Correio do Povo entrevista o doutor em Sociologia e professor universitário, Marcos Rolim
Marcos
Rolim é doutor em Sociologia e professor universitário. Ele também é
membro fundador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Rolim
concluiu seus cursos de mestrado e doutorado na Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS), onde também realizou seu pós-doutoramento.
Ele é especialista em Segurança Pública pela Universidade de Oxford, na
Inglaterra. Rolim também é jornalista graduado pela Universidade Federal
de Santa Maria (UFSM).
Ele é professor do curso de mestrado em
Direitos Humanos da UniRitter, membro fundador do Instituto Cidade
Segura, integrante do conselho administrativo da ONG Artigo 19 e ainda
membro da Assembléia Brasil da Anistia Internacional. Rolim é autor de
livros, entre os quais estão “A Síndrome da Rainha Vermelha,
policiamento e segurança pública no século XXI”, publicado pela editora
Zahar, o “Bukying o pesadelo da Escola”, publicado pela Dom Quixote e “A
Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência
extrema”, publicado pela Appris.
Em uma fala sua, durante o Connex, o senhor se mostrou contrário ao fim das saídas temporárias dos presos. Por quê?
Porque as saídas temporárias beneficiam
apenas os presos do regime semiaberto, ou seja, aqueles que já trabalham
ou estudam fora da prisão e que se recolhem à noite no estabelecimento.
O benefício permite que, em algumas datas, como o Natal, os presos
desse regime passem alguns dias com suas famílias. Quando o Congresso
acaba com esse benefício, vende a ideia de que está reduzindo o risco de
fugas, sem que as pessoas saibam que o próprio regime semiaberto já
envolve a presença do preso no convívio social e é baseado na confiança.
O pior, entretanto, é que o projeto aprovado reintroduz a necessidade
dos laudos técnicos para a progressão de regime, o que irá fazer com que
o tempo de encarceramento em regime fechado aumente para todos os
presos, porque não há técnicos suficientes para elaborar os laudos e a
superlotação impede que os presos sejam classificados e suas penas
individualizadas.
Devido à subnotificação de crimes, como chegar aos verdadeiros índices de criminalidade?
A maioria das vítimas não registra
ocorrências criminais, o que ocorre por muitos motivos, sendo que,
quanto menor for a confiança da população nas polícias, maiores serão as
taxas de subnotificação. Por essa razão, registros policiais não devem
ser usados para diagnóstico e para acompanhamento das tendências
criminais, porque eles refletem apenas parte do problema. Por isso,
muitos países lançam mão de pesquisas de vitimização, um recurso que
permite estimar com muito mais precisão o que, de fato, está ocorrendo.
Como prevenir para que a violência ocorra?
Há muitas formas de violência e seria
preciso tratar cada uma delas para definir medidas correspondentes de
prevenção. Toda supressão arbitrária de direito é violência, embora
situações como a fome, por exemplo, não costumam ser classificadas como
violentas. Se estamos pensando na violência física letal, por exemplo, é
preciso saber o perfil dos autores e das vítimas, as circunstâncias, os
locais e os horários onde os fatos se concentram para que seja
possível, por exemplo, realizar o policiamento de “pontos quentes” (hot
spots), uma das estratégias mais exitosas de policiamento preventivo no
mundo. Se lidamos com homicídios correlacionados ao abuso de álcool,
podemos estabelecer regras mais restritivas para o consumo de bebidas
alcoólicas, como foi o caso da experiência preventiva de Diadema (SP);
se lidamos com homicídios provocados por disputas entre gangues juvenis,
as estratégias serão outras. Aqui, como em todos os demais problemas de
segurança, não há remédios genéricos e quem imaginar que há uma solução
simples é porque não sabe sobre o que está falando.
Para o senhor como alguém que caiu no mundo do crime pode verdadeiramente se recuperar?
50 anos de pesquisas criminológicas em
todo o mundo demonstraram que sim, sem qualquer dúvida. As evidências
disponíveis comprovam que a grande maioria das pessoas que se envolveram
com o crime desistem desse caminho diante de determinadas situações ou
oportunidades como maior escolarização, emprego formal, casamento,
conversão religiosa, etc. Então, não se trata de opinião, mas de uma
dinâmica conhecida como desistência do crime que é muito conhecida em
todo o mundo.
O que seria uma repressão mais qualificada?
Chamamos
de repressão qualificada aquela que atua com foco e a partir de um
planejamento a respeito dos objetivos a serem alcançados. Se a polícia,
após cuidadoso trabalho de inteligência, efetuar a prisão de um matador,
isso irá impedir que muitos homicídios ocorram e protegerá também a
vida dos policiais que hoje são expostos a riscos desnecessários por
conta de um discurso a favor do “confronto”. Se a polícia passa o tempo
todo prendendo jovens pobres que sobrevivem no varejo do tráfico, essas
prisões não causam qualquer prejuízo ao modelo de negócio, porque essa
mão de obra é rapidamente substituída. Tais prisões, entretanto,
terminam por recrutar jovens para as facções criminais que atuam nas
prisões. O encarceramento em massa produzido pela política de “Guerra
contra as drogas”, aliás, só favorece o poder das facções e amplia os
termos do problema que se pretendia enfrentar. As apreensões de drogas
ilegais, por seu turno, estão muito provavelmente, produzindo migração
para roubos – forma de resgatar os compromissos com os fornecedores.
Falando em prevenção, qual a sua opinião sobre o Proerd da Brigada Militar?
O Proerd possui
a melhor das intenções e mobiliza policiais que se dedicam à prevenção
voluntariamente. O problema do Proerd é que todas as pesquisas já
realizadas no Brasil a respeito dos seus efeitos mostram que ele não
funciona. Ou seja, não se verifica redução de violência ou de consumo de
drogas entre os estudantes que participam do Proerd quando comparados
aos grupos de controle. Então, trata-se de um exemplo impressionante de
um programa que existe há mais de 25 anos em todo o Brasil e que não se
sustenta com base em evidências. Mais uma vez, não se trata de opinião,
mas de fato.
Mergulho nas ideias do pensador indígena,
em possível diálogo com Heidegger e Butler. Eurocentrismo, diz, gesta a
humanidade zumbi, sem memória e identidade. A perda do nós plural e criativo é o fim do mundo. E o ancestral, antídoto
Publicado 26/04/2024 às 17:10 - Atualizado 26/04/2024 às 18:23
I. Eduardo Viveiros de Castro, no posfácio de Ideias para adiar o fim do mundo,
do intelectual e ativista indígena Ailton Krenak, contextualiza as/os
leitoras/es do livro que se trata, assim como faz Davi Kopenawa e Daniel
Munduruku, de uma reflexão em busca da história da descoberta do Brasil pelos índios.
Quer dizer, uma contra-história e, também, uma contra-antropologia
atravessa o ensejo de Krenak. Seu objeto é a desnaturalização da
história única da humanidade, aquela mesma da cultura dominante do
Estado-nação moderno que se voltou belicosamente contra as populações
indígenas. Krenak é propositor, segundo Viveiros de Castro, de perguntas
inquietante: somos uma humanidade? Uma humanidade única e não diversa?
