sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

A agonia da crise final

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Amanhã clara e ensolarada dera lugar a um início de tarde cinzento. Pesadas nuvens carregavam o céu em Higienópolis, bairro de classe média alta em São Paulo. A rua do prédio de Rubens Ricupero, 78 anos, é razoavelmente tranquila, muito arborizada. No sexto andar, ele que aguarda em frente da porta aberta do apartamento abre um sorriso e estende a mão para cumprimentar a repórter.

O almoço foi marcado no apartamento do ex-ministro da Fazenda depois de ele apresentar dois argumentos praticamente irrefutáveis: em restaurante algum de São Paulo se come tão bem quanto ali e a conversa não será atrapalhada por pessoas acima do tom em outras mesas. “Morei muitos anos, quase dez, em Genebra. Lá era tudo tão tranquilo, as pessoas tão silenciosas que, quando voltei para o Brasil, achei que não me acostumaria a morar em São Paulo e teria que arrumar um lugar no interior”, diz.

Os tempos na Europa não são mais tão silenciosos como quando Ricupero vivia lá. Depois que 137 pessoas foram mortas e mais de 350 feridas por integrantes do Estado Islâmico (Isis), no mês passado, a França está em guerra contra o terror. E o diplomata está bastante apreensivo – também por questões pessoais. Três filhas suas moram no exterior. Uma em Genebra e duas na França, uma delas em Paris, palco dos atentados. “No documento do Isis, estava prevista mais uma ação no XVIIIe. ‘arrondissement’, onde fica Montmartre. Minha filha mora ali, bem próximo ao local onde foi deixado um dos carros dos terroristas. Fiquei muito impressionado com isso. É um cenário de horror que me toca muito de perto.” Seu filho caçula vive na capital paulista e é professor de ciência política na Universidade de São Paulo (USP).

O terrorismo que atinge de perto a família Ricupero, entre outras consequências, comprometeu o acordo de Schengen, um dos pilares da União Europeia que permitiram a abertura das fronteiras e a livre circulação de pessoas entre os países signatários. Cercas de arame farpado são erguidas, impedindo a entrada dos imigrantes que fogem dos absurdos da guerra na Síria, no Líbano e no Iraque. Os postos fronteiriços são vigiados com rigor. Controles de entrada e saída se tornaram implacáveis com todos os cidadãos, sem distinção. “Esse problema não tem nenhuma saída à vista, nenhuma solução fácil. E começa a afetar a globalização.”

Ricupero observa que a força básica que impulsiona a globalização, seguindo o conceito de que ela significa a unificação do planeta para todos os tipos de intercâmbio, é a revolução tecnológica. Um paradoxo. Afinal, é também a internet que amplifica o poder dos terroristas, permite o recrutamento de novos seguidores mundo afora e divulga as bárbaras execuções que eles cometem em nome da religião. “É um fenômeno curioso. A globalização significava eliminar fronteiras, inclusive com o poder da internet. As fronteiras da União Europeia estavam acabando, os muros caíram. Agora, eles voltam. É um retrocesso para a civilização que terá um profundo impacto no comércio e na economia mundiais”, afirma.

Ricupero: “As fronteiras da União Europeia estavam acabando, os muros caíram. Agora, eles voltam”
Os países na América Latina ainda não estão na mira do terror, mas os reflexos chegam ao continente, que contava com novos investimentos, incremento nas relações comerciais que pudessem atrair investimentos e financiamentos. “Aí é que o que acontece no mundo hoje é uma ameça para nós. A reunião do G-20, antes desse ataque, ia ser basicamente dedicada à discussão de como enfrentar essa tendência dos países emergentes que não estão crescendo, como reativar a economia mundial. Esse tema sumiu do mapa”, afirma o ex-embaixador, com a autoridade de quem conhece em profundidade o comércio internacional. De 1995 a 2004, Ricupero cumpriu dois mandatos de secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad).

A entrevista é interrompida por alguns minutos, quando chega Marisa, a mulher do diplomata. No apartamento de amplas varandas, a sala é dividida em três ambientes, com móveis confortáveis e decorada com objetos de arte e recordações trazidas de outros países. Ele e Marisa moraram em Buenos Aires, Quito, Viena, Roma, Washington e Genebra. É ela quem prepara o almoço e, enquanto não fica pronto, oferece suco de tomate, água, castanhas e palitinhos de cenoura. Logo depois, se acomoda em um dos sofás e conta que os dois se conheceram muito jovens. Estavam noivos em 1960, quando Brasília foi inaugurada e chegavam os primeiros moradores. O Itamaraty, como quase todos os órgãos federais, ainda funcionava no Rio, então capital federal.

