mesmo que, naquela atualidade, tenha deixado de implicar nessa significação. Contudo, Heidegger recobra o seu esteio original: “que amplitude alcança o vigor essencial do habitar” (HEIDEGGER, 2012, p. 127)? É interessante o movimento percorrido por ele, dado que essa percepção o leva a entender que bauen seria a mesma expressão alemã para bin, que não seria outra coisa que o verbo ser conjugado em eu sou e tu és. Se ser é habitar, logo, eu habito e tu habitas. Havendo, dessa maneira, a abertura para a coabitação. Essa disposição resultaria, nessa direção, nos modos de existência que se dão através do habitar, o que implicaria, no limite, dizer que o “(…) o homem é a medida que habita (HEIDEGGER, 2012, p. 127).

Byung-Chul Han disse que Heidegger teria sido o último defensor da ordem terrena (2018). Porém, ele não foi o último. O filósofo alemão encontra contemporâneos na atualidade, sendo um deles, além do próprio Han, o indígena Ailton Krenak. Heidegger, que via na linguagem modos de instituição de mundos, se ocupou com esmero ao estudo da linguagem. Por isso se faz necessário explicar o significado de Krenak. Krenak seriam dois termos, adverte Ailton: kre, uma partícula que significa cabeça, e o complemento nak, que seria justamente terra. Vejamos o alcance da filosofia da terra do escritor indígena, que alcança o diálogo proposto por Heidegger: “Krenak é a herança que recebemos dos nossos antepassados, das nossas memórias de origem, que nos identifica como ‘cabeça da terra’, como uma humanidade que não consegue se conceber sem essa conexão, sem essa profunda comunhão com a terra” (KRENAK, 2012, p. 48). Ailton Krenak deixa em evidência em seus escritos que a terra, conforme concebida por seu povo, não seria, pois, um mero sítio, como se designa hoje em dia, avançando para aquilo que o filósofo alemão também se preocupava: a terra como esse lugar que todos nós compartilhamos. Heidegger e Krenak, enquanto contemporâneos, estão preocupados com os modos de “desraigamento” no mundo terreno, do próprio planeta enquanto moradia.

Podemos expandir um pouco mais a reflexão heideggeriana, colocando-a em diálogo com a filosofia krenakiana, se recobrarmos que há dois significados subjacentes e complementares em bauen (construir): proteger/cultivar e edificar. O filósofo da floresta se empenha na recuperação desses significados originais de habitar, o que o leva ao seu entendimento de que bauen é permanecer, bem como um de-morar-se. Além disso, e recobrando o gótico wunian, se poderia especificar ainda mais o âmbito dessa experiência, quer dizer, ser e permanecer em paz. Paz, ainda explorando o potencial da linguagem conformadora do mundo, seria o mesmo que “livre”, que de acordo com a sua a origem denotaria resguardado, que, no limite, seria a devolução “(…) de maneira própria, alguma coisa ao abrigo de sua essência” (HEIDEGGER, 2012, p. 129). Resguardar mantém relação com libertar-se: “(…) libertar para a paz de um abrigo” (HEIDEGGER, 2012, p. 129). A discussões propostas pela filosofia de Martin Heidegger nos leva, potencializada a partir das reflexões do pensador indígena Ailton Krenak, que o traço fundamental do coabitar seria, não outro, o estado de permanecer pacificado envolto na liberdade de um pertencimento, resguardando as coisas em sua autenticidade possível.

II. A evidência de que viveríamos o antropoceno, para Ailton Krenak, seria motivo suficiente para a ação, para um reencontro com o mundo, para um despertar para a coabitação pacífica da terra, para a sua preservação e de seus viventes. Em sua opinião, o antropoceno, considerado um era geológica caracterizada pelos impactos da exploração humana sobre o planeta, deveria soar como um alarme nas nossas cabeças. A grande morada é a preocupação dos dois filósofos, pois como explica Ailton Krenak: o planeta terra, de onde se exaure as fontes de vida, é o que possibilita ao seu povo o sentimento de estar em casa, de que havia “uma casa comum que podia ser cuidada por todos” (KRENAK, 2020, p. 47). Contudo, a escritor indígena pensa que essa disposição diante do mundo, que já vinha sendo assolada pela noção eurocêntrica de humanidade, teria entrado num estado alarmantemente expansivo devido à exclusão de toda organização de vida que estivesse fora dos domínios do capitalismo consumista. Aqui entra, então, a sua filosofia da terra, ou do enraizamento, que se lança ao perspectivismo e contrário à unidimensionalidade do mundo. O povo Krenak, esclarece Ailton, foram animados justamente pelo coabitar o mundo de maneira diversa, pluralista, sendo também partes constitutivas do próprio planeta, não percebido, pois, como objeto a ser explorado, “(…) em que havia corresponsabilidade com os lugares onde vivemos e o respeito pelo direito à vida dos seres, e não só dessa abstração que nos permitimos construir como uma humanidade, que exclui todas as outras e todos os outros seres” (KRENAK, 2020, p. 27).

Os Krenak pertencem, assim sendo, à ordem da terra, estando, então, em movimento interacional, um estar submetido em modo atento e aberto em escuta ao nomos da terra. Nomos é um conceito que deriva da mitologia grega, podendo ser interessante junto às reflexões de Ailton Krenak. Falar em nomos da terra representaria o daemon das leis, estatutos e normas. Krenak e Heidegger se movem, assim sendo, para a sua ordem mais elementar, isto é, a existência na terra. Também o filósofo alemão, em seu texto Construir, habitar, pensar, se move para a factualidade e para o pluralismo terreno-imanentista, percebendo a vida como uma quadratura terra e céu, mortal e divino. Os dois autores sabem que o ser humano é mortal, não agente. A responsabilidade diante do habitar reside nisto: poderia não haver novas natalidades em muitos sentidos. Também ouvem os seus Deuses, que mais do que entidades apartadas do mundo – nele se encrusta e enuncia sentidos passíveis de escuta. Naquele lugar, tanto na floresta negra quanto ao longo do Rio Doce/MG, ele tem o seu lugar num recanto encantado e com sentidos, sendo a condição para isso o saber habitar, o que implicaria o saber ser com outrem no mundo.