Uma humanidade e não uma rede “inextrincável” e “interdependente” de
humanos e não humanos? Quem seria esse “nós” no questionamento
krenakiano? “Nós” relativo a quem? Ao quê? Uma pergunta sobre
identidade? Sobre o quem somos? Estamos ante, pois, de questionamentos
existenciais, em que esse “nós” deixa de se portar unívoco e
unidimensional, voltando-se para um nós pluralista, móvel, criativo e
variável – diferencial. Para os Krenak isso incluiria a terra, as
pedras, as montanhas, os rios, os seres em geral. Esses são alguns dos
questionamentos, ou ideias propositivas, para se lançar, então, o adiamento do fim do mundo.
Talvez tenhamos perdido uma percepção um tanto quanto elementar em
termos de existência humana: nos esquecemos que coabitamos o mundo, que o
compartilhamos com outras pessoas, sendo ele, pois, a nossa grande
morada. Esse questionamento, contudo, não passou desapercebido na
história da filosofia ocidental, dado que já tratado por Martin
Heidegger. Também ele se ocupou de refletir sobre os modos (im)possíveis
de sermos e de estarmos na terra, logo, coabitando-a. O habitar
encontra-se, de uma maneira ou de outra, implícito em todas as dimensões
da existência humana, ao ponto desse gesto se confundir com o próprio
viver. O modo como vivemos decorre de uma extensão, ou de uma
conservação, do nosso repertório de crenças, de valores e de intenções
que, ao verterem-se enquanto escolhas, se concretizam no habitar.
Habitar incorre, nesse sentido, na própria existência, na própria
maneira como decidimos ser. Como podemos, enfim, coabitar o mundo? A
questão colocada pelo filósofo alemão, conhecida através da sua
influente conferência Construir, habitar, pensar, de 1951, nos
servirá, então, como uma espécie de horizonte dialogal para refletirmos
os alcances do pensamento do indígena, ambientalista, filósofo e
escritor brasileiro Ailton Alves de Oliveira Krenak.
II. As relações entre construir e habitar se
imbricam na explicação de Heidegger. São dialogais e retroalimentares.
Isso porque o objetivo da construção é o habitar, contudo, é na própria
ação de habitar que o construir encontra o seu sentido. Assim, o
desempenho de uma atividade implica habitar. A reflexão de Heidegger se
inicia com a própria pergunta: “O que é o habitar”? Não se trata da
simples relação com o morar, com o plano utilitário das edificações.
Entendendo a linguagem não apenas como veículo, mas como força criadora
do mundo, recorre ao emprego do termo no antigo alto-alemão para situar o
significado de construir: baun. A descoberta do filósofo é de que, em sua origem, construir significava, justamente, habitar. A vocábulo baun
não se referia, pois, apenas a ação de habitar, mas englobava o
permanecer, o morar, que indicaria um aceno de “(…) como devemos pensar o
habitar que aí se nomeia” (HEIDEGGER, 2012, p. 126). De todo modo, não
se encerra, aí, a definição do habitar. Isso porque baun, o construir, derivou do verbo bauen,
que, também, guarda relação direta com aquele, mesmo que, naquela
atualidade, tenha deixado de implicar nessa significação. Contudo,
Heidegger recobra o seu esteio original: “que amplitude alcança o vigor
essencial do habitar” (HEIDEGGER, 2012, p. 127)? É interessante o
movimento percorrido por ele, dado que essa percepção o leva a entender
que bauen seria a mesma expressão alemã para bin, que não seria outra coisa que o verbo ser conjugado em eu sou e tu és.
Se ser é habitar, logo, eu habito e tu habitas. Havendo, dessa maneira,
a abertura para a coabitação. Essa disposição resultaria, nessa
direção, nos modos de existência que se dão através do habitar, o que
implicaria, no limite, dizer que o “(…) o homem é a medida que habita
(HEIDEGGER, 2012, p. 127).
Byung-Chul Han disse que Heidegger teria sido o último defensor da
ordem terrena (2018). Porém, ele não foi o último. O filósofo alemão
encontra contemporâneos na atualidade, sendo um deles, além do próprio
Han, o indígena Ailton Krenak. Heidegger, que via na linguagem modos de
instituição de mundos, se ocupou com esmero ao estudo da linguagem. Por
isso se faz necessário explicar o significado de Krenak. Krenak seriam
dois termos, adverte Ailton: kre, uma partícula que significa cabeça, e o complemento nak,
que seria justamente terra. Vejamos o alcance da filosofia da terra do
escritor indígena, que alcança o diálogo proposto por Heidegger: “Krenak
é a herança que recebemos dos nossos antepassados, das nossas memórias
de origem, que nos identifica como ‘cabeça da terra’, como uma
humanidade que não consegue se conceber sem essa conexão, sem essa
profunda comunhão com a terra” (KRENAK, 2012, p. 48). Ailton Krenak
deixa em evidência em seus escritos que a terra, conforme concebida por
seu povo, não seria, pois, um mero sítio, como se designa hoje em dia,
avançando para aquilo que o filósofo alemão também se preocupava: a terra como esse lugar que todos nós compartilhamos.
Heidegger e Krenak, enquanto contemporâneos, estão preocupados com os
modos de “desraigamento” no mundo terreno, do próprio planeta enquanto
moradia.
Podemos expandir um pouco mais a reflexão heideggeriana, colocando-a
em diálogo com a filosofia krenakiana, se recobrarmos que há dois
significados subjacentes e complementares em bauen (construir):
proteger/cultivar e edificar. O filósofo da floresta se empenha na
recuperação desses significados originais de habitar, o que o leva ao
seu entendimento de que bauen é permanecer, bem como um de-morar-se. Além disso, e recobrando o gótico wunian,
se poderia especificar ainda mais o âmbito dessa experiência, quer
dizer, ser e permanecer em paz. Paz, ainda explorando o potencial da
linguagem conformadora do mundo, seria o mesmo que “livre”, que de
acordo com a sua a origem denotaria resguardado, que, no limite, seria a
devolução “(…) de maneira própria, alguma coisa ao abrigo de sua
essência” (HEIDEGGER, 2012, p. 129). Resguardar mantém relação com
libertar-se: “(…) libertar para a paz de um abrigo” (HEIDEGGER, 2012, p.
129). A discussões propostas pela filosofia de Martin Heidegger nos
leva, potencializada a partir das reflexões do pensador indígena Ailton
Krenak, que o traço fundamental do coabitar seria, não outro, o estado
de permanecer pacificado envolto na liberdade de um pertencimento,
resguardando as coisas em sua autenticidade possível.
II. A evidência de que viveríamos o antropoceno,
para Ailton Krenak, seria motivo suficiente para a ação, para um
reencontro com o mundo, para um despertar para a coabitação pacífica da
terra, para a sua preservação e de seus viventes. Em sua opinião, o
antropoceno, considerado um era geológica caracterizada pelos impactos
da exploração humana sobre o planeta, deveria soar como um alarme nas nossas cabeças.
A grande morada é a preocupação dos dois filósofos, pois como explica
Ailton Krenak: o planeta terra, de onde se exaure as fontes de vida, é o
que possibilita ao seu povo o sentimento de estar em casa, de que havia
“uma casa comum que podia ser cuidada por todos” (KRENAK, 2020, p. 47).
Contudo, a escritor indígena pensa que essa disposição diante do mundo,
que já vinha sendo assolada pela noção eurocêntrica de humanidade,
teria entrado num estado alarmantemente expansivo devido à exclusão de
toda organização de vida que estivesse fora dos domínios do capitalismo
consumista. Aqui entra, então, a sua filosofia da terra, ou do
enraizamento, que se lança ao perspectivismo e contrário à
unidimensionalidade do mundo. O povo Krenak, esclarece Ailton, foram
animados justamente pelo coabitar o mundo de maneira diversa,
pluralista, sendo também partes constitutivas do próprio planeta, não
percebido, pois, como objeto a ser explorado, “(…) em que havia
corresponsabilidade com os lugares onde vivemos e o respeito pelo
direito à vida dos seres, e não só dessa abstração que nos permitimos
construir como uma humanidade, que exclui todas as outras e todos os outros seres” (KRENAK, 2020, p. 27).
