sábado, 30 de janeiro de 2016

"Inovação não é ciência espacial"

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MUDANÇA  
Depois de 10 anos no mercado financeiro, 
Danielle largou tudo para virar empreendedora 
 
Eleita uma das brasileiras mais inovadoras pelo MIT, empreendedora de apenas 31 anos diz que trabalho duro e insistência são mais importantes do que ideias geniais na hora de criar novas soluções
por Mariana Queiroz Barboza
 
Como muitos jovens de 20 e tantos anos, a administradora de empresas Danielle Brants tinha uma carreira bem-sucedida, mas pouco satisfatória quando, há três anos, resolveu jogar tudo para o alto e empreender. Depois de muita pesquisa, criou uma plataforma de engajamento e proficiência de leitura para alunos do Ensino Fundamental.

O Guten News apresenta notícias de maneira adaptada a crianças de 8 a 12 anos com o objetivo de despertar o gosto pela leitura conectando-as à realidade num ambiente com jogos e exercícios. O aplicativo e o site são gratuitos, mas os relatórios de desempenho, que permitem intervenções didáticas mais apuradas, são pagos. “Inovar é resolver o problema de alguém de forma criativa”, diz Danielle. “Não sou nenhum grande gênio, mas encontrei uma solução de leitura para professores que precisavam disso.”

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''Durante um tempo se acreditou que um tablet ou um computador
resolveriam a questão do interesse do aluno, mas não é assim''

Hoje, aos 31 anos, a empresária tem 30 escolas entre seus clientes e entrou na lista dos 10 brasileiros mais inovadores com menos de 35 anos da revista Technology Review, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês). Antes disso, porém, teve que enfrentar a burocracia exagerada imposta aos empreendedores no Brasil. “É um ambiente de desconfiança institucional com quem está fazendo o País andar”, afirma. “Somos nós que pagamos o preço de quem faz errado”.
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''O investimento em educação no Brasil não é baixo, o que falta é gestão''

Istoé -Como funciona o Guten News?
Danielle Brants - Essa é uma plataforma de notícias para crianças de 8 a 12 anos, que pode ser acessada por aplicativo no iPad ou por um site na internet. Para isso, temos um time de jornalistas que escreve numa linguagem mais próxima a esses jovens, com um vocabulário mais simples e a construção de frases na ordem direta. Além disso, as notícias não tratam de vários subtemas, mas de uma só linha-mestre. A mensagem principal sempre é informar. Então, toda semana publicamos uma edição nova do Guten News, com cinco notícias, uma para cada dia da semana. Só que antes de iniciar a leitura, o estudante participa de jogos e missões ligados ao tema do artigo para acionar o conhecimento prévio e deixá-lo aquecido. Logo depois, oferecemos duas atividades de pós-leitura para ver se ele compreendeu o que leu. As crianças criam avatares e vão ganhando selos ao longo do tempo. Assim, conseguimos mapear tudo o que o aluno faz, as dificuldades que ele tem, os conteúdos que mais o interessam e vendemos esse relatório às escolas.
 
Istoé - Existe algum assunto proibido?
Danielle Brants - Não. Tratamos de religião, política, esporte, comportamento e ciência. Estamos informando. O trabalho do professor é de curadoria. Se ele é de uma escola religiosa, pode ignorar alguns assuntos.
 
Istoé - De onde surgiu a ideia?
Danielle Brants - Não sou nem educadora, nem jornalista. Sou administradora de empresas e trabalhava no mercado financeiro. Estava insatisfeita há alguns anos e não sabia exatamente de onde  isso vinha. Resolvi pedir demissão sem nada em mente. Era o momento de eu analisar o que faria pelos próximos 50 anos. Sempre tive grande apreço por tecnologia. Pensei: onde a tecnologia ainda é incipiente, mas tem grande potencial? Educação e saúde estavam dando os primeiros passos e comecei a estudar esses setores. Me inscrevi num curso de especialização na Escola de Educação da Universidade de Harvard e, durante essa viagem, conheci algumas start-ups de educação. Fiquei encantada. 
 
Istoé - E por que trabalhar com leitura?
Danielle Brants - Há pouca inovação em língua portuguesa, esse é um segmento que foi deixado um pouco de lado nas escolas. Na matemática tem muita coisa, com ensino adaptativo, ciência, robótica. A leitura era tratada com “dou um livro e vejo o que vai sair”. Então, vi que tínhamos um grande problema, ninguém estava trabalhando com ele, e era com isso que queria trabalhar. Comecei a visitar escolas, ouvir professores. Foi um processo de seis meses para conceber a ideia.
 
Istoé - Como você conseguiu o financiamento para esse projeto?
Danielle Brants - Quando comecei, tinha 10 anos de economias e costumo dizer que fui meu próprio investidor-anjo. Mantive a Guten, contratei desenvolvedor e funcionários com o meu dinheiro. Isso foi por um ano e meio. Até o momento em que vi que tinha substância para falar com investidores. O ambiente de investimentos no Brasil é bem menor e mais avesso a riscos que em outros mercados como os Estados Unidos e ele demanda que você já tenha atingido alguns marcos. O que fiz foi esperar que minha ideia deixasse de ser um projeto e se tornasse uma empresa. Em julho, fechei uma rodada de capital-semente com investidores locais e um fundo americano. 
 
Istoé - O setor de start-ups e tecnologia é tão afetado pela crise econômica no Brasil quanto os demais?
Danielle Brants - Sim e não. Sim, porque se eu estivesse, nesse momento de extremo pessimismo, procurando por um aporte, seria bem mais difícil fechar uma rodada de investimento. Principalmente numa empresa que está começando agora e eu não sou do setor. Por outro lado, acho que afeta menos. Durante a crise, as escolas até perdem matrículas, mas os pais deixam de pagar uma com mensalidade de R$ 1 mil para ir para outra de R$ 800. E o meu mercado abrange todo mundo. Posso trabalhar com escolas de vários níveis. 

Istoé -Você pensa em expandir para o setor público?
Danielle Brants - Ainda não estou nele, mas vou tentar vender para o setor público mais para a frente, até por causa do impacto. É no setor público que estão mais de 80% das matrículas. 

Istoé - Qual é a maior dificuldade em empreender no Brasil?
Danielle Brants - O fator que mais atrapalha é a burocracia exacerbada. Existe um pano de fundo em que não se confia no empresário brasileiro. É preciso fazer certificações, fichas, papéis, pagar muitos impostos, é um ambiente de desconfiança institucional com quem está fazendo o País andar. Isso me atrapalha, mas não é nada que me impeça de trabalhar. Se a maré vier contra, vou continuar remando. Minha expectativa, afinal, já era baixa. Quando trabalhava com fusões e aquisições, escutava muito o lado do empreendedor e todo mundo falava que o Brasil era muito difícil. Quando entrei, estava consciente disso.
 
Istoé - O que é ser inovador hoje em dia? 
Danielle Brants - Inovação não é necessariamente ciência espacial. Não é uma coisa complicada. Inovar é resolver o problema de alguém de forma criativa e que não tenha sido feita antes. Não sou nenhum grande gênio, mas encontrei uma solução de leitura para professores que precisavam disso. Achei uma forma viável, de baixo custo e com amplo alcance.

Istoé - Como o Brasil pode ser um país mais inovador no futuro?
Danielle Brants - Inovação não é um estalo que se tem, é fruto de muito trabalho. Culturalmente achamos que é um “momento eureka”. Pelo menos, para mim, não foi assim. Por mais que estivesse trabalhando em outro setor, estava criando as capacidades gerenciais que precisava, de análise crítica, de como montar um negócio, avaliar um mercado. E, para inovar, muitas vezes é preciso fracassar. Só que, no Brasil, isso é visto como uma derrota, o fim de tudo. Se conseguirmos mudar essa mentalidade e ver o fracasso como uma experiência importante, talvez as coisas comecem a mudar e as pessoas inovem mais.

Istoé -Num país como o Brasil, em que as pessoas lêem tão pouco, encontrar soluções digitais é uma maneira de incentivar a leitura? 
Danielle Brants - Temos um conflito. Hoje os pais e educadores estão preocupados com as crianças que ficam muito tempo no tablet e estão voltadas para jogos e entretenimento. Obviamente não sou partidária disso. O que vejo nas escolas é um processo de adaptação. No começo, houve uma onda de tecnologia em que se achou que os hardwares iriam resolver tudo. Achavam que o fato de haver um tablet ou um computador na escola faria, de uma hora para outra, com que o aluno se interessasse. E não é assim tão fácil. Depois, veio o momento da frustração. As escolas acharam que a tecnologia não tinha nenhum fim pedagógico. Agora parece haver um equilíbrio. 
 