A terra, de acordo com Ailton Krenak, deve ser entendida como um organismo vivo, sendo ela, não apenas para seu povo, considerada uma mãe e provedora, mas em um nível que vai além da substância ou uma provedora de recursos, mas “(…) também na dimensão transcendente que dá sentido à nossa existência” (KRENAK, 2020, p. 43). Ou seja, o mundo terreno, para os Krenak, oferece a oportunidade de um habitar que implica mais do que um conhecimento ativo sobre o mundo, mas dele recebendo aprendizados, o que os tornam intérpretes da natureza, posto que ela lhe oferece sentidos e modos pluralistas de ser. O filósofo indígena, contudo, percebe o progressivo esquecimento da terra e do habitar, onde se verificaria todo um afastamento dos lugares de origem. Obviamente que não se trata, aqui, de alguma explicação que poderia levar ao entendimento da atualização de uma disputa entre modos de vida sedentário e nômade. O que Ailton Krenak busca refletir é sobre a perda dos sentidos de deslocamento na atualidade tecnológica, questão para ele importante por afastar as pessoas do mundo: “Se é certo que o desenvolvimento de tecnologias eficazes nos permite viajar de um lugar para o outro, que as comodidades tornam fácil a nossa movimentação pelo planeta, também é certo que essas facilidades são acompanhadas por uma perda de sentido dos nossos deslocamentos” (KRENAK, 2020, p. 43). Aqui entramos no âmago do apontamento de Ailton Krenak sobre a alienação do mundo, sobre o desenraizamento descomprometido com relação à existência terrena, do esquecimento da facticidade do ser no mundo, que se opera no habitar e na duração. A sensação percebida pelo filósofo indígena é de que as pessoas, na atualidade, estariam vivendo, paralelamente, em “um cosmos vazio de sentido” e “desresponsabilizados de uma que possa ser compartilhada, mas sentimos o peso dessa escolha sobre as nossas vidas” (KRENAK, 2020, p. 44).

Krenak acredita, em todo caso, que estaríamos vivendo em uma espécie de situação de cegueira coletiva, isto é, impossibilitados de nos situarmos junto à facticidade terrena, que invoca sentidos pluralistas de existência e, de modo correlato, imprime gravitação existencial. Essa cegueira avançaria pelo âmbito individual e social, posto que de a unidimensionalidade da noção de humanidade eurocêntrica estaria em risco não somente o habitar, mas, sobretudo, o coabitar – condição para a “cooperação dos povos, não para salvar os outros, mas salvar a nós mesmos” (KRENAK, 2020, p. 44). Para tanto a necessidade de um despertar diante da perda de sentidos, da perda dos sentidos de coabitação do mundo, não sendo este um problema apenas dos povos originários. A perda da possibilidade de imprimir sentidos alternativos e pluralistas ao mundo, e com isso invocar novas possibilidades de imaginação social e política, que pelo encontro a partir da coabitação e da cooperação instituem acontecimento geradores de novidade e de diferença, deveria se voltar para o recontro com a ordem terrena. Esse gesto se daria, de qualquer maneira, em função do caráter totalizante da modernidade eurocêntrica e da dinâmica do capitalismo, elementos que conjugados estão levando à “(…) iminência de a terra não suportar nossa demanda” (KRENAK, 2020, p. 45). Ailton Krenak é sabedor, de toda maneira, da unidimensionalidade artificial elaborada pelo capitalismo, especialmente a partir da noção de mercadoria, que por meio das suas fantasmagorias fetichistas impedem a visão sobre a terra, ou ambiente planetário, para além da reificação.

III. A vida humana e terrena, agora não somente entre os povos originários, enfrentaria uma tragédia que atingiria a todos nós. O pensador indígena percebe apenas movimentos paliativos, muito em função de decisões políticas regionalizadas e localizadas, que abririam, em sua perspectiva, algum “espaços de segurança temporária” para as comunidades em geral. Mas ainda avançando sobre a reificação do mundo pelo capitalismo hegemônico, que seria algo bastante diverso da observância da sua tangencialidade, o que presenciamos, desenvolve Ailton Krenak, é o “esvaziamento sentido do compartilhamento dos espaços”, quer dizer, os próprios sentidos de coabitar o mundo. O que se vê, na atualidade, são medidas paliativas ou ações orientadas pela razão cínica neoliberal, que “(…) depende cada vez mais da exaustão das florestas, dos rios, das montanhas, nos colocando num dilema em que parece que a única possibilidade para que as comunidades humanas continuem a existir é à custa da exaustão de todas as outras partes da vida” (KRENAK, 2020, p. 46). O que se deve ter em mente é que o voltar-se para terra gera, correlatamente, gravitação e pluralismo junto aos modos de existência, dado que na ordem planetária há o acidental, o desviante, o sinuoso e as multiplicidades – disso a possibilidade de oferecer sentidos ao mundo, pois passamos a ter o entendimento em modo vetorizado ante à existência em si, sem o movimento sujeito/objeto, fazendo do habitar uma forma de afirmação da vida pela possibilidade da saída do tempo único, o qual o capitalismo presentista faz parecer como modo padrão, ou absoluto, de existir.

Além disso, a suspensão dos modos reificados de habitação do mundo, amparados pela lógica do consumo da vida planetária, dariam condições de possibilidade para a produção de espaços e para a coabitação. Ora, o espaço único, a unidimensionalidade proposta pelo capitalismo, não oferecia outra coisa, ainda mais em seu nível neoliberal, do que a competição por espaços amparados na lógica na coabitação e da partilha, mas da exploração e da individualização não (inter)colaboracionista. Ora, a subjetividade neoliberal não abarca o dissenso e o congregar – não reparte e não partilha. Está focada na unidimensionalidade, na medida em que, em seu modo de conceber o mundo, só há espaço para o seu Eu, abrindo, em último modo, todo um processo de expulsão do outro. Esse processo é assimilado por Krenak através dos projetos de exaustão da natureza.