Os Krenak pertencem, assim sendo, à ordem da terra, estando, então,
em movimento interacional, um estar submetido em modo atento e aberto em
escuta ao nomos da terra. Nomos é um conceito que deriva da
mitologia grega, podendo ser interessante junto às reflexões de Ailton
Krenak. Falar em nomos da terra representaria o daemon das
leis, estatutos e normas. Krenak e Heidegger se movem, assim sendo, para
a sua ordem mais elementar, isto é, a existência na terra. Também o
filósofo alemão, em seu texto Construir, habitar, pensar, se move para a factualidade e para o pluralismo terreno-imanentista, percebendo a vida como uma quadratura terra e céu, mortal e divino.
Os dois autores sabem que o ser humano é mortal, não agente. A
responsabilidade diante do habitar reside nisto: poderia não haver novas
natalidades em muitos sentidos. Também ouvem os seus Deuses, que mais
do que entidades apartadas do mundo – nele se encrusta e enuncia
sentidos passíveis de escuta. Naquele lugar, tanto na floresta negra
quanto ao longo do Rio Doce/MG, ele tem o seu lugar num recanto
encantado e com sentidos, sendo a condição para isso o saber habitar, o
que implicaria o saber ser com outrem no mundo.
A terra, de acordo com Ailton Krenak, deve ser entendida como um
organismo vivo, sendo ela, não apenas para seu povo, considerada uma mãe
e provedora, mas em um nível que vai além da substância ou uma
provedora de recursos, mas “(…) também na dimensão transcendente que dá
sentido à nossa existência” (KRENAK, 2020, p. 43). Ou seja, o mundo
terreno, para os Krenak, oferece a oportunidade de um habitar que
implica mais do que um conhecimento ativo sobre o mundo, mas dele
recebendo aprendizados, o que os tornam intérpretes da natureza, posto
que ela lhe oferece sentidos e modos pluralistas de ser. O filósofo
indígena, contudo, percebe o progressivo esquecimento da terra e do
habitar, onde se verificaria todo um afastamento dos lugares de origem.
Obviamente que não se trata, aqui, de alguma explicação que poderia
levar ao entendimento da atualização de uma disputa entre modos de vida
sedentário e nômade. O que Ailton Krenak busca refletir é sobre a perda
dos sentidos de deslocamento na atualidade tecnológica, questão para ele
importante por afastar as pessoas do mundo: “Se é certo que o
desenvolvimento de tecnologias eficazes nos permite viajar de um lugar
para o outro, que as comodidades tornam fácil a nossa movimentação pelo
planeta, também é certo que essas facilidades são acompanhadas por uma
perda de sentido dos nossos deslocamentos” (KRENAK, 2020, p. 43). Aqui
entramos no âmago do apontamento de Ailton Krenak sobre a alienação do
mundo, sobre o desenraizamento descomprometido com relação à existência
terrena, do esquecimento da facticidade do ser no mundo, que se opera no
habitar e na duração. A sensação percebida pelo filósofo indígena é de
que as pessoas, na atualidade, estariam vivendo, paralelamente, em “um
cosmos vazio de sentido” e “desresponsabilizados de uma que possa ser
compartilhada, mas sentimos o peso dessa escolha sobre as nossas vidas”
(KRENAK, 2020, p. 44).
Krenak acredita, em todo caso, que estaríamos vivendo em uma espécie
de situação de cegueira coletiva, isto é, impossibilitados de nos
situarmos junto à facticidade terrena, que invoca sentidos pluralistas
de existência e, de modo correlato, imprime gravitação existencial. Essa
cegueira avançaria pelo âmbito individual e social, posto que de a
unidimensionalidade da noção de humanidade eurocêntrica estaria em risco
não somente o habitar, mas, sobretudo, o coabitar – condição para a
“cooperação dos povos, não para salvar os outros, mas salvar a nós
mesmos” (KRENAK, 2020, p. 44). Para tanto a necessidade de um despertar
diante da perda de sentidos, da perda dos sentidos de coabitação do
mundo, não sendo este um problema apenas dos povos originários. A perda
da possibilidade de imprimir sentidos alternativos e pluralistas ao
mundo, e com isso invocar novas possibilidades de imaginação social e
política, que pelo encontro a partir da coabitação e da cooperação
instituem acontecimento geradores de novidade e de diferença, deveria se
voltar para o recontro com a ordem terrena. Esse gesto se daria, de
qualquer maneira, em função do caráter totalizante da modernidade
eurocêntrica e da dinâmica do capitalismo, elementos que conjugados
estão levando à “(…) iminência de a terra não suportar nossa demanda”
(KRENAK, 2020, p. 45). Ailton Krenak é sabedor, de toda maneira, da
unidimensionalidade artificial elaborada pelo capitalismo, especialmente
a partir da noção de mercadoria, que por meio das suas fantasmagorias
fetichistas impedem a visão sobre a terra, ou ambiente planetário, para
além da reificação.
III. A vida humana e terrena, agora não somente
entre os povos originários, enfrentaria uma tragédia que atingiria a
todos nós. O pensador indígena percebe apenas movimentos paliativos,
muito em função de decisões políticas regionalizadas e localizadas, que
abririam, em sua perspectiva, algum “espaços de segurança temporária”
para as comunidades em geral. Mas ainda avançando sobre a reificação do
mundo pelo capitalismo hegemônico, que seria algo bastante diverso da
observância da sua tangencialidade, o que presenciamos, desenvolve
Ailton Krenak, é o “esvaziamento sentido do compartilhamento dos
espaços”, quer dizer, os próprios sentidos de coabitar o mundo. O que se
vê, na atualidade, são medidas paliativas ou ações orientadas pela
razão cínica neoliberal, que “(…) depende cada vez mais da exaustão das
florestas, dos rios, das montanhas, nos colocando num dilema em que
parece que a única possibilidade para que as comunidades humanas
continuem a existir é à custa da exaustão de todas as outras partes da
vida” (KRENAK, 2020, p. 46). O que se deve ter em mente é que o
voltar-se para terra gera, correlatamente, gravitação e pluralismo junto
aos modos de existência, dado que na ordem planetária há o acidental, o
desviante, o sinuoso e as multiplicidades – disso a possibilidade de
oferecer sentidos ao mundo, pois passamos a ter o entendimento em modo
vetorizado ante à existência em si, sem o movimento sujeito/objeto,
fazendo do habitar uma forma de afirmação da vida pela possibilidade da
saída do tempo único, o qual o capitalismo presentista faz parecer como
modo padrão, ou absoluto, de existir.
Além disso, a suspensão dos modos reificados de habitação do mundo,
amparados pela lógica do consumo da vida planetária, dariam condições de
possibilidade para a produção de espaços e para a coabitação. Ora, o
espaço único, a unidimensionalidade proposta pelo capitalismo, não
oferecia outra coisa, ainda mais em seu nível neoliberal, do que a
competição por espaços amparados na lógica na coabitação e da partilha,
mas da exploração e da individualização não (inter)colaboracionista.