Istoé - No ano passado, uma pesquisa da OCDE mostrou os alunos brasileiros na antepenúltima posição de um ranking que avaliou a habilidade de navegar em sites e compreender leituras na internet. De onde vem essa dificuldade?
Danielle Brants - No Brasil, trabalhamos muito a alfabetização e hoje todo mundo é alfabetizado. Agora existe um problema de letramento. As pessoas conseguem decodificar as palavras, ligar as sílabas, só que não necessariamente compreendem aquilo. Além disso, se você não consegue entender uma frase, dificilmente vai conseguir discernir fato de opinião e vai ser crítico frente a uma informação. Aí essas crianças são colocadas numa internet lotada de informações, e provavelmente ela vai se perder. É um problema de base.

Istoé -Como o Brasil poderia adotar a internet nas escolas em grande escala? Falta dinheiro para investir ou faltam projetos?
Danielle Brants - Falta gestão. Comparativamente a outros países, nosso investimento per capita em educação não fica muito abaixo. Mas a gestão e a forma como esse dinheiro é aplicado poderiam ser melhores. Quando falamos de internet, é preciso ter uma mente inovadora, fazer experimentação, testar projetos-piloto. Trata-se de gerir bem o processo e não fazer algo de cima para baixo. Os professores têm que fazer parte da discussão.
 
Istoé - É possível adotar a proposta do Guten News em larga escala?
Danielle Brants - Certamente. Ele pode chegar a milhões de alunos praticamente sem nenhum custo. A única coisa que mudaria para a empresa seria o custo do servidor. Quanto mais gente nós atingirmos, mais perto estaremos de nosso objetivo. Numa visão de longo prazo, quero criar uma empresa que forme uma nova geração de leitores para o Brasil. Quando tiver 80, 90 anos, quero olhar para trás e ver que mudei alguma coisa.

Istoé - Você está trabalhando em algum outro projeto agora?
Danielle Brants - Sim, é um projeto bem mais ambicioso de leitura. Acabamos de ganhar um prêmio da Fapesp e temos um convênio com a Universidade de São Paulo (USP). Estamos criando o primeiro software classificador de complexidade de textos. Se queremos que um aluno leia mais, temos que dar um desafio na medida certa. Se eu der um texto muito difícil para uma criança de 8 anos, ela estará fora da zona de desafio. É uma montanha muito alta para ela subir e ela vai se desmotivar. Então, tem que ser aos poucos. Para isso, precisamos criar uma ferramenta que meça a leiturabilidade de um texto objetivamente, com padrões linguísticos. Por isso, tenho trabalhado com linguistas da USP para criar esse primeiro software para o português.
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Fonte:  http://www.istoe.com.br/assuntos/entrevista/detalhe/445592_INOVACAO+NAO+E+CIENCIA+ESPACIAL+

ESTADO DE CRISE

 

O PrOA publica neste espaço trechos de livros no prelo ou recém-lançados. Leia a seguir um excerto de Estado de Crise, mais uma obra em que o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, o teórico da Modernidade Líquida, dialoga com um colega intelectual sobre temas da contemporaneidade. A exemplo de Cegueira Moral (no qual falava com o filósofo lituano Leonidas Donskis) e Sobre Educação e Juventude (que reunia conversas com o italiano Riccardo Mazzeo), entre outros, Estado de Crise é o registro de um misto de diálogo e entrevista com o sociólogo e jornalista italiano Carlo Bordoni. No livro, Bauman faz uma análise das causas e consequências da nova e duradoura crise mundial, como no trecho que se lê na sequência, uma análise de Bauman sobre a crise em um ambiente de enfraquecimento das instituições políticas. O livro está chegando esta semana às livrarias.

As credenciais populares do próprio sistema da democracia representativa, desenhado, elaborado e estabelecido pelos construtores do Estado-nação moderno, estão se desintegrando. Os cidadãos acreditam cada vez menos que os governos sejam capazes de cumprir suas promessas.

Eles não estão errados. Uma das presunções tácitas, ainda que cruciais, da base de confiança na eficiência da democracia parlamentar é que os cidadãos decidem em eleições quem irá governar o país nos anos seguintes, e que o governo eleito tentará implementar suas políticas. O colapso recente da economia baseada no crédito deu à falência desse arranjo um relevo espetacular. Como observa John Gray, um dos mais perceptivos analistas das raízes da instabilidade mundial dos dias atuais, em seu prefácio à nova edição (2009) de False Dawn: The Delusions of Global Capitalism, ao se perguntar por que o colapso econômico recente não logrou aumentar a cooperação internacional, liberando, em vez disso, pressões centrífugas: “Governos estão entre as baixas da crise, e a lógica de cada um deles atuando para proteger seus cidadãos significa maior insegurança para todos”. Isso se dá porque “as piores ameaças ao gênero humano são globais em sua natureza”, ao passo que “não há nenhuma perspectiva de qualquer acordo efetivo de governança global para lidar com elas”.

Nossos problemas são produzidos globalmente, ao passo que os instrumentos de ação política legados pelos construtores do Estado-nação foram reduzidos à escala de serviços requeridos por Estados-nação territoriais. Eles se mostram, portanto, singularmente inadequados quando se trata de lidar com desafios extraterritoriais globais. Para nós, que continuamos a viver à sombra do arranjo westfaliano, eles são até hoje, ainda assim, os únicos instrumentos em que conseguimos pensar e para o qual estamos inclinados a nos voltar em momentos de crise, apesar de sua ruidosa insuficiência para garantir a soberania nacional, a condição sine qua non da viabilidade prática desse arranjo. O resultado ampla e previsivelmente observado é a frustração causada e fadada a se acirrar pela inadequação entre meios e fins.

Resumindo, nossa crise atual é em primeiro lugar e acima de tudo uma crise de agência, embora em última análise seja uma crise de soberania territorial. Cada unidade territorial formalmente soberana pode hoje servir como depósito de lixo para problemas originados muito além do alcance de seus instrumentos de controle político, e há muito pouco que ela possa fazer para impedi-los, e muito menos preveni-los, considerando a quantidade de poder deixada à sua disposição. Tais unidades formalmente soberanas – com efeito, um número crescente delas – foram rebaixadas na prática à condição de distritos de polícia locais, em prontidão a fim de garantir um mínimo necessário de lei e ordem para um tráfego cujas idas e vindas elas não pretendem (nem são capazes de) controlar. Não importa a extensão da distância entre soberania de jure e soberania de facto, todas as unidades estão fadadas a buscar soluções locais para problemas globalmente engendrados, tarefa que transcende em muito a capacidade de todas, exceto o punhado das mais ricas e desenvoltas.

Uma vez presos num duplo compromisso, pouca escolha resta aos governos, a não ser rezar para que, antes de se anunciar a data da eleição seguinte, seu serviço obediente e leal ao “segundo compromisso” seja recompensado com uma montanha crescente de investimentos e contratos comerciais. E, o que é muito importante, isso também acontece com o “fator tudo bem”, de comum acordo, conselheiro-chefe do povo na cabine eleitoral. Observemos, porém, que os sinais estão ficando mais complicados no terreno desse tipo de cálculo, deixando de funcionar como esperado. Não se trata apenas de os políticos eleitos deixarem de cumprir suas promessas; tampouco as “forças do segundo compromisso” (bolsas de valores, capitais itinerantes, investidores de risco e afins, chamados concisamente de “investidores mundiais” na linguagem politicamente correta de hoje) cumprem a sua parte segundo as expectativas dos políticos.