IV. Essa discussão pode encaminhar, com forma de potencializarmos a reflexão de Ailton Krenak, a partir das discussões realizadas entre Judith Butler (2015, p. 75-77) e Hannah Arendt. De acordo com a filósofa estadunidense, quando Arendt refletiu sobre a pólis grega e o fórum romano ela estava pensando para além do âmbito normativo e físico das cidade-estado, mas para as próprias relações instituídas entre as pessoas, o que abriria, naquele espaço de aparição, a comunicação e a ação entre elas. A leitura de Butler, então, caminha para a compreensão dos espaços partilhados entre as pessoas. Esses espaços mediados pelo entre abrem margem para a heterotopia ou para diversidade. Assim, os horizontes públicos dependem, em sua acepção, de dinâmicas que estão para além da disposição infraestrutural e objetiva, apontando para a substância das organizações políticas, que se deseja reguladas pela pluralidade. Os espaços públicos, e aqui levamos em conta o mais primordial de todos, a própria terra, para nos voltarmos ao diálogo com Krenak, são estabelecidos se nos movimentarmos para além da superfície institucional, voltando-se para as fronteiras estabelecidas entre os corpos. Há um movimento disciplinarização dos espaços, em que nem todos os corpos que habitam, ou querem habitar um espaço, são incluídos. Essa é a questão colocada por Butler: como instituir a pluralidade ante às fronteiras? Quem faria parte desse horizonte comum pluralizado? Parece mesmo que Krenak está em um diálogo virtual com a filósofa estadunidense, haja vista também o seu intuito de transformar esses apontamentos como ação política. Ambos, cada qual com seus horizontes mais particulares de preocupações, estão em busca da coabitação e a da produção de espaços interrelacionais, dialógicos e de convívio.

A esse respeito, Ailton Krenak é bastante contundente, flexionando toda uma ontologia do perspectivismo ameríndio: “Definitivamente não somos iguais, e isso é maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é diferente do outro, como constelações” (KRENAK, 2020, p. 33). Agora é Krenak quem potencializa as reflexões de Judith Butler, pois para ele o fato de coabitarmos um espaço possível não implica que somos iguais, mas, e aqui a força do seu pensamento: “(…) significa exatamente que somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças, que deveriam guiar o nosso roteiro de vida” (KRENAK, 2020, p. 33). Encontra-se, em sua perspectiva, um olhar para um coabitar que percebe a humanidade, e os modos de existir, de maneira pluralista – não através do protocolo da humanidade enquanto singular-coletivo, que, segundo aponta, retiraria a nossa alegria de estar vivos (KRENAK, 2020, p. 33).

V. Ailton Krenak explica a dimensão espacial por onde os povos Krenak habitam o Brasil. Do nordeste até o leste de Minas Gerais, onde encontra-se o Rio Doce, bem como na fronteira do Brasil com o Peru e a Bolívia, no Alto do Rio Negro. O pensador ameríndio deixa em evidência os sentidos efetivos da luta dos Krenak diante dos tensos contextos políticos nacionais que envolvem os direitos dos povos originais de habitarem e existirem em suas terras. Krenak faz, então, um retrospectivo que dos modos como os povos originários habitam, pensam e existem em suas terras e como isso foi, historicamente, pervertido através da história colonial-expansionista-administrativa. Passados séculos de colonialismo, e superando as expectativas de que as populações indígenas não sobreviveriam aos movimentos de ocupação dos seus territórios, com previsões de que já não se manteriam as originárias formas de organização existencial, vemos os Krenak permanecendo em luta: “Isso porque a máquina estatal atua para desfazer as formas de organização das nossas sociedades, buscando uma integração entre essas populações e o conjunto da sociedade brasileira” (KRENAK, 2020, p. 39). Os sentidos do habitar krenakianos são assim, postos em evidência, sendo a terra considerada, por eles, não apenas como um reduto onde a natureza é prospera e oferece alimentos e moradia: ali está onde sobrevive os modos que cada uma dessas sociedades tem de se manter no tempo.

A interação com o planeta, com o mundo terreno, está muito distante de uma separação sujeito e objeto, mas volta-se para imanência radical, por onde se faz possível percebê-lo em modo de agência e, então, assimilar os seus sentidos, longe da razão instrumental ocidental. Por exemplo, o rio Doce, para os Krenak, que sofrera ecocídio através do rompimento da Barragem do Fundão em Mariana/MG, que liberou 55 milhões de metros cúbicos de lama que armazenava, é considerado por essas pessoas como Watu, ou seja, ele é tido como o seu avô. Em seguida é explicada a tensão existente entre fronteiras e coabitação, em que a perspectiva krenakiana do habitar-existir é abordada: “Ele não é algo de que alguém possa apropriar; é uma parte da nossa construção como coletivo que habita um lugar específico, onde fomos gradualmente confinados pelo governo para podermos viver e reproduzir as nossas formas de organização (com toda essa pressão externa” (KRENAK, 2020, p. 40). De qualquer maneira, o que estaria em curso na história brasileira não seria outra coisa do que a não coabitação, ou dialogando abertamente com Krenak, a incapacidade de se acolher os seus habitantes originais.

O projeto colonialista está em curso, desdobrando-se pelas malhas do capitalismo neoliberal ao invisibilizar e impedir os povos originários do seu existir por não reificarem o mundo natural e planetário, mas o habitando-o e existindo com ele – por não se ampararem em sua lógica unidimensional e totalizadora, derivada duma lógica de mundo individualizada e não aberta à coabitação, posto que se move pela subjetividade concorrencial e libertarista. Esta é a tônica da história brasileira majoritária, de acordo com ele, através das suas seguidas atualizações: “sem recorrendo a práticas desumanas para promover mudanças em formas de vida que essas populações conseguiram manter por muito tempo, mesmo sob o ataque feroz das forças coloniais, que até hoje sobrevivem na mentalidade coletiva de muitos brasileiros” (KRENAK, 2020, 41). O ecocídio enfrentando pelo o avó dos Krenak, o rio Watu, que fora encoberto pela lama tóxica da Barragem do Fundão, apresenta-se como uma imagem síntese do perspectivismo ameríndio, que invoca uma ontologia do enraizamento relacional com o mundo: “Faz um ano e meio que esse crime – que não pode ser chamado de acidente – atingiu as nossas vidas de maneira radical, nos colocando na real condição de um mundo que acabou” (KRENAK, 2020, p. 42).

