segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Isto é o que acontece depois de morrermos


A maioria prefere não pensar no que acontece aos nossos corpos depois da morte. Mas a decomposição dá à luz uma nova vida de forma inesperada, escreve Moheb Costandi.
“Talvez seja precisa alguma força para partir isto”, diz a agente funerária Holly Williams, enquanto levanta o braço de John e levemente lhe dobra os dedos, o cotovelo e o pulso. “Geralmente, quanto mais fresco estiver um corpo, mais fácil é para mim poder trabalhá-lo.”

Williams fala suavemente e tem uma atitude despreocupada, que reflete a natureza do seu trabalho. Tendo crescido e estando agora a trabalhar na casa funerária da sua família no norte do Texas, ela já viu e lidou com corpos quase diariamente, desde a sua infância. Agora aos 28 anos, estima já ter trabalhado com cerca de mil corpos.

O seu trabalho envolve recolher os corpos de pessoas que tenham falecido recentemente na zona de Dallas e Fort Worth e prepará-los para o funeral.

Longe de estar “morto”, um corpo em decomposição está repleto de vida. Um número crescente de cientistas olha para um corpo em decomposição como a pedra angular de um vasto e complexo ecossistema. 
 
“A maior parte das pessoas que vamos buscar morrem em lares de idosos — explica Williams — mas às vezes temos de recolher pessoas que foram baleadas ou que morreram num acidente de carro. Podemos receber uma chamada para ir buscar alguém que tenha morrido sozinho e que só foi encontrado passados dias ou semanas e os seus corpos já estão em decomposição, o que torna o meu trabalho muito mais difícil.”

John tinha morrido há cerca de quatro horas, antes de o seu corpo ser trazido para a casa funerária. Em grande medida, tinha tido uma vida relativamente saudável. Trabalhou desde sempre nos campos petrolíferos do Texas, uma profissão que o mantinha fisicamente ativo e em forma. Tinha parado de fumar há décadas e bebia álcool de forma moderada. Foi então que, numa manhã fria de janeiro, John teve um enfarte agudo em sua casa (causado, aparentemente, por outras complicações médicas desconhecidas), caiu no chão e morreu quase instantaneamente. Tinha apenas 57 anos.

Agora, o John estava deitado na mesa de metal de Williams, o seu corpo envolvido num lençol branco, frio e hirto ao toque, a sua pele de um cinza-arroxeado – sinais que indicavam que os estágios iniciais da decomposição já tinham começado.


 

Autodigestão

Longe de estar “morto”, um corpo em decomposição está repleto de vida. Um número crescente de cientistas olha para um corpo em decomposição como a pedra angular de um vasto e complexo ecossistema, que surge pouco depois da morte, que prospera e evolui à medida que a decomposição se desenrola.

A decomposição começa alguns minutos após a morte, com um processo designado autólise ou autodigestão. Pouco tempo depois de o coração deixar de bater, as células ficam privadas de oxigénio e a sua acidez aumenta à medida que os subprodutos tóxicos das reações químicas se acumulam no seu interior. As enzimas começam por digerir as membranas das células e abandonam o espaço intracelular, enquanto se dá a sua destruição. Este processo começa geralmente no fígado, que é rico em enzimas, e no cérebro, devido ao seu elevado teor de água. Contudo, todos os outros tecidos e órgãos acabam por deteriorar-se desta forma. Com a ajuda da gravidade, os vasos sanguíneos começam a derramar células danificadas, fixando-se nos capilares e nas veias mais pequenas, o que provoca a descoloração da pele.

A maior parte dos órgãos são desprovidos de micróbios quando estão vivos. Contudo, pouco tempo depois da morte, o sistema imunitário deixa de funcionar, deixando-os proliferar livremente pelo corpo.  
 
A temperatura corporal também começa a descer, até se aclimatizar ao meio ambiente. Depois, instala-se o rigor mortis — “a rigidez da morte” — começando nas pálpebras, no queixo e nos músculos do pescoço, antes de avançar para o tronco e os membros. Em vida, as células dos músculos contraem e relaxam devido à ação de duas proteínas filamentosas (a actina e a miosina), que deslizam uma ao longo da outra. Depois da morte, esgota-se a fonte de energia das células e os filamentos proteicos são bloqueados. Isto faz os músculos ficarem rígidos e prende as articulações.