Não há nada, portanto, nem sequer um vislumbre de luz no fim do túnel, com que compensar a frustração do eleitorado e abrandar sua ira. A desconfiança e a indignação se espalham para todo o espectro político, exceto talvez os seus setores até aqui (mas até quando?) marginais, efêmeros e excêntricos, exigindo publicamente um fim para o regime democrático desacreditado e fracassado. Escolhas feitas na cabine eleitoral hoje são raras vezes motivadas pela confiança numa alternativa; cada vez mais, elas são resultado de mais uma frustração causada pelo trabalho remendado feito pelos empossados. Tornam-se cada vez mais raros os partidos capazes de ostentar que foram eleitos para mais de um mandato no poder.
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POR ZYGMUNT BAUMAN
Fonte:  http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a4963641.xml&template=3898.dwt&edition=28310&section=3605

DESENHOS NA PAREDE

 Diana L. Corso*

 
Ele seria um subversivo político somente na dimensão em que a liberdade de expressão fosse perigosa. Esse era o caso. Trata-se de um conto de Julio Cortázar que transcorre na Buenos Aires dos anos de chumbo, quando se desaparecia pela mínima discordância com aquela gente que a ditadura pôs no mando. O personagem fazia desenhos com giz de cera nas paredes. Eram imagens artísticas, por vezes até abstratas, mas diligentemente apagadas a mando da polícia. Arriscava-se muito, era uma espécie de paixão que lhe movia a vida: fazê-los e depois visitá-los furtivamente para acompanhar o efeito que causavam nos transeuntes. Vê-los sendo apagados e insistir. Uma única vez pusera palavras: “Me dói muito”. Este foi removido com maior urgência.

Um dia, ao lado do seu, surgiu outro desenho. O traço era feminino, ele supôs. Por algum tempo comunicaram-se assim. Em geral, era ele que começava, ela respondia, uma dança na parede. Ele dedicava agora suas andanças furtivas a tentar surpreendê-la, sempre fracassando. Até o dia em que, obcecado por conhecê-la, expôs um de seus desenhos em um lugar mais visível e arriscado, onde podia ficar observando mais tempo à sua espera. Ela não pôde resistir ao desafio e foi pega. Ele não conseguiu ver mais do que um cabelo e uma silhueta azul sendo colocada na viatura.

Uma triste história de amor desencontrado, mas linda e colorida. Retrata a obsessão dos regimes repressivos com o apagamento da poesia, da arte, da parte mais pulsante da vida nas ruas. A escuridão política começa com o enrijecimento das almas. A ascensão das piores ditaduras nasceu de disputas políticas, de crises econômicas, mas atendia ao impulso popular de simplificar a vida. É uma tentação eleger inimigos fáceis e sentir a satisfação de eliminar todos aqueles que forem apontados como discordantes. O obscurantismo nasce também da preguiça do pensamento.

Após todos estes anos de democracia, mesmo a nossa, com inúmeros defeitos e trejeitos inaceitáveis, voltei a temer novamente pela poesia dos desenhos na parede. Não tenho tanto medo dos militares, nem dos políticos corruptos, quanto tenho da população simploriamente indignada e daqueles que manipulam esses sentimentos. Assusta-me a vontade que parece falar nas ruas de eleger alguém, aquele que estiver mais à mão, para odiar. Já vimos esse filme, quantas vezes? Quantas ainda o teremos de ver?

O conto Graffiti é uma história de amor das antigas, daquelas em que os amantes nunca se tocam. Eles apenas se rondam, desenham e se excitam com o mistério. O perigo que nos ronda agora, que parece estar excitando a tantos, é de colocar no poder os que apagam a poesia das paredes, do mundo, do amor. Me doeria muito.
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*Psicanalista  
dianamcorso@gmail.com
FONTE: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a4964129.xml&template=3898.dwt&edition=28310&section=1012
 Veja o conto aqui: http://www.ocaixote.com.br/caixote07/julio.html 
Imagem da Internet

Cresce número de livros que abordam atual fenômeno do isolamento social

O sociólogo americano Eric Klinenberg, 46, investigava os efeitos de uma onda de calor que afetou Chicago em 1995 quando viu que mais de 700 vítimas fatais viviam sozinhas. A tragédia acendeu nele a curiosidade para estudar uma mudança fundamental que vem ocorrendo nas grandes cidades, não apenas dos EUA, mas do mundo. 

A investigação resultou em 2012 no livro "Going Solo - The Extraordinary Rise and Surprising Appeal of Living Alone" (seguir sozinho - a extraordinária ascensão e o interesse surpreendente de viver só), e os números então saltaram aos olhos. 

Se, em 1950, 4 milhões de americanos viviam sós, hoje já são mais de 30 milhões. Nas grandes cidades, a tendência é muito mais acentuada –mais da metade da ilha de Manhattan, descobriu Klinenberg, tem moradias com apenas um habitante. 

O instituto Euromonitor identificou, entre 1996 e 2006, um aumento de 33% das pessoas que vivem sós e projetou, para 2020, um crescimento do índice em adicionais 20%. 

"É um momento único na história da humanidade em que enormes quantidades de pessoas, se têm condições para isso, optam por viverem sozinhas", explica Klinenberg. 

Depois de "Going Solo", o mercado editorial foi invadido por publicações que tratam de refletir sobre os aspectos da tendência: pessoas que preferem nunca ter um parceiro fixo (o que não significa não ter sexo); as que querem namorar ou casar, mas não aceitam viver sob um mesmo teto; as que enviúvam e percebem que envelhecem melhor sem se mudar para a casa de parentes; as que vivem sós para ter uma vida social mais agitada; e as que querem desconectar-se de tudo e redescobrir o silêncio e a natureza. 

'SOLTEIRONA'
 
Em "Spinster" –na lista dos melhores livros de 2015 do "New York Times", e que a Intrínseca lança no Brasil em abril–, a americana Kate Bolick, 40, pede uma redefinição da palavra "spinster". 

Termo celebrizado na Idade Média para designar mulheres que, por terem posses, não precisavam buscar o casamento por sustento, o conceito era considerado algo positivo. Mas, ao longo dos séculos 18 e 19, ganhou conotação pejorativa, ao designar a "solteirona com mais de 40". 

"É hora de redefinir o conceito de 'spinster', pois já não corresponde a mulheres amedrontadas e estigmatizadas, mas que se libertaram das perguntas impostas desde a infância ('quando você vai se casar?') e reencontraram um lugar na sociedade", diz Bolick. 

Para a autora, a "libertação das 'spinsters'" está relacionada à revolução LGBT e ao desenvolvimento dos aplicativos para encontrar parceiros sexuais. "Antes a mulher precisava de um marido para ter sexo. Hoje, talvez seja tudo de que ela não precisa." 

Já Klinenberg, que é professor de sociologia da Universidade de Nova York, acredita que o "apogeu da vida solitária" começou a despontar nos anos 1950, mas ganhou força nos últimos dez anos, devido a quatro fatores: mudança de status da mulher, revolução das comunicações, revolução urbana e aumento da longevidade. 

Segundo ele, tornaram sedutoras as benesses da vida solitária: "A privacidade, o anonimato, a autonomia e, paradoxalmente, a chance de se conectar mais com outros sem compromisso". E completa: "Casamos mais tarde, permanecemos solteiros por anos ou décadas, fazemos o possível para evitar mudar para a casa de nossos pais, e eles também resistem em mudar para a nossa quando perdem o companheiro", resume. 

ESTIGMA
 
Ainda assim, especialistas concordam que o estigma persiste. "Leia a descrição de psicopatas nos jornais. Fatalmente os que o conheciam elencarão que ele era 'sozinho'", diz a britânica Sara Maitland, 65, autora de dois livros sobre o tema: "A Book of Silence" (um livro de silêncio) e "How to Be Alone" (como viver só). 

Tendo sido casada e vivido em Londres muitos anos, há tempos se mudou para uma casa no interior da Escócia, sozinha, não tem celular e evita a companhia de outros, que substitui por longas caminhadas em silêncio. 

"Estar sem um parceiro é o único comportamento com o qual as pessoas não têm receio de serem profundamente rudes", explica. "Quantas vezes não me perguntaram: 'E você, já arrumou alguém?'. Se eu respondesse: 'Não, mas e você, continua amarrada a esse sujeito aí?' seria extremamente grosseiro, não?" 

Por isso, explica Maitland, preferiu mudar-se para o campo e refletir por que a sociedade ainda associa a opção de viver só à tríade "sad, mad or bad" (triste, louco ou mau). Existe, para ela, uma sensação cultural de que isso possa estar "errado". 

O que os dois livros que Maitland já lançou, e o terceiro no qual agora trabalha, tentam responder é que esses estigmas estão caindo e que há um movimento "contracultural", relacionado à revolução das comunicações, que facilitará viver sozinho e levará essa transformação adiante. 

Em seus livros, desfilam os fenômenos da moda das aventuras em "solidão extrema", ou seja, viagens de exploração de lugares longínquos ou perfis de famosos solitários, como Greta Garbo (1905-90). 