Convencer os servidores públicos federais a deixar a vida de luz, sol e mar para embrenhar-se naquela terra vermelha e árida, em meio aos redemoinhos de vento e poeira, era bastante difícil. Os pioneiros voluntários que concordavam em encarar aquele lugar inóspito eram recompensados. “Recebíamos a dobradinha”, recorda-se Marisa, explicando que esse era o nome dado ao pagamento do salário em dobro, além de uma gratificação.

Outro atrativo eram as moradias. Os apartamentos, vendidos quase a preço de banana e em prestações a perder de vista, tinham três quartos grandes, sala espaçosa. Eram muito diferentes das habitações apertadas e caras no Rio. E ainda havia um ponto que faria toda a diferença na carreira de um jovem diplomata. “O grupo do Itamaraty era muito pequeno. Eu tinha acesso a pessoas com as quais jamais falaria se estivesse no Rio. Cheguei a despachar com Jango [o presidente João Goulart] e com Tancredo Neves [primeiro-ministro no curto período parlamentarista brasileiro]. É claro que gostei. Sentia que estava acompanhando a história de perto”, diz o ex-embaixador. Marisa vai até a cozinha e volta com o convite: “Já está tudo pronto. Querem almoçar?”

"[O terrorismo religioso] 
é um retrocesso para a civilização 
que terá um profundo impacto no 
comércio e na economia mundiais"

Ricupero está no meio de uma boa história e segue a narrativa. “Você sabe que conheci o Che Guevara quando ele veio ao Brasil para ser condecorado pelo presidente Jânio Quadros, em 1961? Fui designado para acompanhá-lo e conversamos muito. Fiquei surpreso. Imaginava ele uma figura feroz, um homem belicoso. Afinal, era um líder guerrilheiro. Natural que, em gestos e palavras, mostrasse estar habituado ao combate. Nada disso. Che era muito suave. Era um homem que tinha gravidade. Mas muito afável. Vai ver que, por isso, dizia aquela frase: ‘Hay que endurecer, pero sin perder la ternura jamás’.”

O diplomata cita a frase mais famosa do argentino Ernesto Guevara, o Che, revolucionário que, ao lado de Fidel Castro, derrubou o regime de Fulgêncio Batista, em Cuba, e pavimentou o caminho para a efetivação do longevo regime comunista.

“Vamos almoçar?”, repete Marisa, dessa vez já encaminhando todos à mesa. Ela pergunta onde cada um gostaria de sentar-se. “Marisa é a chefe do cerimonial”, brinca o ex-embaixador. “No Itamaraty, normalmente, marido e mulher nunca ficam um ao lado do outro. Supõe-se que eles já se falam muito todos os dias. Nas ocasiões sociais é preciso variar.” O cerimonial fica para outra ocasião e nos sentamos da forma mais prática. Entrevistado e repórter frente à frente.

O cardápio, a elaboração dos pratos e a escolha do vinho – um branco chileno Tarapacá – ficaram por conta de Marisa. Ela serve a bebida e a entrada: “vichyssoise”, clássica sopa fria francesa, à base de alho-poró, batatas, creme de leite e manteiga. “A minha é uma versão light. Pouca manteiga, pouco creme”, esclarece, tranquilizando jornalista e fotógrafa.

Diretor do curso de relações internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), Ricupero toma a sopa e retoma o assunto do terrorismo, uma de suas grandes preocupações atuais. Em 2009, há seis anos, escreveu um artigo – quase profético – com o título “A islamização da agenda internacional”. Ele chamava de “arco de crises” a curva de violência e conflitos que passava pelo Líbano, a Faixa de Gaza, Israel e Síria, chegando ao centro e norte da África. Ressalvadas as especificidades próprias de cada um desses conflitos, ele mostrava no texto que todos tinham em comum o fato de opor ocidentais (os americanos e seus aliados na Otan) a uma variedade de movimentos e facções muçulmanas. “Os americanos têm uma responsabilidade grande nisso. Eles militarizaram o conflito. O Iraque tinha todos os problemas, menos o terror. A guerra no Afeganistão não terminou até hoje”, observa.

Com a ajuda da empregada, Marisa retira as delicadas tigelas de sopa, de porcelana comprada em Praga. Alguns minutos depois, serve o prato principal: atum com alho assado, cebolas caramelizadas e brócolis. “Falei que o restaurante da Marisa é bem sofisticado, mereceria uma estrela”, elogia Ricupero. “Eu e você vamos dividir um pedaço do atum”, afirma ela, servindo o prato do marido. Ele concorda.