Ora, a subjetividade neoliberal não abarca o dissenso e o congregar –
não reparte e não partilha. Está focada na unidimensionalidade, na
medida em que, em seu modo de conceber o mundo, só há espaço para o seu
Eu, abrindo, em último modo, todo um processo de expulsão do outro. Esse
processo é assimilado por Krenak através dos projetos de exaustão da
natureza.
IV. Essa discussão pode encaminhar, com forma de
potencializarmos a reflexão de Ailton Krenak, a partir das discussões
realizadas entre Judith Butler (2015, p. 75-77) e Hannah Arendt. De
acordo com a filósofa estadunidense, quando Arendt refletiu sobre a
pólis grega e o fórum romano ela estava pensando para além do âmbito
normativo e físico das cidade-estado, mas para as próprias relações
instituídas entre as pessoas, o que abriria, naquele espaço de aparição,
a comunicação e a ação entre elas. A leitura de Butler, então, caminha
para a compreensão dos espaços partilhados entre as pessoas. Esses
espaços mediados pelo entre abrem margem para a heterotopia ou para
diversidade. Assim, os horizontes públicos dependem, em sua acepção, de
dinâmicas que estão para além da disposição infraestrutural e objetiva,
apontando para a substância das organizações políticas, que se deseja
reguladas pela pluralidade. Os espaços públicos, e aqui levamos em conta
o mais primordial de todos, a própria terra, para nos voltarmos ao
diálogo com Krenak, são estabelecidos se nos movimentarmos para além da
superfície institucional, voltando-se para as fronteiras estabelecidas
entre os corpos. Há um movimento disciplinarização dos espaços, em que
nem todos os corpos que habitam, ou querem habitar um espaço, são
incluídos. Essa é a questão colocada por Butler: como instituir a
pluralidade ante às fronteiras? Quem faria parte desse horizonte comum
pluralizado? Parece mesmo que Krenak está em um diálogo virtual com a
filósofa estadunidense, haja vista também o seu intuito de transformar
esses apontamentos como ação política. Ambos, cada qual com seus
horizontes mais particulares de preocupações, estão em busca da
coabitação e a da produção de espaços interrelacionais, dialógicos e de
convívio.
A esse respeito, Ailton Krenak é bastante contundente, flexionando
toda uma ontologia do perspectivismo ameríndio: “Definitivamente não
somos iguais, e isso é maravilhoso saber que cada um de nós que está
aqui é diferente do outro, como constelações” (KRENAK, 2020, p. 33).
Agora é Krenak quem potencializa as reflexões de Judith Butler, pois
para ele o fato de coabitarmos um espaço possível não implica que somos
iguais, mas, e aqui a força do seu pensamento: “(…) significa exatamente
que somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças, que
deveriam guiar o nosso roteiro de vida” (KRENAK, 2020, p. 33).
Encontra-se, em sua perspectiva, um olhar para um coabitar que percebe a
humanidade, e os modos de existir, de maneira pluralista – não através
do protocolo da humanidade enquanto singular-coletivo, que, segundo
aponta, retiraria a nossa alegria de estar vivos (KRENAK, 2020, p. 33).
V. Ailton Krenak explica a dimensão espacial por
onde os povos Krenak habitam o Brasil. Do nordeste até o leste de Minas
Gerais, onde encontra-se o Rio Doce, bem como na fronteira do Brasil com
o Peru e a Bolívia, no Alto do Rio Negro. O pensador ameríndio deixa em
evidência os sentidos efetivos da luta dos Krenak diante dos tensos
contextos políticos nacionais que envolvem os direitos dos povos
originais de habitarem e existirem em suas terras. Krenak faz, então, um
retrospectivo que dos modos como os povos originários habitam, pensam e
existem em suas terras e como isso foi, historicamente, pervertido
através da história colonial-expansionista-administrativa. Passados
séculos de colonialismo, e superando as expectativas de que as
populações indígenas não sobreviveriam aos movimentos de ocupação dos
seus territórios, com previsões de que já não se manteriam as
originárias formas de organização existencial, vemos os Krenak
permanecendo em luta: “Isso porque a máquina estatal atua para desfazer
as formas de organização das nossas sociedades, buscando uma integração
entre essas populações e o conjunto da sociedade brasileira” (KRENAK,
2020, p. 39). Os sentidos do habitar krenakianos são assim, postos em
evidência, sendo a terra considerada, por eles, não apenas como um
reduto onde a natureza é prospera e oferece alimentos e moradia: ali
está onde sobrevive os modos que cada uma dessas sociedades tem de se manter no tempo.
A interação com o planeta, com o mundo terreno, está muito distante
de uma separação sujeito e objeto, mas volta-se para imanência radical,
por onde se faz possível percebê-lo em modo de agência e, então,
assimilar os seus sentidos, longe da razão instrumental ocidental. Por
exemplo, o rio Doce, para os Krenak, que sofrera ecocídio através do
rompimento da Barragem do Fundão em Mariana/MG, que liberou 55 milhões
de metros cúbicos de lama que armazenava, é considerado por essas
pessoas como Watu, ou seja, ele é tido como o seu avô. Em
seguida é explicada a tensão existente entre fronteiras e coabitação, em
que a perspectiva krenakiana do habitar-existir é abordada: “Ele não é
algo de que alguém possa apropriar; é uma parte da nossa construção como
coletivo que habita um lugar específico, onde fomos gradualmente
confinados pelo governo para podermos viver e reproduzir as nossas
formas de organização (com toda essa pressão externa” (KRENAK, 2020, p.
40). De qualquer maneira, o que estaria em curso na história brasileira
não seria outra coisa do que a não coabitação, ou dialogando abertamente
com Krenak, a incapacidade de se acolher os seus habitantes originais.
O projeto colonialista está em curso, desdobrando-se pelas malhas do
capitalismo neoliberal ao invisibilizar e impedir os povos originários
do seu existir por não reificarem o mundo natural e planetário, mas o
habitando-o e existindo com ele – por não se ampararem em sua lógica
unidimensional e totalizadora, derivada duma lógica de mundo
individualizada e não aberta à coabitação, posto que se move pela
subjetividade concorrencial e libertarista. Esta é a tônica da história
brasileira majoritária, de acordo com ele, através das suas seguidas
atualizações: “sem recorrendo a práticas desumanas para promover
mudanças em formas de vida que essas populações conseguiram manter por
muito tempo, mesmo sob o ataque feroz das forças coloniais, que até hoje
sobrevivem na mentalidade coletiva de muitos brasileiros” (KRENAK,
2020, 41). O ecocídio enfrentando pelo o avó dos Krenak, o rio Watu,
que fora encoberto pela lama tóxica da Barragem do Fundão, apresenta-se
como uma imagem síntese do perspectivismo ameríndio, que invoca uma
ontologia do enraizamento relacional com o mundo: “Faz um ano e meio que
esse crime – que não pode ser chamado de acidente – atingiu as nossas
vidas de maneira radical, nos colocando na real condição de um mundo que
acabou” (KRENAK, 2020, p. 42).