Para Maitland, o processo é lento. "O estigma tem várias razões, como o medo das pessoas de uma vida sem companhia, mas um outro é a inveja, que causa vontade de experimentar [risos]. E isso ajuda o estigma a se diluir." 

No recém-lançado "Selfish, Shallow, and Self-Absorbed" (egoísta, superficial e autocentrada), a americana Meghan Daum, 46, reúne famosos escritores (como Geoff Dyer, Anna Holmes e Sigrid Nunez) que discorrem sobre a escolha de não ter filhos.
O foco é a avaliação moral que a sociedade fez da opção, que soa "egoísta" ou "escapista". Como diz um dos autores: "As pessoas creem que quem não tem filhos deixa de dar um sentido à existência, como se algum sentido houvesse". 

Os autores concordam, porém, que a vida solitária apenas traz benefícios aos que optam de maneira voluntária por ela. "Sentir-se triste por estar só é um outro problema, e ele precisa ser enfrentado como tal", resume Maitland.

ANTES SÓ

Lançamentos refletem a tendência de pessoas viverem sozinhas. Entenda as diferenças, segundo os autores:
"GOING SOLO" (seguir sozinho)
Não se casar, não ter filhos, não ter como ideal a ideia tradicional de família.
"LIVING ALONE" (viver sozinho)
habitar uma casa ou apartamento sem a companhia de mais ninguém, nem 'roomates' nem namorados ou mesmo maridos ou mulheres (que podem viver em outras casas).
"SPINSTER"
Termo cunhado na Idade Média para definir mulheres que não precisavam se casar por ter independência financeira. Transformou-se num termo pejorativo nos séculos 18 e 19 para designar mulheres com mais de 40 que não se casavam. Hoje, volta a ser usado como conceito positivo, de mulheres independentes que decidem não se resignar à vida familiar e à maternidade.
"LONER" (solitário)
Alguém que prefere a solidão não apenas no lar, mas também no ambiente. Preferem viver perto da natureza, valorizam o silêncio e escolhem não estar conectados todo o tempo, muitos não têm celulares e mantêm pouca conexão com familiares ou amigos que vivem longe. Preferem o campo ou praias isoladas. 
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 Reportagem por SYLVIA COLOMBODE SÃO PAULO

Antoine de Saint-Exupéry, a vida do espírito e a ética da Terra

Leonardo Boff* 
 
Se é verdade que os transtornos climáticos são antropogênicos, quer dizer, possuem sua gênese nos comportamentos irresponsáveis dos seres humanos (menos dos pobres e muito mais das grandes corporações industriais), então fica claro que a questão é antes ética do que científica. Vale dizer, a qualidade de nossas relações para com a natureza e para com a Casa Comum não eram e não são adequadas e boas.
Citando o Papa Francisco em sua inspiradora encíclica Laudato Si: sobre o cuidado da Casa Comum” (2015): “ Nunca maltratamos e ferimos a nossa Casa Comum como nos últimos dois séculos… Essas situações provocam os gemidos da irmã Terra, que se unem aos gemidos dos abandonados do mundo, com um lamento que reclama de nós outro rumo”(n.53).
Esse outro rumo implica, urgentemente, uma ética regeneradora da Terra. Esta ética deve ser fundada em alguns princípios universais, compreensíveis e praticáveis por todos. É o cuidado essencial, que é uma relação amorosa para com a natureza; é o respeito por cada ser porque possui um valor em si mesmo; é a responsabilidade compartida por todos pelo futuro comum da Terra e da humanidade; é a solidariedade universal pela qual nos entreajudamos; e, por fim, é a compaixão pela qual fazemos nossas as dores dos outros e da própria natureza.
Esta ética da Terra deve devolver-lhe a vitalidade vulnerada afim de que possa continuar a nos presentear com tudo o que sempre nos presenteou durante todos os tempos de nossa existência sobre este planeta.
Mas não é suficiente uma ética da Terra. Precisamos fazê-la acompanhar por uma espiritualidade. Esta lança suas raízes na razão cordial e sensível. De lá nos vem a paixão pelo cuidado e um compromisso sério de amor, de responsabilidade e de compaixão para com a Casa Comum.
O conhecido e sempre apreciado Antoine de Saint-Exupéry, num texto póstumo, escrito em 1943, Carta ao General “X” afirma com grande ênfase: ”Não há senão um problema, somente um: redescobrir que há uma vida do espírito que é ainda mais alta que a vida da inteligência, a única que pode satisfazer o ser humano”(Macondo Libri 2015, p. 31).
Num outro texto, escrito em 1936, quando era correspondente do “Paris Soir”, durante a guerra da Espanha, leva como título “É preciso da um sentido à vida”. Aí retoma o tema da vida do espírito. Para isso, afirma, “precisamos nos entender reciprocamente; o ser humano não se realiza senão junto com outros seres humanos, no amor e na amizade; no entanto, os seres humanos não se unem apenas se aproximando uns dos outros, mas se fundindo na mesma divindade. Temos sede, num mundo feito deserto, sede de encontrar companheiros com os quais condividimos o pão” (Macondo Libri 2015, p.20). E termina a Carta ao General “X”: ”Temos tanta necessidade de um Deus”(op.cit. 36).
Efetivamnte, só a vida do espírito satisfaz plenamente o ser humano. Ela representa um belo sinônimo para espiritualidade, não raro identificada ou confundida com religiosidade. A vida do espírito é mais, é um dado originário de nossa dimensão profunda, um dado antropológico como a inteligência e a vontade, algo que pertence à nossa essência.
Sabemos cuidar da vida do corpo, hoje um verdadeiro culto celebrado em tantas academias de ginástica. Os psicanalistas de várias tendências nos ajudam a cuidar da vida da psique, de como equilibrar nossas pulsões, os anjos e demônios que nos habitam para levarmos uma vida com relativo equilíbrio.
Mas na nossa cultura, praticamente, esquecemos de cultivar a vida do espírito que é nossa dimensão mais radical, onde se albergam as grandes perguntas, se aninham os sonhos mais ousados e se elaboram as utopias mais generosas. A vida do espírito se alimenta de bens não tangíveis como é o amor, a amizade, a compaixão, o cuidado e a abertura ao infinito. Sem a vida do espírito divagamos por aí, desenraizados e sem um sentido que nos oriente e que torna a vida apeticida.
Uma ética da Terra não se sustenta sozinha por muito tempo sem esse supplément d’ame que é a vida do espírito. Ela nos convoca para o alto e para ações salvadoras e regeneradoras da Mãe Terra.
* Leonardo Boff é ecoteólogo e escreveu Saber cuidar: ética do humano-compaixão pela Terra, Vozes 1999. Imagem da Internet. Fonte: https://leonardoboff.wordpress.com/2016/01/29/antoine-de-saint-exupery-a-vida-do-espirito-e-a-etica-da-terra/

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Geração Y: jovens, talentosos e limitados

O caminho para a vida adulta tem sido cada vez mais longo e difícil (Foto: Pixabay)

A geração Y, ou geração do milênio, é jovem e talentosa, mas é preciso que reivindique seu lugar na sociedade

Cerca de um quarto da população mundial, ou aproximadamente 1,8 bilhão, já tem 15 anos, mas ainda não completou 30 anos. Em muitos aspectos, são jovens que vivem nas condições mais favoráveis jamais existentes. São mais ricos e mais bem-educados do que qualquer geração anterior. Então, por que não estão contentes?

Existem diversos motivos para que esses jovens se sintam insatisfeitos. Pela primeira vez nahistória os jovens têm um conjunto de padrões de comportamento, crenças, conhecimentos, costumes etc. em comum e, portanto, compartilham as mesmas queixas. No mundo inteiro, os jovens reclamam que é muito difícil encontrar um emprego e um lugar para morar, e que o caminho para a vida adulta tem sido cada vez mais longo e difícil.

Muitos de seus problemas podem ser atribuídos às políticas que privilegiam as gerações mais velhas como, por exemplo, o trabalho formal. Em muitos países, as leis trabalhistas exigem que as empresas ofereçam inúmeros benefícios aos funcionários e dificultam a demissão deles. Essas leis não só protegem os funcionários que, em geral, são mais velhos, como também restringem a oferta de novos empregos.

A questão da moradia também não favorece os jovens. Os proprietários de imóveis impõem suas exigências quanto à construção de novos prédios e casas. Com frequência dizem não, porque não querem que estraguem a vista de suas casas ou depreciem seus preços. O excesso de regulamentação duplicou o custo de uma casa comum na Grã-Bretanha. Seus efeitos são ainda piores em muitas das grandes cidades onde os jovens querem morar.