Nestes estágios iniciais, o ecossistema cadavérico consiste, maioritariamente, nas bactérias que vivem dentro e à superfície do corpo humano. Os nossos corpos albergam um grande número de bactérias; cada superfície e cada canto do corpo proporcionam um habitat para uma comunidade microbiana especializada. De todas essas comunidades, a maior reside nos intestinos, que servem de morada a biliões de bactérias de centenas, ou talvez milhares, de espécies diferentes.

O microbioma intestinal é um dos temas mais populares da biologia; desempenha várias funções na saúde humana e está relacionado com um grande conjunto de doenças e complicações médicas, desde o autismo e a depressão, até à síndrome do intestino irritável e à obesidade. Mas continuamos a saber pouco acerca destes passageiros microbianos. Sabemos ainda menos sobre o que lhes acontece quando morremos.

Os investigadores conseguiram estimar o momento da morte, com uma margem de erro de três dias, a partir de cadáveres em decomposição há quase dois meses. 
 
Em agosto de 2014, a cientista forense Gulnaz Javan da Universidade do Estado do Alabama, em Montgomery, juntamente com os seus colegas, publicou o primeiro estudo sobre aquilo a que chamaram o tanatomicrobioma (do grego, thánatos, que significa “morte”).

“Muitas das amostras vêm de casos criminais”, diz Javan. “Quando alguém se suicida, ou é assassinado, ou morre de uma overdose ou de um acidente rodoviário, eu colho amostras de tecidos dos corpos. Há problemas éticos, porque precisamos de consentimento.”

A maior parte dos órgãos são desprovidos de micróbios quando estão vivos. Contudo, pouco tempo depois da morte, o sistema imunitário deixa de funcionar, deixando-os proliferar livremente pelo corpo. Habitualmente, isto começa nos intestinos, no nó que se situa entre o intestino grosso e o delgado. Se nada for feito em contrário, as bactérias começam a digerir os intestinos — e depois os tecidos circundantes — de dentro para fora, usando como fonte de alimento o cocktail químico que as células danificadas deixam escapar. A seguir invadem os vasos capilares do sistema digestivo e os gânglios linfáticos, espalhando-se primeiro para o fígado e baço e depois para o coração e para o cérebro.

Javan e a sua equipa recolheram amostras de fígado, baço, cérebro, coração e sangue de 11 cadáveres, entre 20 e 240 horas após a morte. Usaram duas tecnologias de ponta diferentes de sequenciação de ADN que, com recurso à bioinformática, lhes permitiram analisar e comparar o conteúdo bacteriológico de cada amostra.


As amostras recolhidas de órgãos diferentes do mesmo cadáver eram muito semelhantes entre elas, mas muito diferentes daquelas que foram tiradas dos mesmos órgãos mas de corpos diferentes. Isto pode dever-se, em parte, a diferenças na composição do microbioma de cada cadáver, ou pode ser causado por diferenças no tempo que passou, em cada caso, desde a morte. Um estudo anterior sobre ratos em decomposição mostrou que, embora o microbioma mude drasticamente depois da morte, essa mudança acontece de forma consistente e mensurável. Os investigadores conseguiram estimar o momento da morte, com uma margem de erro de três dias, a partir de cadáveres em decomposição há quase dois meses.

O estudo de Javan sugere que este “relógio microbial” poderá também existir no corpo humano em decomposição. A cientista mostrou que as bactérias chegavam ao fígado cerca de 20 horas depois da morte e que demoravam, pelo menos, mais 58 a espalharem-se por todos os órgãos dos quais foram recolhidas amostras. Ou seja, depois de morrermos, as bactérias podem espalhar-se pelo nosso corpo de forma sistemática e o tempo que as leva a infiltrar-se primeiro num órgão interno e depois noutro, pode fornecer uma nova forma de estimar a quantidade de tempo que decorreu desde o momento da morte.