Ailton Krenak recobra, em um gesto decolonial, os horizontes modernos
do significado de humanidade, percebida como história única ou singular
coletivo. A colonização realizada pelos brancos europeus se amparou, em
sua concepção, “na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que
precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para
essa luz incrível” (KRENAK, 2020, p. 11). É, em última medida, o
processo civilizador, que implicou dois movimentos simultâneos: a
implementação de uma lógica de como habitar a terra e, correlatamente, a
instauração de modos de verdade, informados por uma dimensão de sujeito
que perscruta o objetivo, algo que teria orientado as escolhas
realizadas em diferentes momentos históricos. A questão para Krenak é
esta: haveria uma humanidade no singular? Torna Krenak a mover um
questionamento propositivo: “Por que insistimos tanto e durante tanto
tempo em participar desse clube, que na maioria das vezes só limita a
nossa capacidade de invenção, criação, existência e liberdade” (KRENAK,
2020, p. 13)?
A humanidade eurocentrada seria, para ele, uma espécie da
liquidificador. Arrisca a dizer que 70% porcento das pessoas, hoje,
estariam alienadas dos modos de ser em razão dos processos
modernizadores, que retirou as pessoas do campo e das florestas para
lançá-las em favelas e periferias, tornando-se mão de obra nas cidades.
Seria pessoas desenraizadas, privadas dos seus modos de ser e de habitar
o mundo. Um processo, dito de outra maneira, de esquecimento comandado:
“Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória
ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão
ficar loucas neste mundo do maluco que compartilhamos” (KRENAK, 2020, p.
14). O que Krenak aponta é para o esquecimento do planeta, derivado do
singular coletivo humanidade e atualizado pelo “mito da
sustentabilidade”, o que levou a alienação do organismo que fazemos
parte, ou seja, a terra: “passamos a pensar que ele é uma coisa e nós,
outra: a terra e a humanidade” (KRENAK, 2020, p. 16). Daí a sua
ontologia do enraizamento, ou perspectivismo ameríndio, que se percebe
tudo como natureza. Ele é taxativo: “Tudo em que eu consigo pensar é
natureza” (KRENAK, 2020, p. 17).
Os povos originários, argumenta Krenak, estão enredados ao mundo –
são parte integrante e constitutiva do mesmo. A terra e os seres também
vivem. Montanhas são casais, tem família, trocam afetos, fazem trocas.
Essas montanhas, como em regiões andinas, são reverenciadas pelas
pessoas, dado que são sensíveis a sua alteridade. Mais um questionamento
de Ailton Krenak: por qual motivo essas narrativas não entusiasmam
mais, sendo esquecidas e apagadas? Por qual motivo elas são interditadas
em favor de uma narrativa global, universalizante, unidimensional,
superficial, única? É o abuso da razão, retomando a sua
expressão. O conceito moderno de história, a história única, o
eurocentrismo racionalista alienariam as pessoas de tudo, inclusive, as
medicalizando. Há a crítica ao conceito de progresso, modulação temporal
desta forma de história aludida, que em nome do dito bem-estar da
humanidade imprime todo um movimento de desenraizamento e de
deslocamento das pessoas do organismo terra. Esse movimento expande-se,
ainda hoje, para as “bordas do planeta” – margens de rios, beiras de
oceanos; na África, nas Ásia, na América Latina. São caiçaras,
indígenas, quilombolas, aborígenes, em suma, a “sub-humanidade”. A
humanidade moderna expulsa o outro, considerado sub-humano. Justamente
aqueles que não esqueceram a terra, que estão enraizados, que convivem
com as suas manifestações, que lhe emprestam dignidade para a sua
alteridade.
Uma organicidade que incomoda a dita humanidade, que cinde seus
filhos de sua mãe. Que expulsa aqueles que querem “comer terra, mamar
terra, dormir deitados sobre a terra, envoltos na terra” (KRENAK, 2020,
p. 22). É a crítica radical ao esquecimento do mundo. ao seu
descolamento da imanência em favor de uma abstração desfactizada. Um
movimento que interdita a diversidade, nega a pluralidade de modos de
coabitação e de existência – de modos de ser. No horizonte da humanidade
eurocentrada, da história única, a qual deve-se ser crítico invocando a
diferença, tornou-se majoritário um modo de existir que, amparado no
desgarramento da terra a partir da lógica sujeito e objeto, que se move
pelo consumo e interdita a cidadania. Deriva-se desse movimento, na
perspectiva krenakiana, toda uma lógica de expulsão do outro e de veto
às alteridades, disposição que acarreta, no limite, um estar no mundo
alienante, desprovido de crítica e consciência de si, dos outros e do
todo. “Essa ideia dispensa a experiência de viver numa terra cheia de
sentido, numa plataforma para diferentes cosmovisões” (KRENAK, 2020, p.
25).
VI. Dialogando com Davi Kopenawa, e abrindo-se para a possibilidade de adiar o fim do mundo,
Krenak move-se à contrapelo em busca dos sentidos ancestrais, dos
sentidos das cosmovisões ameríndias, que seria um modo de coabitar o
mundo. Tudo tem sentido na imanência radical krenakiana, o que lhe abre
para imaginações pluralistas de mundo. “As pessoas podem viver com o
espírito da floresta, viver com a floresta, estar na floresta” (KRENAK,
2020, p. 25). Em última instância, deseja-se recordar o mundo ante uma
situação produtora de ausências. Esse retorno à imanência terrestre
oferecia modos de viver em sociedade, num sentido de experiência e de
tangibilidade com a vida. Na história única, no singular coletivo
moderno, na humanidade singularizada, na identidade mesma
essencializada, há a intolerância em “relação a quem ainda é capaz de
experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar” (KRENAK,
2020, p. 26). A “humanidade zumbi” expulsa os mundos de sentidos
pluralistas, em que se invoca a “fruição de vida”. Chega-se ao ponto
chave da reflexão: “Então, prega-se o fim do mundo como uma
possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos”
(KRENAK, 2020, p. 27). A resposta de Krenak a esse estado de coisas é o
retorno aos modos de narração da experiência, de poder “contar mais
história”. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim do mundo.A
narração, os modos de imprimir sentido ao mundo para Ailton Krenak,
amparando-se nas cosmovisões de sentido ameríndias, demostram a
importância da facticidade concebida como experiência vertida
narrativamente.
Narrações enredadas em experiência como modo de existir. Questiona,
prepositivamente, Krenak: como os povos originários lidaram com a
colonização, com o fim dos seus mundos? Como superaram esse pesadelo
ainda desafiando a hegemonia da humanidade singularizada e excludente?
Ele voltou-se às narrativas experienciais antigas, ativando um recordar
de resistência pela criatividade, pela poesia, pela disposição de
enfrentamento. Cosmovisões cheias de sentido e de experiência foram
lidas, imprimindo um imaginar plural. “Muitas dessas pessoas não são
indivíduos, mas ‘pessoas coletivas’, células que conseguem transmitir
através do tempo suas visões de mundo” (KRENAK, 2020, p. 28). Krenak
leu, recordou, aprendeu, institui sentidos, entendeu o virtual dos
antepassados para resistir no presente – um alimento de “resistência
continuada desses povos, que guardam a memória profunda da terra, aquilo
que Eduardo Galeano chamou de Memória do fogo” (KRENAK, 2020,
p. 29). A narração lhe parece importante ante uma sensação de queda. Ele
invoca a capacidade crítica, criativa e pluralista ancestral para que
essa queda seja impedida por “paraquedas coloridos”. Contar histórias,
narrar histórias, aprender com histórias. “Há centenas de narrativas de
povos que estão vivos, contam histórias, cantam, viajam, conversam e nos
ensinam mais do que aprendemos nessa humanidade” (KRENAK, 2020, p. 30).
Bibliografia
BUTLER, Judith. Notes Toward a Performative Theory of Assembly. London: Harvard University Press, 2015.