Ailton Krenak recobra, em um gesto decolonial, os horizontes modernos do significado de humanidade, percebida como história única ou singular coletivo. A colonização realizada pelos brancos europeus se amparou, em sua concepção, “na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível” (KRENAK, 2020, p. 11). É, em última medida, o processo civilizador, que implicou dois movimentos simultâneos: a implementação de uma lógica de como habitar a terra e, correlatamente, a instauração de modos de verdade, informados por uma dimensão de sujeito que perscruta o objetivo, algo que teria orientado as escolhas realizadas em diferentes momentos históricos. A questão para Krenak é esta: haveria uma humanidade no singular? Torna Krenak a mover um questionamento propositivo: “Por que insistimos tanto e durante tanto tempo em participar desse clube, que na maioria das vezes só limita a nossa capacidade de invenção, criação, existência e liberdade” (KRENAK, 2020, p. 13)?

A humanidade eurocentrada seria, para ele, uma espécie da liquidificador. Arrisca a dizer que 70% porcento das pessoas, hoje, estariam alienadas dos modos de ser em razão dos processos modernizadores, que retirou as pessoas do campo e das florestas para lançá-las em favelas e periferias, tornando-se mão de obra nas cidades. Seria pessoas desenraizadas, privadas dos seus modos de ser e de habitar o mundo. Um processo, dito de outra maneira, de esquecimento comandado: “Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo do maluco que compartilhamos” (KRENAK, 2020, p. 14). O que Krenak aponta é para o esquecimento do planeta, derivado do singular coletivo humanidade e atualizado pelo “mito da sustentabilidade”, o que levou a alienação do organismo que fazemos parte, ou seja, a terra: “passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a terra e a humanidade” (KRENAK, 2020, p. 16). Daí a sua ontologia do enraizamento, ou perspectivismo ameríndio, que se percebe tudo como natureza. Ele é taxativo: “Tudo em que eu consigo pensar é natureza” (KRENAK, 2020, p. 17).

Os povos originários, argumenta Krenak, estão enredados ao mundo – são parte integrante e constitutiva do mesmo. A terra e os seres também vivem. Montanhas são casais, tem família, trocam afetos, fazem trocas. Essas montanhas, como em regiões andinas, são reverenciadas pelas pessoas, dado que são sensíveis a sua alteridade. Mais um questionamento de Ailton Krenak: por qual motivo essas narrativas não entusiasmam mais, sendo esquecidas e apagadas? Por qual motivo elas são interditadas em favor de uma narrativa global, universalizante, unidimensional, superficial, única? É o abuso da razão, retomando a sua expressão. O conceito moderno de história, a história única, o eurocentrismo racionalista alienariam as pessoas de tudo, inclusive, as medicalizando. Há a crítica ao conceito de progresso, modulação temporal desta forma de história aludida, que em nome do dito bem-estar da humanidade imprime todo um movimento de desenraizamento e de deslocamento das pessoas do organismo terra. Esse movimento expande-se, ainda hoje, para as “bordas do planeta” – margens de rios, beiras de oceanos; na África, nas Ásia, na América Latina. São caiçaras, indígenas, quilombolas, aborígenes, em suma, a “sub-humanidade”. A humanidade moderna expulsa o outro, considerado sub-humano. Justamente aqueles que não esqueceram a terra, que estão enraizados, que convivem com as suas manifestações, que lhe emprestam dignidade para a sua alteridade.

Uma organicidade que incomoda a dita humanidade, que cinde seus filhos de sua mãe. Que expulsa aqueles que querem “comer terra, mamar terra, dormir deitados sobre a terra, envoltos na terra” (KRENAK, 2020, p. 22). É a crítica radical ao esquecimento do mundo. ao seu descolamento da imanência em favor de uma abstração desfactizada. Um movimento que interdita a diversidade, nega a pluralidade de modos de coabitação e de existência – de modos de ser. No horizonte da humanidade eurocentrada, da história única, a qual deve-se ser crítico invocando a diferença, tornou-se majoritário um modo de existir que, amparado no desgarramento da terra a partir da lógica sujeito e objeto, que se move pelo consumo e interdita a cidadania. Deriva-se desse movimento, na perspectiva krenakiana, toda uma lógica de expulsão do outro e de veto às alteridades, disposição que acarreta, no limite, um estar no mundo alienante, desprovido de crítica e consciência de si, dos outros e do todo. “Essa ideia dispensa a experiência de viver numa terra cheia de sentido, numa plataforma para diferentes cosmovisões” (KRENAK, 2020, p. 25).

VI. Dialogando com Davi Kopenawa, e abrindo-se para a possibilidade de adiar o fim do mundo, Krenak move-se à contrapelo em busca dos sentidos ancestrais, dos sentidos das cosmovisões ameríndias, que seria um modo de coabitar o mundo. Tudo tem sentido na imanência radical krenakiana, o que lhe abre para imaginações pluralistas de mundo. “As pessoas podem viver com o espírito da floresta, viver com a floresta, estar na floresta” (KRENAK, 2020, p. 25). Em última instância, deseja-se recordar o mundo ante uma situação produtora de ausências. Esse retorno à imanência terrestre oferecia modos de viver em sociedade, num sentido de experiência e de tangibilidade com a vida. Na história única, no singular coletivo moderno, na humanidade singularizada, na identidade mesma essencializada, há a intolerância em “relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar” (KRENAK, 2020, p. 26). A “humanidade zumbi” expulsa os mundos de sentidos pluralistas, em que se invoca a “fruição de vida”. Chega-se ao ponto chave da reflexão: “Então, prega-se o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos” (KRENAK, 2020, p. 27). A resposta de Krenak a esse estado de coisas é o retorno aos modos de narração da experiência, de poder “contar mais história”. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim do mundo.A narração, os modos de imprimir sentido ao mundo para Ailton Krenak, amparando-se nas cosmovisões de sentido ameríndias, demostram a importância da facticidade concebida como experiência vertida narrativamente.