“Marisa é mais requintada”, observa o ex-ministro, educado em uma casa de mãe napolitana. “Estou acostumado com a comida do sul da Itália. Muito molho de tomate, berinjela. Ela é do Norte, está acostumada às combinações mais sofisticadas.”

A família de Marisa é da região de Trento, que só passou definitivamente para o domínio italiano depois da Primeira Guerra. A culinária local é fortemente influenciada pela França, Áustria e Hungria, e as receitas mais refinadas, se comparadas às do sul do país, usam creme de leite, bastante manteiga e bastante condimento. Da região de origem da família Ricupero vêm os italianos mais expansivos e comunicativos e os pratos têm influência mediterrânea.

O papo atravessa o oceano e chega ao Brasil. Ricupero comandou a economia do país em um dos momentos mais delicados da história recente. No início da década de 90, então embaixador em Washington, ele era o nome do presidente Itamar Franco (1930-2011) para conduzir a economia. O mineiro Itamar, que sucedeu Fernando Collor, afastado da Presidência por um processo de impeachment, gostava das ideias de Ricupero. Comungava da preocupação que o diplomata manifestava sobre a inclusão social e o crescimento econômico. Ricupero agradeceu, mas preferiu ficar no exterior.

Em 1994, Fernando Henrique Cardoso – que era o ministro da Fazenda – saiu do governo para disputar a sucessão presidencial. Ricupero não rejeitou o segundo convite. Itamar o chamava de “sacerdote”. Não apenas pela dedicação sacerdotal que Ricupero dedicou ao Plano Real. O diplomata é – assim como era Itamar – devoto de Santa Terezinha e um homem de profundas convicções religiosas.

A grande ameaça ao ser humano não é o fundamentalismo islâmico, mas o aquecimento global.
 As pessoas não percebem

No Ministério da Fazenda, conheceu a glória do êxito do Plano Real, mas, também, o amargor de um deslize que o obrigou a deixar o cargo. Em uma conversa, antes de começar uma entrevista para a Rede Globo, comentou: “O que é bom a gente mostra. O que não, a gente esconde”. O áudio, como se diz no jargão da TV, “vazou” na transmissão pela antena parabólica e a frase virou arma da campanha do petista Luiz Inácio Lula da Silva – àquela altura em desvantagem nas pesquisas de intenção de voto – contra Fernando Henrique. Poucas horas depois da transmissão, Ricupero disse a Itamar que não teria mais condições de ficar no posto.

A contragosto, o presidente aceitou. “Eu estava cansado, dava muitas entrevistas. Fiz um comentário. Não sei se foi um momento de vaidade. Penitencio-me até hoje”, justifica o ex-ministro.

Os pratos já estão limpos. Que melhor elogio pode ser dado a um chef? Marisa também serve a sobremesa: creme de abacate e frutas. E Ricupero volta a falar sobre a crise brasileira. Em sua opinião, a presidente Dilma Rousseff deveria renunciar. Pouparia, assim, o desgaste e os prejuízos econômicos e institucionais que se abatem sobre o país. E critica, também, aqueles que veem o país submergir, mas elogiam o bom funcionamento das instituições.

“É até contraditório dizer que o Brasil está mergulhado em uma profunda crise política, moral e de corrupção e que tem instituições fortes. Se o Brasil tivesse instituições fortes, elas teriam impedido que isso ocorresse. As crises ocorrem nas instituições.”

Quase três horas depois de começar este “À Mesa com o Valor”, desabafa: “Os grandes ciclos econômicos, políticos e sociais da história do Brasil têm um desdobramento parecido. São ciclos longos. O segundo mandato de Dilma, para mim, é a agonia da crise final. Só não creio que o desenlace seja militar. Vamos ter a agonia final desse sistema. Vai acontecer aquela definição que [Antonio] Gramsci [1891-1937] dava à crise: o velho não acaba de morrer e o novo não consegue nascer. Nesse interregno, todo tipo de sintoma mórbido sobe à superfície.”

Marisa avisa que serviu o café na sala de estar. Voltamos ao sofá. Ricupero não está nada otimista em relação ao futuro. A crise no Brasil, pondera, terá um tempo curto e um tempo longo. A curto prazo será preciso esperar para saber o que vai ocorrer com a presidente Dilma. “Temos que ver se ela conseguirá deter essa deterioração da economia. No momento parece difícil, pouco provável que esse governo tenha condições de recuperar uma ação mais efetiva. A situação é mais complexa e difícil do que se diz. Falam que é sobretudo falta de confiança. Recuperada a confiança, os investimentos retornariam. Se fosse só confiança, seria uma questão política e econômica, apenas.”