CASTRO, Eduardo Viveiros de. Posfácio – Perguntas inquietantes. In:
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2020.
HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas sobre o digital. Petrópolis: Vozes, 2018.
HEIDEGGER, Martin. Construir, habitar, pensar. In: HEIDEGGER, Martin.
Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2012.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
Acordar
com o sussurro de uma vassoura, erguer o tronco, depois o resto do
corpo, arrumar com preceito a roupa de cama e o colchão, pulverizar de
água as plantas, lavar a cara, vestir a roupa de trabalho, sair porta
fora com a calma devida, para ter tempo de olhar para o céu e sorrir,
quer faça chuva ou faça sol. A rotina não é enfadonha. A rotina é um
método.
Entrei numa sala de cinema no último dia
dessa fuga ao quotidiano a que chamamos de férias - há uma década seria
um evento costumeiro, de há uns anos para cá tem-se tornado excepcional -
para ver "Dias Perfeitos", último filme de Wim Wenders. A rotina que
comecei por descrever corresponde aos primeiros instantes dos dias de
Hirayama, um homem que vive consigo numa pequena casa de decoração
contida, limpa casas-de-banho de Tóquio com rigor e a quem ouvimos a voz
pela primeira vez já o filme vai a meio. É o protagonista do filme,
humano de mais para ser misantropo, recluso de menos para ser um
eremita. E no entanto ele move-se silencioso pela cidade, cumprindo o seu quotidiano perene, como se de um ritual se tratasse.
"Porque é que as coisas têm de mudar?", pergunta desgostosa uma das personagens. Hirayama tudo faz para o evitar. É
precisamente através da reincidência de gestos e hábitos que encontra
um reconfortante sentido de novidade. As músicas que escolhe ouvir no
carro, preservadas na fita de uma cassete, marcando o ritmo do início de
cada dia, as copas das árvores tingidas de luz que fotografa de forma
meticulosa, o olhar que lança todos os dias de manhã ao céu assim que
sai de casa. Não há dois dias iguais, ainda que o exercício de os
distinguir seja por vezes bem mais difícil do que aqueles passatempos
que nos pedem para encontrar dez diferenças entre duas imagens.
Aprendi
a não me preocupar e a amar a rotina após anos de um combate sereno
contra a ideia de repetição. Continuo a aprender a consenti-la. Se a
rotina é um método, a constância pode ser o seu remate, a garantia de
acesso às subtilezas que ficam nos intervalos entre o que é ordinário e o
que é extraordinário. O método não é infalível, tem os seus dias como
tudo.
De caminho, rumo ao trabalho, passo pela
estátua de Afonso Albuquerque, que continua no mesmo lugar, não tem para
onde fugir. Visto daqui, rodeado de copas de árvores, a sua cor
transfigura-se, de mês para mês, por vezes de dia para dia, e nem sempre
reparo nesses cambiantes. Mas nesta manhã o que vejo é uma ave pousada
no topo da cabeça da estátua e sorrio porque me recordo de quando, há
uns meses, a minha filha me acompanhou neste trajeto dois dias
seguidos. Esteve comigo também na rotina, no percurso que faço de olhos
abertos, mas que poderia fazer de olhos fechados. Ao segundo dia, após
ter percorrido quatro estações de metropolitano, caminhado até ao
torniquete nos passos curtos a que a multidão obriga, subido as escadas
rumo à plataforma do comboio, olhou para mim e disse de cara luminosa
"Parece que estamos a repetir o mesmo dia". "Isso é bom?", retorqui. "É
fantástico!"
Considerações a partir de um artigo de Ladislau Dowbor
Introdução
Ladislau Dowbor, por meio de um artigo que denominou de “A sociedade na era digital: um novo modo de produção”,
propôs que o rentismo, propiciado supostamente pelas novas tecnologias
da chamada “indústria 4.0” e alavancado pela financeirização, está no
fundamento de um novo modo de produção.
Enquanto o capitalismo industrial havia apropriação do excedente e
geração de mais capacidade produtiva por meio do investimento, no novo
modo produção em emergência há, segundo ele, apropriação do excedente
por meio do rentismo sem que ocorra uma ampliação dessa capacidade, de
modo correspondente à acumulação.
Eis o que diz: “Trata-se de outro modo de produção em construção, em
que a financeirização supera a acumulação produtiva de capital, a
exploração por meio do rentismo supera a exploração por meio de baixos
salários (mais-valia), inclusive porque se desloca o próprio conceito de
emprego”. (Dowbor, 2014).
“Os que comandam não são mais os capitães da indústria, e sim os que
controlam os algoritmos, e o próprio dinheiro imaterial, no quadro da
financeirização. Em termos de análise científica, é hoje mais produtivo
pensar no novo sistema, no rentismo que resulta da revolução digital, do
que acrescentar adjetivos ao conceito tradicional de capitalismo”.
(Dowbor, 2014).
Modo de produção está sendo definido aqui com base na tecnologia de
produção de um modo fenomenista. Eis que se observa, sim, uma grande
mudança nas formas de interação social – e, assim, de interação
econômica – na sociedade e na economia contemporâneas. E essa
transformação está advindo por meio das novas tecnologias da informação e
da comunicação. Segundo Ladislau Dowbor, ao propiciar novos modos de
apropriação de renda, ela está dando enorme suporte à financeirização e
ao rentismo, configurando processos que parecem se contrapor à
acumulação e ao lucro industriais. Será?
Ora, como a noção de modo de produção vem de Marx e do marxismo, é
preciso perguntar em primeiro lugar como a noção de rentismo costuma ser
pensada nessa tradição, que se vê sobretudo como crítica da economia
política. Assim se pode dar um passo no processo de verificar se a
reinvindicação teórica de Ladislau Dowbor faz sentido.
Rentismo no marxismo
Em O imperialismo – fase superior do capitalismo (2002),
Vladimir Lênin, baseando-se no livro clássico de Rudolf Hilferding,
apresentou mais uma vez o enlace do capital bancário com o capital
industrial como capital financeiro: a concentração da produção produz
monopólios, “a fusão ou junção dos bancos com a indústria: eis a
história do aparecimento do capital financeiro, assim como daquilo que
este conceito encerra” (Lênin, 2002, p. 36). E esse advento leva o
capitalismo a uma fase superior em que as relações entre as nações está
marcada pelo imperialismo.
É próprio do capitalismo em geral separar a propriedade do capital da
sua aplicação à produção, separar o capital-dinheiro do capital
industrial ou produtivo, separar o rentista, que vive apenas dos
rendimentos provenientes do capital-dinheiro, do empresário e de todas
as pessoas que participam diretamente na gestão do capital. O
imperialismo, ou domínio do capital financeiro, é o capitalismo no seu
grau superior, em que essa separação adquire proporções imensas. O
predomínio do capital financeiro sobre todas as demais formas do capital
implica o predomínio do rentista e da oligarquia financeira, a situação
destacada de uns quantos Estados de “poder” financeiro em relação a
todos os restantes. (Lênin, p. 176)
Em O capitalismo financeiro hoje (2016), François Chesnais
consagra mais uma ver o termo rentista, denominando com esse termo não
apenas o possuidor de capital que está ausente da produção, mas o
próprio capital como rentista.[i]
O termo “capital rentista” é considerado por muitos como
politicamente carregado e, portanto, a ser evitado. No entanto, numa
perspectiva teórica marxista clássica (não vulgar) e kaleckiana, nenhuma
análise dos fundamentos da dominação social e política do capital, em
nível nacional ou internacional, pode simplesmente deixar o termo de
lado. A noção é central para as dimensões econômica, política e social
específicas para a teoria hobsoniana e marxista do imperialismo.