Mas esses jovens poderiam ter uma atitude mais firme e participativa se querem ter voz ativa nas sociedades em que vivem. Nos Estados Unidos pouco mais de um quinto de jovens de 18 a 34 anos votou na última eleição geral; por outro lado, três quintos de pessoas com mais de 65 anos votaram. Esse padrão de comportamento se repete na Indonésia e é um pouco melhor no Japão. Não é suficiente que os jovens assinem petições online. Se quiserem fazer reivindicações aos governos, é preciso que votem e exerçam seus direitos e deveres de cidadãos.
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Fonte: http://opiniaoenoticia.com.br/vida/geracao-y-jovens-talentosos-e-limitados/ 29/01/2016

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

“É cedo para apostar que Trump será indicado”

EDUARDO MUNHOZ SVERTS - Professor do Departamento de Ciência Política da UFRGS

De Washington, D.C., onde está vinculado à Elliot School of International Affairs, da George Washington University, o professor da UFRGS Eduardo Munhoz Sverts falou a Zero Hora sobre a disputa nas primárias dos EUA.

Zero Hora – Qual será o tema central da eleição presidencial deste ano nos EUA?

Eduardo Svarts – Na atual fase da campanha, os pré-candidatos tentam mostrar para os eleitores, financiadores e membros de seu partido que são os mais identificados com as ideias básicas do mesmo e que têm melhores chances de enfrentar o candidato do partido adversário. Depois das indicações, os discursos devem mudar e convergir para um número razoavelmente pequeno de temas tradicionais. Acredito que, na segunda fase, um tema que deverá ser bastante discutido será o papel do Estado, com democratas defendendo a reintrodução de programas do Estado de bem-estar, como o HealthCare, e republicanos criticando essa ideia.

ZH – A interferência do poder econômico na política é uma preocupação da parcela mais politizada do eleitorado ou está enraizada em toda a sociedade americana?

Svarts – Essa tem sido uma bandeira do senador Bernie Sanders, não exatamente dos demais competidores. No último discurso que o presidente Obama fez no Congresso, o tema foi mencionado, o que reflete sim uma insatisfação de parte do eleitorado. Entretanto, não parece haver uma movimentação mais consistente de reforma das regras do complexo sistema eleitoral estadunidense e tampouco dos mecanismos de articulação entre os poderes econômico e político. Lobbies, “super-PACs”, think tanks, grupos de interesse, empresas, associações e levantadores de fundos de campanha atuam muito intensamente aqui em Washington. Há todo um mercado de influência, acesso, venda de ideias e captação de recursos na cidade.

ZH – Por que figuras marginais nos grandes partidos, como Donald Trump e Bernie Sanders, dominam a cena das primárias até o momento?

Svarts – A emergência de outsiders não é um dado novo, especialmente nesta fase de disputa interna, que ocorre de forma paralela nos dois partidos. Entre os republicanos, a novidade é o fenômeno midiático Donald Trump, um empresário antes mais ligado aos Democratas, que está se beneficiando das divisões do partido e do pouco carisma que os demais pré-candidatos apresentam na TV, especialmente nos debates. A estratégia de Trump, nesta fase da campanha, emprega declarações bombásticas em meio a um discurso populista de direita que o tem mantido na mídia e liderando pesquisas. Frente às acusações e até ofensas proferidas por Trump, os demais estão na defensiva. Contudo, vários setores do Partido Republicano – e segmentos conservadores da sociedade identificados com o partido – têm se manifestado duramente contra ele. É cedo para apostar que Trump será indicado. Já entre os democratas, Sanders não é exatamente uma figura marginal, uma vez que tem quase 20 anos de atuação como congressista. Sanders tem crescido nas pesquisas de opinião com um discurso de esquerda, para os padrões daqui, defendendo um sistema de saúde pública universal e gratuito, como no Brasil. Isso tem apelo, dadas as dificuldades dos que não conseguem pagar planos de saúde.
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Fonte:  http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a4962057.xml&template=3898.dwt&edition=28299&section=3595
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Analogias

Luis Fernando Veríssimo*

 

Cem advogados brasileiros assinaram um manifesto comparando aspectos da Operação Lava-Jato em curso com métodos da Inquisição. A palavra “neoinquisição” é usada, entendendo-se que a clara referência é à ação do Santo Ofício contra inimigos da Igreja e possuídos pelo demônio, na Idade Média. Descontando-se tudo que cerca o manifesto publicado – as razões de cada signatário e a procedência ou não do seu protesto, e até os exageros da retórica –, é curioso que a analogia escolhida para os excessos da Lava-Jato tenha sido a Inquisição. O manifesto deu um pulo no tempo, para trás, por cima de todas as outras comparações cabíveis, como regimes de exceção recentes, e preferiu chamar o juiz Moro e seus comandados de caçadores de hereges e bruxas. Desconfio de que não usaram a analogia mais óbvia, com métodos fascistas, porque “fascista” foi vulgarizado como xingamento político entre nós. Esquerda e direita acusam-se mutuamente de fascismo, tanto que a palavra perdeu todo o sentido. De qualquer maneira, o manifesto dos advogados não precisava ir tão longe para buscar um exemplo de arbitrariedade e descaso por direitos legais. Tinham exemplos bem mais próximos, no tempo e no espaço.
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* Jornalista. Escritor.
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a4961972.xml&template=3916.dwt&edition=28299&section=70
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segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

'Sejamos claros: um mundo acabou, não há como voltar atrás'

Segundo o antropólogo Alain Bertho, o século XXI abandonou o futuro em nome da gestão do risco e do medo, indiferente à ira das gerações mais jovens.


Ivan du Roy, no Basta!
 
Para combater de forma eficaz o Estado islâmico e sua oferta política de morte e desespero, "devemos refletir sobre a revolta que está na raiz desses crimes", sugere o antropólogo Alain Bertho, professor de antropologia na Universidade Paris-VIII, que prepara um livro sobre "os filhos do caos". Na raiz do mal, o fim das utopias, enterradas com o colapso de todas as correntes políticas progressistas. O século XXI abandonou o futuro em nome da gestão do risco e do medo, e indiferente à ira das gerações mais jovens. Entre um cotidiano militarizado e o julgamento final à moda jihadista, apenas "a ascensão de outra radicalidade" poderia reavivar a esperança coletiva.

Os perfis dos jovens europeus que se radicalizam e partem para a Síria para se juntar ao "Califado" do Estado islâmico, dispostos a morrer como "mártires", ou que sonham em fazê-lo, costumam suscitar a total incompreensão – ou interpretações extremamente simplistas – e, em ambos os casos, uma sensação de impotência. Como o Sr. analisa estes perfis?
Alain Bertho: Embora os números variem de uma estimativa para outra, pode-se afirmar que a França é o país europeu com o maior contingente no chamado Estado islâmico. Os voluntários estrangeiros do Daesh vêm de 82 países em todo o mundo. Mas nosso país tem uma relação especial com o epicentro geopolítico do caos, graças a seu passado colonial. Mas esta relação também é produto de nossas fraturas nacionais contemporâneas.

Não existe um perfil típico daqueles que partem para a Síria, o único traço comum sendo a juventude. Aproximadamente um terço são jovens convertidos ao Islã; há jovens oriundos das periferias, estigmatizados ao longo de anos; outros têm trabalho e família; alguns não freqüentavam mesquitas, apenas seus computadores. O trabalho de David Thomson, jornalista e especialista em jihadismo, é esclarecedor. Ele acompanhou e entrevistou vários jihadistas franceses. Todos relatam uma espécie de momento de revelação, que pode ser a conversão, uma ruptura e a descoberta de uma disciplina que dá sentido às suas vidas.

O sucesso do Estado islâmico se explica pelo fato de oferecer, a pessoas desestabilizadas, sentido ao mundo e à vida que podem levar. Ele lhes dá até uma missão. Por outro lado, aqueles que vêm matar e morrer no país onde nasceram e cresceram, têm um problema particular a resolver com seu país. Este conflito é pesado e vem de longe.