No entanto, em sua opinião, muitos dos problemas do Brasil estão inseridos na economia mundial. “A análise e a discussão econômica no Brasil são muito monótonas, dominadas pelos problemas locais e superficiais”, critica. A discussão ignorada no país diz respeito aos rumos da globalização. Teria esse processo atingindo seu pico e entraria em declínio? “Muitos pensam que o pico da globalização econômica foi atingido antes da crise. Para alguns é uma tendência passageira por causa da crise, para outros não.”

Nos Estados Unidos, esse debate conta com vozes como a do ex-secretário do Tesouro do governo de Bill Clinton e economista Lawrence Summers, que, no ano passado, relançou o tema da “estagnação secular” – expressão que designa longos períodos de baixo crescimento mundial.

“Muitos comparam a crise financeira de 2008 à de 1929. A do século passado foi muito pior”, diz
As opiniões estão divididas entre analistas que dão ênfase à perda de influência relativa da economia americana no contexto global e os que encontram semelhança no momento atual com as crises de emergentes nos anos 90. Os historiadores econômicos, por exemplo, já assinalam que essas taxas de crescimento de 3, 4, 5% per capita nos países ricos são fenômenos raríssimos na história da economia. O normal, diz o ex-embaixador, não é crescer muito, mas crescer pouco. No passado, porque a própria demografia não aumentava, controlada pelas epidemias, fomes, recursos limitados. Hoje, a estagnação secular se aplica ao fato de que os três grandes motores da economia capitalista avançada, Estados Unidos, a Europa em conjunto e o Japão, estão com muita dificuldade para voltar a crescer.

“Muitos comparam a crise financeira de 2008 à de 1929. A do século passado foi muito pior. Naquela época, o erro foi fechar o crédito. Agora foi o contrário. O ser humano aprende algumas lições. O que não quer dizer que não haja novos problemas. O homem é um ser problemático por natureza”, observa.

A Revolução Industrial resolveu o problema da escassez de bens, mas, na opinião de Ricupero, criou um novo problema: o aquecimento global. “Considero que a grande ameaça ao ser humano não é o fundamentalismo islâmico, mas o aquecimento global”, avalia. “As pessoas não percebem. A grande diferença com a ameaça da destruição dos terroristas é que a deles é já, é imediata, está aí à nossa frente. A do aquecimento vai se concretizar só dentro de 30 anos. Parece tanto tempo que muitos acreditam que até lá vamos inventar alguma coisa.”

Nem tudo é desesperança sobre o amanhã. Ricupero vê com entusiasmo o acordo global para frear as emissões de gases do efeito estufa e para lidar com os impactos da mudança climática assinado na conferência do clima da ONU (a CoP-21), encerrada no sábado, em Paris. “Foi muito acima do que eu imaginava. Pela primeira vez Estados Unidos e China fizeram um movimento expressivo no sentido de combater as mudanças climáticas”, avalia o ministro do Meio Ambiente e da Amazônia Legal, entre 1993 e 1994. Ele comemora também a positiva sinalização sobre o fim dos combustíveis fósseis. “Isso põe um grande ponto de interrogação no pré-sal e deixa claro que se perdeu tempo com a euforia. É provável que esse petróleo nunca venha a sair do fundo do mar. Não digo que não terá nenhuma importância. Mas a corrupção na Petrobras, o preço do petróleo cada vez menor e a mudança de postura nas questões climáticas vão empalidecer o que se esperava do pré sal.”

O ex-embaixador está escrevendo um livro em que trata do papel que a diplomacia teve não só em explicar a formação do Brasil e como se tornou independente, mas, também, como ajudou a plasmar os valores brasileiros e a ideia que o povo faz de si mesmo.

A conversa poderia prosseguir o resto da tarde – e já dura mais de três horas. Mas quando fala da globalização por meio da tecnologia, Ricupero não usa figura de retórica. A campainha toca: é o professor que o ensina os segredos dos computadores. A aula tem de começar.
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Via: Folha de São Paulo — Clipping de notícias de Leônidas Herndl, com informações do país e do mundo, além de finanças, economia e demais temas pertinentes.
Fonte:  http://leonidasherndl.com.br/leonidas_herndl/a-agonia-da-crise-final/

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