(Chesnais, 2016, p. 8).
Pode parecer estranho, mas esse termo é empregado ocasionalmente em O capital
nos livros II e III apenas para indicar o capitalista que não se
envolve com a produção de mercadorias comuns, não financeiras. Eis aqui
como o termo aparece no capítulo 32 do Livro III: “À medida que cresce a
riqueza material, cresce a classe dos capitalistas monetários;
aumentam, por um lado, o número e a riqueza dos capitalistas que se
retiram, dos rentiers [rentistas]; por outro lado, fomenta-se o
sistema de crédito e, com isso, aumenta o número de banqueiros,
prestamistas, financistas etc. Como já expusemos, o desenvolvimento do
capital monetário disponível é acompanhado do aumento da massa dos
papeis portadores de juros, dos títulos públicos, ações etc.” (Marx,
2017, p. 568-9).
Em todos os três autores consultados, que formam uma amostra pequena,
mas bem representativa do pensamento crítico de Marx ou que provém de
Marx, o rentismo aparece como uma consequência inerente do
desenvolvimento do próprio capitalismo – não como uma falha desse
processo de desenvolvimento, sem engendrar também qualquer tendência
para a superação do capitalismo.
Lênin especialmente associa explicitamente ao rentismo não apenas a
uma fração de classe, mas a uma fonte de poder político nacional e
internacional que sustenta o imperialismo. Ao mesmo tempo, o toma como
um sintoma de uma suposta decomposição do capitalismo que estaria em
curso já no começo do século XX.
Nessa perspectiva acima apresentada, o rentismo configura uma
condição de vida de parte ou grande parte da classe proprietária, mas
que pode ir além dela. Em particular, ele parece ter crescido muito com a
expansão do que, desde Rudolf Hilferding no começo do século XX, é
chamado de capital financeiro. De qualquer modo, o rentismo aparece aí
apenas como decorrência do processo de diferenciação da classe
capitalista: são rentistas aqueles proprietários de capital que podem
gastar (consumir ou investir) sem funcionar como administrador na esfera
da produção de mercadorias. A sua renda pode provir de lucro, aluguel,
juro, dividendos etc.
Contudo, o rentismo pode estar sendo alimentado por novas formas de
obtenção de renda. Por isso, é preciso perguntar se as novas tecnologias
computacionais não estariam criando relações novas e, assim, gerando
rendas de novo tipo e em grande volume, criando um processo de
emergência. Ora, que atividades econômicas se tornaram possível com as
chamadas plataformas?
Eis aí o que fazem: (a) fornecem serviços gratuitos, mas vendem
publicidade; (b) fornecem serviços, mas cobram por eles, às vezes ou
muitas vezes monopolisticamente; (c) internalizam mercados por meio de
plataformas de venda de mercadorias; (d) propiciam o desenvolvimento de
novos processos industriais e a geração de lucro; (e) criam uma
logística para organizar trabalho disperso geográfica e/ou
temporalmente. Ora, sejam o sejam, essas formas não apresentam, em si e
por si mesmas, formas novas de ganhar dinheiro. São apenas formas de
geração e/ou captura de mais-valor na esfera da circulação por meio de
transações com mercadorias. Não demarcam, pois, um novo modo de
produção, mesmo se precisam ser mais bem compreendidas (Srnicek, 2017).
Uma nova relação?
Como se sabe, o modo de produção não pode ser pensado a partir dos
meios de produção e da tecnologia que nele são empregados, pois deve ser
definido principalmente a partir da relação social que o caracteriza –
ainda que seja a unidade da base material e da forma social.[ii]
No caso do capitalismo, a relação que o define como tal é a relação de
capital, ou seja, a relação social entre o capital e o trabalho a ele
subsumido; o capitalista e o trabalhador entram aí apenas
personificações de um e outro, respectivamente. A forma por excelência
dessa relação é assalariamento, ainda que em seu desenvolvimento
histórico, o capital tenha se valido também de outras formas de
subordinação do trabalho. Ademais, é certo que relação pressupõe certo
desenvolvimento das forças produtivas, o que – é óbvio – depende das
tecnologias incorporadas nos meios de produção, assim como na estrutura
das organizações.
Enquanto modo de interagir – e, em especial, de produzir –, as novas
tecnologias, em especial, as plataformas, reconfiguram a sociabilidade
em geral e, assim, também, a sociabilidade mercantil. Por isso mesmo, é
preciso perguntar: está surgindo, com base nelas, uma nova relação
social de produção? Ladislau Dowbor diz que sim porque afirma que está
se desenvolvendo agora uma relação social de finanças e que ela se torna
mais importante do que a relação de capital. É por isso que diz que “a
financeirização supera [agora] a acumulação produtiva de capital”. De
algum modo, que ainda não está claro, a acumulação D – D’ decolou e
agora supera de longe a acumulação D – M – D’.
Mas donde vem ∆D = D’– D em cada um dos casos? No segundo caso, vem
do mais-valor produzido pelo trabalho assalariado, mas donde proviria o
mais-valor no primeiro caso? Ora, em geral, a valorização financeira D –
D’ advém por meio do retorno a maior de um empréstimo. Esse retorno
pode ser puramente fictício (a dívida é simplesmente rolada no
vencimento); pode provir do mais-valor obtido em D – M – D’ por um
capitalista industrial ou comercial, ou ainda ele pode advir de parte da
renda de qualquer tomador de empréstimo. Contudo, como Ladislau Dowbor
diz também que “a exploração por meio do rentismo supera a exploração
salarial”, ele deve estar pensando em outra coisa. Que coisa?
Ele explica: “O que aconteceu com o capitalismo de antanho? Como os
novos mecanismos não cabem nos conceitos tradicionais de análise do
capitalismo industrial, acrescenta-se qualificativos: Robert Reich fala
sobre capitalismo corporativo, Mariana Mazzucato sobre capitalismo
extrativo, Grzegorz Konat sobre capitalismo real, Joel Kotkin sobre
neofeudalismo (…). Mas não basta acrescentar qualificativos: é preciso
pensar se se trata ainda de capitalismo”.
Ladislau Dowbor não especifica qualquer nova relação sociais de
produção capaz de definir o novo modo de produção. De qualquer maneira, é
preciso examinar tais “novos mecanismos” de extração de valor de que
fala. Será que eles não cabem mesmo nos conceitos tradicionais? Foi
visto já que o capitalismo não pode ser identificado com o capitalismo
industrial; eis que nunca existiu um capital industrial puro que não se
vale do capital de financiamento.
Mas isso não é tudo. Desde o seu começo, subsiste nesse modo de
produção uma tendência endógena para a socialização capital, o que
implica na expansão necessária do capital financeiro, assim como da
financeirização (Prado, 2024). Pois, além de subsumir trabalho nas
esferas da produção e da circulação, o capital se põe a si mesmo como
mercadoria, ou seja, nos termos de Marx, pode funcionar como capital
portador de juros.
Um velho “mecanismo”
Para examinar esse ponto é preciso apresentar as formas da relação
entre capital e trabalho que podem ocorrer no capitalismo; mas não
apenas aquelas que lhe são intrínsecas, mas também as formas de que pode
se valer para subsistir e prosperar. Como se sabe, a relação social de
assalariamento por meio da qual o capital subsume – formal e real,
material e intelectualmente – o trabalho é central no modo de produção
capitalista. Mesmo se há variações na estrutura do contrato de trabalho,
o assalariamento requer sempre o aluguel (venda temporária) da força de
trabalho para que esta fique à disposição do capitalista para a
execução de determinadas tarefas, sob o seu comando.