Mas como o Sr. explica o apelo do Estado Islâmico e de seus avatares em outros países, uma vez que seu projeto político se resume a implementar, na Síria e no Iraque, o Islã mais reacionário e intransigente que existe, enfrentando o Apocalipse e morrendo como um mártir?
Precisamos compreender que o que garante seu apelo é justamente o fato de ser uma oferta política de morte e desespero. Daí a gravidade da situação. Como diz Slavoj Zizek: “Evidentemente, é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo”. Para os jihadistas, em um mundo de caos político, moral, econômico e climático, este fim está próximo. O projeto político do Daesh dá sentido às suas jornadas em direção à morte. Oferece-lhes um destino. A esperança de libertação individual e coletiva que era a bandeira das mobilizações do passado, no jihadismo é substituída pela problemática do fim do mundo e do juízo final. Para eles, a libertação é morrer como um mártir! Por isso, são muito determinados. "Só os mártires não têm piedade nem medo e, acredite, o dia do triunfo dos mártires será o dia do incêndio universal", profetizou Jacques Lacan em 1959. E aqui estamos. Se quisermos secar a fonte do recrutamento, é preciso refletir urgentemente sobre o que produz tamanho desespero.

Qual é a diferença entre a radicalização jihadista de hoje e a radicalização política encarnada pela luta armada ou pela ação terrorista dos anos 1970?
Há uma diferença essencial de objetivos. Depois de 1968, vimos a ascensão da ação armada com o Grupo Baader-Meinhof – ou Fração do Exército Vermelho – na Alemanha, as Brigadas Vermelhas na Itália ou o grupo de extrema esquerda Kakurokyo no Japão. De seu ponto de vista, aquelas pessoas sacrificam suas vidas pelo futuro dos outros. Cometem atos criminosos fadados ao fracasso, mas no contexto de uma luta por um futuro revolucionário que eles pretendem que seja melhor. Com o Estado islâmico, não há nada deste tipo: cada um sacrifica sua vida pela morte do outro. Querem somente arrastar todo mundo para o desespero, com apenas um consolo: os apóstatas, os incrédulos, os cristãos e os judeus não vão para o céu.

O horror faz parte da estratégia, como explica o tratado "Gestão de barbárie", escrito no Iraque pelo teórico jihadista – certamente um coletivo – Abu Bakr Naji antes do surgimento do Estado islâmico. Eles não fazem a guerra para criar um estado, como numa luta pela independência: eles criam um "Estado" para fazer a guerra. O Estado Islâmico só enxerga a paz no triunfo final do califado contra seus inimigos, cada vez mais numerosos. Mas desde 2001, a idéia de "paz como objetivo de guerra" (velha concepção de Clausewitz) já não é mais válida entre as principais potências engajadas em uma "guerra sem fim" contra o terrorismo. Quais são os objetivos da guerra ou os propósitos de paz da coalizão na Síria ou no Iraque? Não sabemos. O jihadismo nos arrastou para seu próprio terreno.

Em seu ensaio em preparação sobre "filhos do caos", o Sr. explica que o jihad – ou seja, a motivação religiosa – não é o único motor da radicalização. Quais seriam os outros?
Temos um problema com o fim do século XX e do colapso do comunismo. O fim do comunismo não é apenas o fim de regimes e instituições da Europa Oriental e da Rússia, é um conjunto de referências culturais comuns a todas as correntes políticas progressistas, que desmorona. Apesar da realidade repressiva dos regimes comunistas "reais", uma transformação social era, na época, ainda percebida como possível, e era parte de uma abordagem histórica, uma ideia de progresso. O futuro era preparado hoje. A hipótese revolucionária que inaugurou a modernidade (a Revolução Francesa) foi uma referência política comum tanto para aqueles que queriam uma revolução como para aqueles que preferiram transições pacíficas e "legais". Com o colapso do comunismo e do encerramento de toda perspectiva revolucionária, foi o futuro que perdemos no caminho. É a ideia do possível que desmorona. Não estamos mais em um processo histórico. Já não se fala mais do futuro, mas da gestão de risco e de probabilidade. Gerencia-se o cotidiano através de políticos que manipulam o risco e o medo como meios de governo, seja o risco à segurança ou o risco cambial (a dívida), que falam muito de aquecimento global, mas são incapazes de antecipar a catástrofe anunciada.

Os jovens, aqueles que encarnam biologica, cultural e socialmente o futuro da humanidade, sofrem especialmente as consequencias deste impasse coletivo e são particularmente maltratados. As sociedades não investem mais em seu futuro, sua educação ou nas universidades. A juventude é estigmatizada e reprimida. Países do mundo todo, do Reino Unido ao Chile, passando pelo Quênia, são marcados há anos por protestos estudantis, por vezes violentos, contra o aumento das taxas de inscrição nas universidades. Em toda parte, a morte de jovens por policiais gera revolta: veja as manifestações em Ferguson ou Baltimore, nos EUA; as três semanas de protestos na Grécia, em dezembro de 2008, após o assassinato do jovem Alexander Grigoropoulos por dois policiais; ou os cinco dias de revolta na Inglaterra após a morte de Mark Duggan, em 2011. Para estes poucos casos de protestos visíveis na mídia, existem dezenas de outros (como mostramos na entrevista "Aumento dos protestos: um fenômeno global" – em francês no link). Uma sociedade que já não consegue se reinventar leva as pessoas a manifestações de desespero e de raiva.

Com a globalização financeira, as desigualdades de renda e de riqueza se acentuam em uma velocidade inédita. Os Estados estão nas mãos dos mercados e dos financistas. As vitórias eleitorais mais progressistas podem se transformar em derrota pela simples vontade do Eurogrupo, em desprezo à vontade do povo, como os gregos experimentaram recentemente. Será que refletimos bem sobre como seria a revolta sem esperança? Essas fúrias radicais encontram-se hoje diante de tamanhos impasses que são capazes de abrir a porta a ofertas políticas de morte, como é a oferta do Estado islâmico.

É possível considerar a radicalização jihadista uma forma de revolta como outra qualquer? Ou seria mais adequado vê-la como uma nova ideologia totalitária e mortal que é preciso combater com todas as forças?
Ambos. Diante dos danos consideráveis e crimes que cometem, aqui e em todo lugar, devemos combatê-los. Mas se queremos ser eficazes, precisamos refletir sobre a revolta que está na raiz desses crimes. É preciso se perguntar o que pode levar um jovem de 20 anos de idade a se explodir ao lado de um McDonald’s em Saint-Denis (cidade da periferia parisiense). O que o leva até lá? O que podemos fazer para evitar que isso se generalize? A repressão são os bombeiros, mas temos de encontrar a origem do incêndio! Caso contrário, o recrutamento continuará, especialmente na França. A crise política é particularmente profunda em nosso país. A classe política está totalmente encerrada no espaço do poder e do Estado e cortada do resto da sociedade, em total dessintonia, e isso independentemente do partido. A política não é mais uma potência subjetiva capaz de reunir e de abrir possibilidades.

O peso e a força do movimento operário se apoiavam em sua capacidade de agregar populações variadas, incluindo imigrantes, em torno de uma esperança comum. O fim dos coletivos, da noção de classes sociais, da idéia de que existe um "nós" quase eliminou a consciência comum de uma ação ainda possível. O "Povo", tão caro a Michelet, se deslocou com o fim do fordismo e a política da cidade. A emergência das temáticas sobre a imigração e a ascensão da Frente Nacional (partido francês da extrema direita) são contemporâneas ao desaparecimento de uma subjetividade de classe unificadora. Pagamos caro por este deslocamento. Quando jovens são mortos pela ação de policiais nas periferias, constata-se a indiferença de grande parte da França. Foi o que aconteceu em 2005. O isolamento e estigmatização dos jovens dos bairros pobres levaram-nos às revoltas ocorridas em toda a França. Desde então, este isolamento e esta estigmatização só fizeram aumentar.

Se o que é preciso é oferecer possibilidades de ação, e até mesmo de revolta, contra a desigualdade, a discriminação ou a brutalidade do neoliberalismo econômico, por que os novos movimentos sociais e as formas pacíficas de protesto não seduzem mais?
Sejamos claros: um mundo acabou, e não haverá como voltar atrás. Não há espaço para nostalgia. Temos de olhar para frente e fazer um balanço das experiências do presente. Após o movimento antiglobalização no início dos anos 2000, o ano de 2011 representou uma janela de esperança. A Primavera Árabe começa em janeiro, com a morte de Mohammed Bouazizi, um jovem formado e desempregado, em Sidi Bouzid (Tunísia), e depois, em fevereiro, no Egito. Em seguida, o movimento espanhol Indignados ocupa a Puerta del Sol em Madri, em 15 de Maio. Os gregos, da mesma forma, protestam contra a austeridade, ocupando a Praça Syntagma, em Atenas. Grandes protestos também eclodem no Chile e no Senegal. Em setembro, é a vez do movimento Occupy Wall Street, contra as regras do mercado financeiro e a apropriação da riqueza nos Estados Unidos, e os acampamentos se estendem até Tel Aviv. Todas estas mobilizações da primeira geração pós-comunista abriram um espaço, mas isso não resultou, até hoje, em um movimento verdadeiro de transformação política.