Narrações enredadas em experiência como modo de existir. Questiona, prepositivamente, Krenak: como os povos originários lidaram com a colonização, com o fim dos seus mundos? Como superaram esse pesadelo ainda desafiando a hegemonia da humanidade singularizada e excludente? Ele voltou-se às narrativas experienciais antigas, ativando um recordar de resistência pela criatividade, pela poesia, pela disposição de enfrentamento. Cosmovisões cheias de sentido e de experiência foram lidas, imprimindo um imaginar plural. “Muitas dessas pessoas não são indivíduos, mas ‘pessoas coletivas’, células que conseguem transmitir através do tempo suas visões de mundo” (KRENAK, 2020, p. 28). Krenak leu, recordou, aprendeu, institui sentidos, entendeu o virtual dos antepassados para resistir no presente – um alimento de “resistência continuada desses povos, que guardam a memória profunda da terra, aquilo que Eduardo Galeano chamou de Memória do fogo” (KRENAK, 2020, p. 29). A narração lhe parece importante ante uma sensação de queda. Ele invoca a capacidade crítica, criativa e pluralista ancestral para que essa queda seja impedida por “paraquedas coloridos”. Contar histórias, narrar histórias, aprender com histórias. “Há centenas de narrativas de povos que estão vivos, contam histórias, cantam, viajam, conversam e nos ensinam mais do que aprendemos nessa humanidade” (KRENAK, 2020, p. 30).


Bibliografia

BUTLER, Judith. Notes Toward a Performative Theory of Assembly. London: Harvard University Press, 2015.

CASTRO, Eduardo Viveiros de. Posfácio – Perguntas inquietantes. In: KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas sobre o digital. Petrópolis: Vozes, 2018.

HEIDEGGER, Martin. Construir, habitar, pensar. In: HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2012.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

Fonte:  https://outraspalavras.net/descolonizacoes/ailton-krenak-o-filosofo-da-terra/

Perfeitos, os dias.


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(Still do filme Dias Perfeitos, de Wim Wenders)

 

Acordar com o sussurro de uma vassoura, erguer o tronco, depois o resto do corpo, arrumar com preceito a roupa de cama e o colchão, pulverizar de água as plantas, lavar a cara, vestir a roupa de trabalho, sair porta fora com a calma devida, para ter tempo de olhar para o céu e sorrir, quer faça chuva ou faça sol. A rotina não é enfadonha. A rotina é um método.

Entrei numa sala de cinema no último dia dessa fuga ao quotidiano a que chamamos de férias - há uma década seria um evento costumeiro, de há uns anos para cá tem-se tornado excepcional - para ver "Dias Perfeitos", último filme de Wim Wenders. A rotina que comecei por descrever corresponde aos primeiros instantes dos dias de Hirayama, um homem que vive consigo numa pequena casa de decoração contida, limpa casas-de-banho de Tóquio com rigor e a quem ouvimos a voz pela primeira vez já o filme vai a meio. É o protagonista do filme, humano de mais para ser misantropo, recluso de menos para ser um eremita. E no entanto ele move-se silencioso pela cidade, cumprindo o seu quotidiano perene, como se de um ritual se tratasse.

"Porque é que as coisas têm de mudar?", pergunta desgostosa uma das personagens. Hirayama tudo faz para o evitar. É precisamente através da reincidência de gestos e hábitos que encontra um reconfortante sentido de novidade. As músicas que escolhe ouvir no carro, preservadas na fita de uma cassete, marcando o ritmo do início de cada dia, as copas das árvores tingidas de luz que fotografa de forma meticulosa, o olhar que lança todos os dias de manhã ao céu assim que sai de casa. Não há dois dias iguais, ainda que o exercício de os distinguir seja por vezes bem mais difícil do que aqueles passatempos que nos pedem para encontrar dez diferenças entre duas imagens.

Aprendi a não me preocupar e a amar a rotina após anos de um combate sereno contra a ideia de repetição. Continuo a aprender a consenti-la. Se a rotina é um método, a constância pode ser o seu remate, a garantia de acesso às subtilezas que ficam nos intervalos entre o que é ordinário e o que é extraordinário. O método não é infalível, tem os seus dias como tudo.

De caminho, rumo ao trabalho, passo pela estátua de Afonso Albuquerque, que continua no mesmo lugar, não tem para onde fugir. Visto daqui, rodeado de copas de árvores, a sua cor transfigura-se, de mês para mês, por vezes de dia para dia, e nem sempre reparo nesses cambiantes. Mas nesta manhã o que vejo é uma ave pousada no topo da cabeça da estátua e sorrio porque me recordo de quando, há uns meses, a minha filha me acompanhou neste trajeto dois dias seguidos. Esteve comigo também na rotina, no percurso que faço de olhos abertos, mas que poderia fazer de olhos fechados. Ao segundo dia, após ter percorrido quatro estações de metropolitano, caminhado até ao torniquete nos passos curtos a que a multidão obriga, subido as escadas rumo à plataforma do comboio, olhou para mim e disse de cara luminosa "Parece que estamos a repetir o mesmo dia". "Isso é bom?", retorqui. "É fantástico!"

 

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(Still do filme Dias Perfeitos, de Wim Wenders)

  Fonte: https://longitudinal.blogs.sapo.pt/perfeitos-os-dias-153960

Rentismo – um novo modo de produção?

 Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO*

Imagem: Vasconario KG

Considerações a partir de um artigo de Ladislau Dowbor

Introdução

Ladislau Dowbor, por meio de um artigo que denominou de “A sociedade na era digital: um novo modo de produção”, propôs que o rentismo, propiciado supostamente pelas novas tecnologias da chamada “indústria 4.0” e alavancado pela financeirização, está no fundamento de um novo modo de produção.

Enquanto o capitalismo industrial havia apropriação do excedente e geração de mais capacidade produtiva por meio do investimento, no novo modo produção em emergência há, segundo ele, apropriação do excedente por meio do rentismo sem que ocorra uma ampliação dessa capacidade, de modo correspondente à acumulação.