Contudo, essa forma não se apresenta como exclusiva na história do
capitalismo porque as relações sociais aí travadas são antes de tudo
relações de mercadoria e de dinheiro. Sendo assim, pode existir aí – e
mesmo prosperar de modo limitado – o trabalho por conta própria,
resquício do artesanato, pois há certos serviços que escapam do controle
do capital porque os seus agentes não conseguem açambarcar os meios de
produção que lhes são necessários. De qualquer modo, ele dá suporte ao
capitalismo.
Por outro lado, o capitalismo pode se valer de relações sociais
pretéritas, tal como ocorreu no escravismo colonial justamente como
forma de acumulação primária (ou primitiva). No capítulo sobre a
“Acumulação primitiva” do Livro I de O capital uma dessas
combinações históricas é assim descrita: “enquanto introduzia a
escravidão infantil na Inglaterra, a indústria do algodão dava, ao mesmo
tempo, o impulso para a transformação da economia escravista dos
Estados Unidos, antes mais ou menos patriarcal, num sistema comercial de
exploração (Marx, 2013, p. 538). Não é preciso entrar aqui na questão
de saber se o escravismo colonial é um modo de produção distinto, pois
basta ver que ele estabelece uma relação entre o capital e o trabalho
que se vale da escravidão.
Contudo, isso não é tudo. Há a possibilidade de que a subsunção do
trabalho ao capital se dê não pelo assalariamento, mas por meio do
aluguel de um meio de produção, que é imprescindível para a produção de
determinado bem ou serviço, mas está monopolizado por um capitalista.
Marx, no capítulo sobre a “Maquinaria e a grande indústria” do Livro I,
registra o caso das fábricas-cottage, que, para ele, representa uma de
transição incompleta do artesanato para a manufatura. No caso por ele
relatado, um capitalista possui uma máquina – trata-se de fato de uma
produtora de vapor – de que muitos trabalhadores necessitam, o que os
obriga a se subordinarem ao capitalista proprietário e a pagar um
aluguel por sua utilização. É assim, diz ele, que “uma única máquina (…)
pode novamente servir de base à produção artesanal”; eis que, neste
caso, “a pequena empresa se liga à força motriz por meio do aluguel de
vapor” (Marx, 2013, p. 351).
Nesse caso, os trabalhadores permanecem independentes uns dos outros,
mas – é preciso ver – eles perdem parte da independência que têm
aqueles que trabalham por conta própria. Eis que se trata de uma forma
de subsunção do trabalho ao capital que não é coberta – é preciso
ressaltar – pela categoria de “assalariamento”.
Uma volta do passado
Tem-se trabalhadores produtivos que produzem mercadoria e, assim,
valor de uso e valor, e que dependem dos mercados para que possam
realizar o valor produzido, por meio da metamorfose da mercadoria em
dinheiro. Contudo, eles não se apropriam mais de todo o valor que
adicionam aos custos primários de produção já que tem de pagar um
aluguel para o proprietário da máquina – máquina essa que aparece como
suporte material de um capital que está posto como mercadoria-capital.
Ora, esse aluguel é o juro do capital emprestado, o qual se está
implicitamente somado ao custo de depreciação.
Ora, aquilo que no caso relatado aparecia apenas como uma forma
social do passado ganhou vida nova com as plataformas, que nada mais são
do que grandes sistemas de máquinas processadoras de informações. Elas
são agora meios de produção necessários para a produção de muitos bens
ou serviços na sociedade contemporânea; eis que fornecem “serviços”,
mediante cobrança de determinadas valores seja de pessoas seja de
organizações em geral. Como são estocadoras, transformadoras e
transmissoras de dados, as plataformas se tornam meios universais de
interação social seja no mundo da vida seja nos sistemas, no sistema
econômico em particular.
As plataformas de trabalho permitem subordinar trabalhos diversos e
dispersos ao capital, para além do assalariamento. Pois, com elas, os
trabalhos podem ser subsumidos ao capital financeiramente; eis que,
nesse caso, o capital comparece não como capital, mas como
mercadoria-capital. São trabalhos que produzem individual ou
coletivamente mercadoria, valor e valor de uso. Eles são conjugados por
intermédio da plataforma ou permanecem não conectados diretamente entre
si. Do mesmo modo que acontece com os trabalhadores em conta própria, os
agora considerados, suportes que são de mercadorias, têm de vendê-las
para obter renda para si próprios e para pagar os juros do capital
emprestado, assim como para repor os custos da produção.
Nesses casos, os trabalhadores entram no negócio com a sua força de
trabalho e com certos meios de produção que eles próprios precisam
possuir – como valores de uso que tem valor, mas não como capital. O
capital do proprietário da plataforma não atua aqui como capital
industrial, não organiza o trabalho por meio de uma empresa fabril ou
comercial, mas como mercadoria-capital, ou seja, como capital de
empréstimo ou, nos termos de Marx, como capital portador de juros.
Juro, como se sabe, é o valor de aluguel do capital posto numa
transação em que apenas o seu valor de uso – mas não a propriedade – é
de fato transacionada. É essa a forma do ganho (aluguel de meios de
produção representados em dinheiro) mesmo se a cobrança atingir valores
acima dos juros de mercado e até mesmo grandezas abusivas.
Conclusão
Há uma nova força produtiva: as tecnologias digitais de processamento
da informação e da comunicação. Há uma expansão da função do capital
portador de juros. Há uma mudança profunda nas formas de interação
social. Contudo, não há um rentismo estruturalmente novo, não há uma
relação social de produção nova, não há um “mecanismo” novo de extração
de valor, logo – a fortiori – não há um novo modo de produção.
*Eleutério F. S. Prado é professor titular e
sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros,
de Capitalismo no século XXI: ocaso por meio de eventos catastróficos
(CEFA Editorial). [https://amzn.to/46s6HjE]
Referências
Chesnais, François – Finance Capital Today – Corporations and banks in the lasting global slump. Leiden/Boston: Brill, 2016.
Dowbor, Ladislau – A sociedade na era digital: um outro modo de produção. Portal Outras Palavras, 19/04/2024. https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/rentismo-o-novo-modo-de-producao/
Lênin, Vladimir I. – O imperialismo – fase superior do capitalismo. São Paulo: FE/Unicamp, 20211. Edição eletrônica.
Marx, Karl – O capital – Crítica da Economia Política. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013.
Marx, Karl – O capital – Crítica da Economia Política. Livro III. São Paulo: Boitempo, 2017.
Prado, Eleutério F. S. – O “rentismo! e a léxis de O capital. Blogue
Economia e Complexidade:
https://eleuterioprado.blog/2017/10/17/o-rentismo-e-a-lexis-de-o-capital/
[ii] Numa seção de seu artigo, Um desafio metodológico e teórico,
Dowbor procura especificar o modo de produção por meio da base material
(meio de produção/tecnologia). Assim o feudalismo, o capitalismo e o
suposto modo de produção informacional decorrem do emprego da terra, das
máquinas tradicionais e das máquinas informacionais, respectivamente.
Cai, assim, na reificação; como não distingue a forma social da base
material, raciocina com base na forma da objetividade característica no
capitalismo.