O que resta hoje da primavera árabe? Os manifestantes sírios foram massacrados pelo regime, os líbios se matam entre eles, o Egito está quase de volta à estaca zero, e a Tunísia não consegue atender às necessidades sociais da sua população. A Tunísia é, aliás, na frente da Arábia Saudita, o país com o maior contingente entre os combatentes estrangeiros do Estado islâmico, com cerca de 3000 pessoas. Esta desilusão com a Primavera Árabe é sensível quando se observa a curva dos atentados. Ela mostra o aumento dos ataques no Oriente Médio a partir da invasão do Iraque pelos Estados Unidos, em 2003. O crescimento torna-se exponencial a partir de 2012, com o fim da primavera árabe e o início do caos geopolítico no Iraque e na Síria.

Por que não emergiu nenhuma perspectiva e alternativa política? E como a esquerda, ou o que resta dela, pode combater de forma eficaz a ascensão dessa nova ideologia totalitária?
O que chamamos por muito tempo de tradução política de uma luta para a mudança foi varrido pela experiência – e os fracassos – do século XX. O poder do Estado não aparece mais como o meio de transformação que deve ser alcançado, de uma forma ou de outra. Em 2011, manifestantes que derrubam Ben Ali na Tunísia e Mubarak no Egito deixam nas mãos de outros a tarefa de assegurar a transição e governar. Estamos testemunhando mobilizações admiráveis, mas que não se transforma em um meio de tomar o poder. Que não querem tomá-lo. Elas não têm "estratégia". Por enquanto, apenas a experiência do Podemos, na Espanha, tenta transpôr a mobilização dos Indignados a uma estratégia de poder. Em outros países, os períodos eleitorais geram cada vez mais revoltas. As eleições não são mais momentos de solução pacífica de conflitos sociais, e não apenas na África. E quando não há protestos, há queda na participação eleitoral, no mundo todo.
 
Foi a política como espaço de mobilização popular e de construção do comum que perdemos e é o que precisamos reencontrar. Com uma ponta de provocação, digo que a urgência agora é menos a "desradicalização" e a hegemonia das marchas militares no debate político e mais a ascensão de outra radicalidade, uma radicalidade de esperança coletiva, capaz de secar na fonte o recrutamento jihadista. Temos de recuperar o sentido do futuro e do possível, e não cair na armadilha dos terroristas, que é justamente a mobilização para a guerra.
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Tradução de Clarisse Meireles
 Fonte:  http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/-Sejamos-claros-um-mundo-acabou-nao-ha-como-voltar-atras-/6/35299#at_pco=smlwn-1.0&at_si=56a65deacd9826a3&at_ab=per-12&at_pos=0&at_tot=1

Estamos vendo a construção de um Estado de Direito 'fast food'

 
O que estamos vendo é a construção de um Estado de direito 'fast food', para adaptar a ordem política às necessidades do capital financeiro, constata Tarso Genro, ex-governador do Rio Grande do Sul – PT, em artigo publicado por Carta Maior, 24-01-2016.

Eis o artigo.

"No Rincão Velho um dia anunciei ao meu querido amigo Oscar Pardo: prepara-te. Vamos nos casar. Correu ao seu quarto e voltou com uma escopeta na mão. Entendeu que íamos caçar". (Adolfo Bioy Casares, "Memórias", anunciando a um amigo o seu casamento com a escritora Silvina Ocampo)
Neste emaranhado de informações vazadas, notícias verdadeiras e manipuladas, avaliações do comportamento dos agentes públicos envolvidos na operação "lava-jato", creio que faz falta um debate de princípios. Um debate - tanto do ponto de vista jurídico como político - para situar a guerra política que estamos vivendo, no interior do Estado de Direito, na sua fase histórica de Estado Democrático e Social. Estado, este, que adquiriu sua elaboração doutrinária mais complexa, após as derrotas das diversas formas de fascismo depois da Segunda Grande Guerra.

Como diz Lenio Streck, no seu brilhante "Jurisdição Constitucional e Hermenêutica", "nem tudo está perdido, a Constituição ainda constitui", e prossegue: "o Direito, enquanto legado da modernidade - até porque temos uma Constituição democrática - deve ser visto hoje como um campo necessário de luta para a implantação das promessas modernas". Este pequeno ensaio quer saudar esta visão e, ao mesmo tempo, contribuir para que as lutas que se travam hoje no Brasil, contra a corrupção, não redundem, como na Itália, na transferência do poder político de Estado para esquemas de corrupção que tenham na sua vanguarda um esquema ainda mais complexo e poderoso, como aquele que levou Berlusconi ao poder, por quase uma década: a irmandade siamesa da grande mídia, as agências de risco e o capital financeiro especulativo.

Os processos político-judiciais em andamento no Brasil desenham um duplo cenário e ensejam várias possibilidades de desenlace: são - ao mesmo tempo - um momento revelador positivo da nossa trajetória republicana, porque é um fato real a existência de organizações criminosas dilapidando o Estado; e também são um momento de constrangimento do Estado, para que ele não prossiga na promoção da efetividade da genda constitucional dos direitos sociais, que os credores da dívida pública veem como uma ameaça ao seu direito de recebê-la.

A "midiatização" do Processo Penal, que vincula politicamente o Judiciário como instituição, a grande mídia e a direita política (ramificada em todos os partidos com forte representatividade eleitoral), compõem o cenário onde as coisas, até agora, estão se resolvendo, pois o Estado Democrático e Social de Direito - tal qual foi aqui foi constituído - é um bloqueio à agenda do capitalismo financeiro global. A via mais eficaz para derrotá-lo, desconstituindo-o em termos programáticos e impugnando as suas promessas, é através da luta contra corrupção: uma luta meritória para um objetivo espúrio. Salvá-lo, iria requerer o seu aprofundamento no respeito aos direitos fundamentais e na resposta concreta aos direitos sociais, via que não foi escolhida, até agora, pelos governos sob ataque.

Para que essa análise não seja distorcida, quero sustentar que tanto as investigações do Ministério Público, bem como a direção processual dos casos - ainda em exame, pelo Poder Judiciário - não podem ser vistos como uma "conspiração da direita", contra os governos de esquerda (na sua acepção tradicional), instalados no país depois de 2002. Nem eram tanto "governos de esquerda", nem os processos arremeteram somente contra pessoas mais à esquerda, no espectro político tradicional desta. Mais corretamente, pode-se dizer que são ações que surgiram combinando um avanço republicano das instituições - a partir da luta contra a corrupção centenária (fundamentada na defesa da legalidade) - com a conveniência de ajudar a derrotar o desenvolvimento da democracia social no Brasil, promovido pela Constituição de 88.

A mesma Constituição que edificou os direitos sociais programáticos e limitou-os, por proibições constitucionais, que só permitem a implementação dos direitos fundamentais e sociais pelas tortuosas formas tradicionais do velho Estado de Direito, verticalizado, não participativo e propício para ser controlado pelas velhas oligarquias e corporações. Lula está sendo cercado - não Fernando Henrique nem Aécio - porque teve a capacidade de movimentar esta máquina, dentro da ordem, para diminuir a distância entre ricos e pobres no país, o que permitiu a evolução democracia social, ainda que sob controle das grandes fortunas, não da cidadania comum.

Duas grandes falácias, porém, estão na base desse movimento político e jurídico. Elas marcarão - independentemente dos seus resultados - a nossa história para sempre. A primeira falácia, é que os processos judiciais em curso obedecem ao princípio da "neutralidade formal do Estado", portanto estão sendo encaminhados dentro do "Direito vigente". Ora, nenhum Estado, democrático ou não, é "neutro", pois verdadeiro conteúdo da vida constitucional de um Estado não está naquilo que a norma constitucional ordena ou outorga, como direito ou pretensão de direito, mas está naquilo que a sua Constituição proíbe, lugar normativo onde o Estado declara, portanto, a sua "não neutralidade".