Eis o que diz: “Trata-se de outro modo de produção em construção, em que a financeirização supera a acumulação produtiva de capital, a exploração por meio do rentismo supera a exploração por meio de baixos salários (mais-valia), inclusive porque se desloca o próprio conceito de emprego”. (Dowbor, 2014).

“Os que comandam não são mais os capitães da indústria, e sim os que controlam os algoritmos, e o próprio dinheiro imaterial, no quadro da financeirização. Em termos de análise científica, é hoje mais produtivo pensar no novo sistema, no rentismo que resulta da revolução digital, do que acrescentar adjetivos ao conceito tradicional de capitalismo”. (Dowbor, 2014).

Modo de produção está sendo definido aqui com base na tecnologia de produção de um modo fenomenista. Eis que se observa, sim, uma grande mudança nas formas de interação social – e, assim, de interação econômica – na sociedade e na economia contemporâneas. E essa transformação está advindo por meio das novas tecnologias da informação e da comunicação. Segundo Ladislau Dowbor, ao propiciar novos modos de apropriação de renda, ela está dando enorme suporte à financeirização e ao rentismo, configurando processos que parecem se contrapor à acumulação e ao lucro industriais. Será?

Ora, como a noção de modo de produção vem de Marx e do marxismo, é preciso perguntar em primeiro lugar como a noção de rentismo costuma ser pensada nessa tradição, que se vê sobretudo como crítica da economia política. Assim se pode dar um passo no processo de verificar se a reinvindicação teórica de Ladislau Dowbor faz sentido.

Rentismo no marxismo

Em O imperialismo – fase superior do capitalismo (2002), Vladimir Lênin, baseando-se no livro clássico de Rudolf Hilferding, apresentou mais uma vez o enlace do capital bancário com o capital industrial como capital financeiro: a concentração da produção produz monopólios, “a fusão ou junção dos bancos com a indústria: eis a história do aparecimento do capital financeiro, assim como daquilo que este conceito encerra” (Lênin, 2002, p. 36). E esse advento leva o capitalismo a uma fase superior em que as relações entre as nações está marcada pelo imperialismo.

É próprio do capitalismo em geral separar a propriedade do capital da sua aplicação à produção, separar o capital-dinheiro do capital industrial ou produtivo, separar o rentista, que vive apenas dos rendimentos provenientes do capital-dinheiro, do empresário e de todas as pessoas que participam diretamente na gestão do capital. O imperialismo, ou domínio do capital financeiro, é o capitalismo no seu grau superior, em que essa separação adquire proporções imensas. O predomínio do capital financeiro sobre todas as demais formas do capital implica o predomínio do rentista e da oligarquia financeira, a situação destacada de uns quantos Estados de “poder” financeiro em relação a todos os restantes. (Lênin, p. 176)

Em O capitalismo financeiro hoje (2016), François Chesnais consagra mais uma ver o termo rentista, denominando com esse termo não apenas o possuidor de capital que está ausente da produção, mas o próprio capital como rentista.[i]

O termo “capital rentista” é considerado por muitos como politicamente carregado e, portanto, a ser evitado. No entanto, numa perspectiva teórica marxista clássica (não vulgar) e kaleckiana, nenhuma análise dos fundamentos da dominação social e política do capital, em nível nacional ou internacional, pode simplesmente deixar o termo de lado. A noção é central para as dimensões econômica, política e social específicas para a teoria hobsoniana e marxista do imperialismo. (Chesnais, 2016, p. 8).

Pode parecer estranho, mas esse termo é empregado ocasionalmente em O capital nos livros II e III apenas para indicar o capitalista que não se envolve com a produção de mercadorias comuns, não financeiras. Eis aqui como o termo aparece no capítulo 32 do Livro III: “À medida que cresce a riqueza material, cresce a classe dos capitalistas monetários; aumentam, por um lado, o número e a riqueza dos capitalistas que se retiram, dos rentiers [rentistas]; por outro lado, fomenta-se o sistema de crédito e, com isso, aumenta o número de banqueiros, prestamistas, financistas etc. Como já expusemos, o desenvolvimento do capital monetário disponível é acompanhado do aumento da massa dos papeis portadores de juros, dos títulos públicos, ações etc.” (Marx, 2017, p. 568-9).

Em todos os três autores consultados, que formam uma amostra pequena, mas bem representativa do pensamento crítico de Marx ou que provém de Marx, o rentismo aparece como uma consequência inerente do desenvolvimento do próprio capitalismo – não como uma falha desse processo de desenvolvimento, sem engendrar também qualquer tendência para a superação do capitalismo.

Lênin especialmente associa explicitamente ao rentismo não apenas a uma fração de classe, mas a uma fonte de poder político nacional e internacional que sustenta o imperialismo. Ao mesmo tempo, o toma como um sintoma de uma suposta decomposição do capitalismo que estaria em curso já no começo do século XX.

Nessa perspectiva acima apresentada, o rentismo configura uma condição de vida de parte ou grande parte da classe proprietária, mas que pode ir além dela. Em particular, ele parece ter crescido muito com a expansão do que, desde Rudolf Hilferding no começo do século XX, é chamado de capital financeiro. De qualquer modo, o rentismo aparece aí apenas como decorrência do processo de diferenciação da classe capitalista: são rentistas aqueles proprietários de capital que podem gastar (consumir ou investir) sem funcionar como administrador na esfera da produção de mercadorias. A sua renda pode provir de lucro, aluguel, juro, dividendos etc.

Contudo, o rentismo pode estar sendo alimentado por novas formas de obtenção de renda. Por isso, é preciso perguntar se as novas tecnologias computacionais não estariam criando relações novas e, assim, gerando rendas de novo tipo e em grande volume, criando um processo de emergência. Ora, que atividades econômicas se tornaram possível com as chamadas plataformas?