O sentido concreto desta afirmação é que, embora possa se desejar que toda a norma constitucional seja norma jurídica, nem toda o é: algumas são programáticas, outras são princípios formais, outras são inaplicáveis. E são assim -programáticas ou inaplicáveis- porque a sua força normativa e influência direta na vida do cidadão concreto é barrada. formal e materialmente, pelas proibições contidas na mesma Constituição. Se o Estado fosse "neutro", o direito de propriedade seria tão viabilizado como a proteção dos direitos fundamentais e, mais ainda, o aparato estatal permaneceria inerte -o que seria ruim- perante os supostos ou reais crimes atuais, como o fez perante pessoas dotadas dos mesmos direitos, prerrogativas e deveres, em outros momentos.

O que determina, portanto, o ativismo judicial em curso -com seus problemas e méritos- é o ambiente democrático, a política (que não é neutra), que penetra em todos os poros da Polícia, do MP e do Poder Judiciário. E estes, no momento que passam a identificar uma "classe política" a ser vigiada e punida (não propriamente os criminosos que estão na política), tornam-se - eles mesmos - uma classe política especial. "Classe" dotada de poderes políticos excepcionais, que formula o axioma que estão "acima da política", tornando-se, por este desvio de funções, corregedores da democracia, a partir de um suposto "clamor público", que lhes estimula a novas interpretações da Constituição e das leis penais: assim, abalam o garantismo e, às vezes, até invertem o ônus da prova nos processos criminais.

O Estado Social e Democrático de Direito é a formulação mais avançada do Estado de Direito, que pretende equilibrar a "democracia política" e os direitos "sociais e fundamentais", com a trama normativa e prescritiva do Direito Constitucional, que é, ao mesmo tempo, programa e norma, prescrição e proibição, já uma nova utopia moderna, portanto, sob o assédio universal da destruição das suas funções públicas.

Os processos em curso promovem -como estão sendo geridos até agora- um "empate estratégico", entre o avanço de uma ordem mais republicana e um retrocesso autoritário, desta mesma ordem, em função dos instrumentos que estão sendo usados na sua implementação. Este "empate" ainda não está resolvido, pois ele se decide, não nos Tribunais, mas no terreno político, pois o próprio MP e os Juízes, ainda não estão cooptados, majoritariamente, para o novo sentido que está sendo dado às suas funções de revisores da ordem jurídica democrática, sem serem mandatados pelo detentor da soberania: o povo constituinte.

A segunda falácia é a comparação da "lava-jato" com a "Mãos-Limpas" (ou a "Tangentópoli") italiana. As grandes operações policiais contra a elite que tinha dirigido o Estado italiano no pós-guerra (até os anos 90) foram promovidas contra todos os partidos e líderes, que passaram pelos sucessivos governos italianos no pós-guerra, ao contrário do que ocorre em nosso país, cuja seletividade só não é mais forte em função da socialização da informação feita pelas redes.

Os processos dos anos 90 sucederam ações duríssimas contra a Máfia, então dirigidas pelos juízes Borselino e Falcone, na década anterior (e pelo Chefe dos fiscais, Rocco Chinnici), todos posteriormente assassinados pelos grupos criminosos que combateram. Eis a diferença substancial: a pauta do combate à criminalização do Estado, promovida por estes heróis assassinados, ficou como exemplo para as novas gerações de juízes e fiscais, que não foram orientados pela grande mídia, nem homenageados por ela, para começar o seu trabalho de apuração "direcionado" contra os crimes contra o Estado, mas foram motivados pelo exemplo dos seus antecessores.

Segundo as investigações de Borselino e Falcone, a Máfia - com as suas devidas variações regionais - mantinha uma estreita relação com as mais importantes lideranças da democracia cristã da Itália, que se projetaram para os demais partidos de Governo, até a chegada de Berlusconi ao poder, glorioso "renovador" da política italiana, neoliberal, autoritário e corrupto, que veio de fora da "classe política", para ocupar funções de Governo.

Pier Luigi Zanchetta, num estudo das perspectivas judiciais e políticas abertas com aqueles processos na Itália, mostra (1995) que a "Tangetopoli" começa quando amadurecem as condições políticas e econômicas que abalam o pacto de "não beligerância" entre a Magistratura e o Poder Político. Pacto este, já também debilitado pela presença ativa no Sistema de Justiça italiano de Juízes e Fiscais simpatizantes do Partido Comunista Italiano ou, pelo menos, independentes das oligarquias da democracia cristã. São novos quadros, originários de correntes ideológicas e políticas, que não tiveram responsabilidades significativas no governo nacional, depois da estabilização posterior ao fascismo.

A utilização, que estes fizeram da imprensa, "manipulando-a" - como diz o Juiz Moro elogiosamente no seu "Considerações sobre a Operação Mani Pulite", também nada tem a ver com o que ocorre no nosso país, pois aqui há uma mão inversa, não observada inocentemente por Moro: aqui a mídia direitista é que estimula ou "limita", a ação da Polícia e do Sistema de Justiça, usando prebendas publicitárias que outorga a quem atende a suas "denúncias", transformando estas autoridades em uma "longa manus", não só da sua ação destrutiva da esfera da política (na qual a mídia oligopolizada institui a pauta que lhe interessa), mas também edifica ou destrói lideranças públicas, segundo a sua visão de Estado e projeto político.

A mudança dos critérios interpretativos das normas jurídicas do Processo Penal e do Direito Penal, a relativização do garantismo e a anulação concreta da presunção da inocência, não só pelos vazamentos seletivos, mas também pela voz pública dos Juízes, Procuradores e Delegados de Polícia -antecipando convicções sobre os processos judiciais e investigações em curso- configuram o erguimento de uma nova ordem, dentro da mesma ordem.

É uma mudança, porém, que atinge os "fundamentos" de qualquer Constituição democrática, a saber: o princípio da igualdade formal e o princípio da inviolabilidade dos direitos. Os atuais réus, dentro da mesma ordem jurídica, não estão tendo o mesmo direito à ampla defesa, que tiveram os outros réus, que lhes precederam, processados sobre os mesmos temas, na mesma ordem jurídica, porque os processos atuais viraram espetáculos políticos da mídia partidarizada e instrumentos de liquidação de uma facção política, quando se sabe que a delinquência contra o Estado, está dentro de todas as facções. Nem estão tendo, estes réus, o direito de aguardar, para cumprir suas penas, que as suas sentenças transitem em julgado.

O que estamos vendo é a construção de um Estado de direito "fast food", para adaptar a ordem política às necessidades do capital financeiro das agências de risco, que só não aceitam a corrupção dos outros. Na verdade, o objetivo estratégico de todo este movimento, que traz no seu início a marca generosa e republicana do combate à corrupção - independentemente da consciência dos seus protagonistas - passou a ser chegar a um governo capaz de decapitar o Estado Democrático e Social de Direito, dada a sua incapacidade (verdadeira) de, ao mesmo tempo, pagar a dívida financeira legítima e ilegítima, e também pagar a dívida social, reconhecida na Constituição social e democrática que escolhemos em 88. Para cumprir com estas promessas, os contratos da dívida deveriam, em algum dia, serem revistos, nas suas partes ilegítimas e ilegais.

Norberto Bobbio diz que a "ética da convicção" não coincide com a "ética da responsabilidade", pois aquela é uma ética dos princípios e esta é uma ética "dos resultados". Esta distinção, que atravessa a história da filosofia moral, desafia tanto os dirigentes políticos como os "operadores do direito", em cada momento das suas vidas.

A primeira pode levar a um fanatismo repugnante, que descarta o homem concreto e celebra o homem abstrato, aplicando, mecanicamente, os princípios, independentemente das particularidades e até mesmo singularidades de cada situação vivida.

A segunda pode levar ao pragmatismo extremo, na busca de um resultado que viola princípios e desliga-se hoje, portanto, do conjunto de valores construídos na modernidade democrática e no humanismo revolucionário das Luzes. Tudo indica que predomina, no atual jacobinismo dos Juízes e do Ministério Público, esta segunda hipótese. Até onde chegarão, depende mais da ação política na sociedade do que dos resultados, já antevistos, da maioria dos processos penais em curso. É bom ser pessimista, mas também não perder a esperança.
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Fontes:  http://www.ihu.unisinos.br/noticias/551147-estamos-vendo-a-construcao-de-um-estado-de-direito-fast-food
Carta Maior: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Estamos-vendo-a-construcao-de-um-Estado-de-Direito-fast-food-/4/35372
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