Eis aí o que fazem: (a) fornecem serviços gratuitos, mas vendem publicidade; (b) fornecem serviços, mas cobram por eles, às vezes ou muitas vezes monopolisticamente; (c) internalizam mercados por meio de plataformas de venda de mercadorias; (d) propiciam o desenvolvimento de novos processos industriais e a geração de lucro; (e) criam uma logística para organizar trabalho disperso geográfica e/ou temporalmente. Ora, sejam o sejam, essas formas não apresentam, em si e por si mesmas, formas novas de ganhar dinheiro. São apenas formas de geração e/ou captura de mais-valor na esfera da circulação por meio de transações com mercadorias. Não demarcam, pois, um novo modo de produção, mesmo se precisam ser mais bem compreendidas (Srnicek, 2017).

Uma nova relação?

Como se sabe, o modo de produção não pode ser pensado a partir dos meios de produção e da tecnologia que nele são empregados, pois deve ser definido principalmente a partir da relação social que o caracteriza – ainda que seja a unidade da base material e da forma social.[ii] No caso do capitalismo, a relação que o define como tal é a relação de capital, ou seja, a relação social entre o capital e o trabalho a ele subsumido; o capitalista e o trabalhador entram aí apenas personificações de um e outro, respectivamente. A forma por excelência dessa relação é assalariamento, ainda que em seu desenvolvimento histórico, o capital tenha se valido também de outras formas de subordinação do trabalho. Ademais, é certo que relação pressupõe certo desenvolvimento das forças produtivas, o que – é óbvio – depende das tecnologias incorporadas nos meios de produção, assim como na estrutura das organizações.

Enquanto modo de interagir – e, em especial, de produzir –, as novas tecnologias, em especial, as plataformas, reconfiguram a sociabilidade em geral e, assim, também, a sociabilidade mercantil. Por isso mesmo, é preciso perguntar: está surgindo, com base nelas, uma nova relação social de produção? Ladislau Dowbor diz que sim porque afirma que está se desenvolvendo agora uma relação social de finanças e que ela se torna mais importante do que a relação de capital. É por isso que diz que “a financeirização supera [agora] a acumulação produtiva de capital”. De algum modo, que ainda não está claro, a acumulação D – D’ decolou e agora supera de longe a acumulação D – M – D’.

Mas donde vem ∆D = D’– D em cada um dos casos? No segundo caso, vem do mais-valor produzido pelo trabalho assalariado, mas donde proviria o mais-valor no primeiro caso? Ora, em geral, a valorização financeira D – D’ advém por meio do retorno a maior de um empréstimo. Esse retorno pode ser puramente fictício (a dívida é simplesmente rolada no vencimento); pode provir do mais-valor obtido em D – M – D’ por um capitalista industrial ou comercial, ou ainda ele pode advir de parte da renda de qualquer tomador de empréstimo. Contudo, como Ladislau Dowbor diz também que “a exploração por meio do rentismo supera a exploração salarial”, ele deve estar pensando em outra coisa. Que coisa?

Ele explica: “O que aconteceu com o capitalismo de antanho? Como os novos mecanismos não cabem nos conceitos tradicionais de análise do capitalismo industrial, acrescenta-se qualificativos: Robert Reich fala sobre capitalismo corporativo, Mariana Mazzucato sobre capitalismo extrativo, Grzegorz Konat sobre capitalismo real, Joel Kotkin sobre neofeudalismo (…). Mas não basta acrescentar qualificativos: é preciso pensar se se trata ainda de capitalismo”.

Ladislau Dowbor não especifica qualquer nova relação sociais de produção capaz de definir o novo modo de produção. De qualquer maneira, é preciso examinar tais “novos mecanismos” de extração de valor de que fala. Será que eles não cabem mesmo nos conceitos tradicionais? Foi visto já que o capitalismo não pode ser identificado com o capitalismo industrial; eis que nunca existiu um capital industrial puro que não se vale do capital de financiamento.

Mas isso não é tudo. Desde o seu começo, subsiste nesse modo de produção uma tendência endógena para a socialização capital, o que implica na expansão necessária do capital financeiro, assim como da financeirização (Prado, 2024). Pois, além de subsumir trabalho nas esferas da produção e da circulação, o capital se põe a si mesmo como mercadoria, ou seja, nos termos de Marx, pode funcionar como capital portador de juros.

Um velho “mecanismo”

Para examinar esse ponto é preciso apresentar as formas da relação entre capital e trabalho que podem ocorrer no capitalismo; mas não apenas aquelas que lhe são intrínsecas, mas também as formas de que pode se valer para subsistir e prosperar. Como se sabe, a relação social de assalariamento por meio da qual o capital subsume – formal e real, material e intelectualmente – o trabalho é central no modo de produção capitalista. Mesmo se há variações na estrutura do contrato de trabalho, o assalariamento requer sempre o aluguel (venda temporária) da força de trabalho para que esta fique à disposição do capitalista para a execução de determinadas tarefas, sob o seu comando.

Contudo, essa forma não se apresenta como exclusiva na história do capitalismo porque as relações sociais aí travadas são antes de tudo relações de mercadoria e de dinheiro. Sendo assim, pode existir aí – e mesmo prosperar de modo limitado – o trabalho por conta própria, resquício do artesanato, pois há certos serviços que escapam do controle do capital porque os seus agentes não conseguem açambarcar os meios de produção que lhes são necessários. De qualquer modo, ele dá suporte ao capitalismo.

Por outro lado, o capitalismo pode se valer de relações sociais pretéritas, tal como ocorreu no escravismo colonial justamente como forma de acumulação primária (ou primitiva). No capítulo sobre a “Acumulação primitiva” do Livro I de O capital uma dessas combinações históricas é assim descrita: “enquanto introduzia a escravidão infantil na Inglaterra, a indústria do algodão dava, ao mesmo tempo, o impulso para a transformação da economia escravista dos Estados Unidos, antes mais ou menos patriarcal, num sistema comercial de exploração (Marx, 2013, p. 538). Não é preciso entrar aqui na questão de saber se o escravismo colonial é um modo de produção distinto, pois basta ver que ele estabelece uma relação entre o capital e o trabalho que se vale da escravidão.

Contudo, isso não é tudo. Há a possibilidade de que a subsunção do trabalho ao capital se dê não pelo assalariamento, mas por meio do aluguel de um meio de produção, que é imprescindível para a produção de determinado bem ou serviço, mas está monopolizado por um capitalista. Marx, no capítulo sobre a “Maquinaria e a grande indústria” do Livro I, registra o caso das fábricas-cottage, que, para ele, representa uma de transição incompleta do artesanato para a manufatura. No caso por ele relatado, um capitalista possui uma máquina – trata-se de fato de uma produtora de vapor – de que muitos trabalhadores necessitam, o que os obriga a se subordinarem ao capitalista proprietário e a pagar um aluguel por sua utilização. É assim, diz ele, que “uma única máquina (…) pode novamente servir de base à produção artesanal”; eis que, neste caso, “a pequena empresa se liga à força motriz por meio do aluguel de vapor” (Marx, 2013, p. 351).

Nesse caso, os trabalhadores permanecem independentes uns dos outros, mas – é preciso ver – eles perdem parte da independência que têm aqueles que trabalham por conta própria. Eis que se trata de uma forma de subsunção do trabalho ao capital que não é coberta – é preciso ressaltar – pela categoria de “assalariamento”.

Uma volta do passado

Tem-se trabalhadores produtivos que produzem mercadoria e, assim, valor de uso e valor, e que dependem dos mercados para que possam realizar o valor produzido, por meio da metamorfose da mercadoria em dinheiro. Contudo, eles não se apropriam mais de todo o valor que adicionam aos custos primários de produção já que tem de pagar um aluguel para o proprietário da máquina – máquina essa que aparece como suporte material de um capital que está posto como mercadoria-capital. Ora, esse aluguel é o juro do capital emprestado, o qual se está implicitamente somado ao custo de depreciação.

Ora, aquilo que no caso relatado aparecia apenas como uma forma social do passado ganhou vida nova com as plataformas, que nada mais são do que grandes sistemas de máquinas processadoras de informações. Elas são agora meios de produção necessários para a produção de muitos bens ou serviços na sociedade contemporânea; eis que fornecem “serviços”, mediante cobrança de determinadas valores seja de pessoas seja de organizações em geral. Como são estocadoras, transformadoras e transmissoras de dados, as plataformas se tornam meios universais de interação social seja no mundo da vida seja nos sistemas, no sistema econômico em particular.

As plataformas de trabalho permitem subordinar trabalhos diversos e dispersos ao capital, para além do assalariamento. Pois, com elas, os trabalhos podem ser subsumidos ao capital financeiramente; eis que, nesse caso, o capital comparece não como capital, mas como mercadoria-capital. São trabalhos que produzem individual ou coletivamente mercadoria, valor e valor de uso. Eles são conjugados por intermédio da plataforma ou permanecem não conectados diretamente entre si. Do mesmo modo que acontece com os trabalhadores em conta própria, os agora considerados, suportes que são de mercadorias, têm de vendê-las para obter renda para si próprios e para pagar os juros do capital emprestado, assim como para repor os custos da produção.

Nesses casos, os trabalhadores entram no negócio com a sua força de trabalho e com certos meios de produção que eles próprios precisam possuir – como valores de uso que tem valor, mas não como capital. O capital do proprietário da plataforma não atua aqui como capital industrial, não organiza o trabalho por meio de uma empresa fabril ou comercial, mas como mercadoria-capital, ou seja, como capital de empréstimo ou, nos termos de Marx, como capital portador de juros.

Juro, como se sabe, é o valor de aluguel do capital posto numa transação em que apenas o seu valor de uso – mas não a propriedade – é de fato transacionada. É essa a forma do ganho (aluguel de meios de produção representados em dinheiro) mesmo se a cobrança atingir valores acima dos juros de mercado e até mesmo grandezas abusivas.

Conclusão

Há uma nova força produtiva: as tecnologias digitais de processamento da informação e da comunicação. Há uma expansão da função do capital portador de juros. Há uma mudança profunda nas formas de interação social. Contudo, não há um rentismo estruturalmente novo, não há uma relação social de produção nova, não há um “mecanismo” novo de extração de valor, logo – a fortiori – não há um novo modo de produção.

*Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Capitalismo no século XXI: ocaso por meio de eventos catastróficos (CEFA Editorial). [https://amzn.to/46s6HjE]

Referências


Chesnais, François – Finance Capital Today – Corporations and banks in the lasting global slump. Leiden/Boston: Brill, 2016.

Dowbor, Ladislau – A sociedade na era digital: um outro modo de produção. Portal Outras Palavras, 19/04/2024. https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/rentismo-o-novo-modo-de-producao/

Lênin, Vladimir I. – O imperialismo – fase superior do capitalismo. São Paulo: FE/Unicamp, 20211. Edição eletrônica.

Marx, Karl – O capital – Crítica da Economia Política. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013.

Marx, Karl  – O capital – Crítica da Economia Política. Livro III. São Paulo: Boitempo, 2017.

Prado, Eleutério F. S. – O “rentismo! e a léxis de O capital. Blogue Economia e Complexidade: https://eleuterioprado.blog/2017/10/17/o-rentismo-e-a-lexis-de-o-capital/

Prado, Eleutério F. S. – Da noção de capital financeiro. A Terra é Redonda: https://aterraeredonda.com.br/capital-financeiro-e-financeirizacao/

Srnicek, Nick – Plataform capitalism. Cambridge: Polity Press, 2017.

Notas


[i] Ver sobre isso Prado (2017).

[ii] Numa seção de seu artigo, Um desafio metodológico e teórico, Dowbor procura especificar o modo de produção por meio da base material (meio de produção/tecnologia). Assim o feudalismo, o capitalismo e o suposto modo de produção informacional decorrem do emprego da terra, das máquinas tradicionais e das máquinas informacionais, respectivamente. Cai, assim, na reificação; como não distingue a forma social da base material, raciocina com base na forma da objetividade característica no capitalismo.

Fonte:  https://aterraeredonda.com.br/rentismo-um-novo-modo-de-producao/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=novas_publicacoes&utm_term=2024-04-29