“O nível de decomposição varia, não só de indivíduo para indivíduo, mas difere também nos vários órgãos do corpo”, diz Javan. “O baço, os intestinos, o estômago e o útero grávido decompõem-se rapidamente, mas por outro lado, os rins, o coração e os ossos sofrem um processo mais lento.” Em 2014, Javan e os seus colegas asseguraram uma bolsa de 200 mil dólares (cerca de 180 mil euros), da Fundação Norte Americana para a Ciência, para continuarem a sua investigação. “Vamos fazer sequenciações e usar a bioinformática de última geração para ver qual o melhor órgão para estimar [o momento da morte] – isso ainda não é claro”, diz ela.

No entanto, uma coisa que parece ser clara é que uma composição bacteriana diferente está associada a estágios diferentes de decomposição.

Putrefação

Entre os pinheiros de Hutnsville, no Texas, encontram-se dispersos meia dúzia de cadáveres humanos em vários estados de decomposição. Os dois corpos mais recentemente colocados têm os braços e as pernas esticados em forma de “X”, perto do centro do recinto, com muita da sua pele solta de tons cinzento e azul ainda intacta, conseguindo ver-se as caixas torácicas e os ossos pélvicos, entre a carne em lenta putrefação. A alguns metros de distância, está outro corpo completamente em esqueleto, com a sua pele preta e dura pegada aos ossos, como se estivesse a usar um fato brilhante de látex com um barrete. Mais além, passando por outros restos esqueléticos remexidos por predadores, encontra-se um terceiro corpo dentro de uma jaula feita de madeira e arame. Está quase no fim do ciclo de morte, parcialmente mumificado. Vários cogumelos grandes e castanhos crescem no que fora outrora um abdómen.

Para a maioria, ver um corpo putrefacto é, no mínimo, desconcertante e, no pior cenário, repugnante e assustador, o tipo de coisa que provoca pesadelos. Mas isto é o dia-a-dia para aqueles que trabalham no Instituto de Ciência Forense Aplicada do Texas. Inaugurado em 2009, o instituto localiza-se numa área de 100 hectares do Parque Nacional da Universidade Estatal de Sam Houston (SHSU). Dentro dessa zona há um terreno de 3,5 hectares densamente arborizado, que foi selado de uma área maior e subdividido, com cercas verdes de arame de 3 metros de altura com acabamentos em arame farpado.


No final de 2011, os investigadores do SHSU Aaron Lynne e Sibyl Bucheli e os seus colegas colocaram no terreno dois cadáveres frescos e deixaram-nos a decompor-se em condições naturais.
A putrefação começa com o início da autodigestão e a saída das bactérias do tubo gastrointestinal. Isto corresponde à morte molecular – a transformação mais acentuada dos tecidos moles em gases, líquidos e sais. Já tinha começado nos estágios iniciais de decomposição, mas torna-se realmente marcada quando as bactérias anaeróbicas entram no processo.

A putrefação está associada a uma viragem acentuada das espécies bacterianas aeróbicas, que necessitam de oxigénio para crescerem, para as anaeróbicas, que não requerem oxigénio. Estas últimas alimentam-se dos tecidos corporais, fermentando os açúcares que neles se encontram para produzir subprodutos gasosos como o metano, o sulfureto de hidrogénio e o amoníaco, que se vão acumulando dentro do corpo, insuflando (ou “inchando”) o abdómen e, por vezes, outras partes.

Isto provoca ainda mais descoloração do corpo. À medida que as células sanguíneas continuam a sair dos vasos desintegrados, as bactérias anaeróbicas convertem as moléculas de hemoglobina, que transportavam oxigénio pelo corpo, em sulfemoglobina. A presença desta molécula no sangue estanque confere à pele o aspeto marmoreado com tons verdes e pretos, característico de um corpo sujeito a decomposição ativa.

O inchaço é frequentemente usado como um marcador da transição entre os estágios iniciais e posteriores da decomposição, sendo que um estudo recente revela que esta transição é caracterizada por uma viragem distinta na composição bacteriana do cadáver. 
 
A pressão crescente dos gases que se vão acumulando dentro do corpo provoca o aparecimento de bolhas ao longo de toda a superfície da pele. A seguir a isto, as longas camadas de pele tornam-se mais flexíveis e começam a “deslizar” ao longo do corpo, que quase não consegue prendê-las à sua estrutura subjacente. Eventualmente, os gases e os tecidos liquefeitos abandonam o corpo, geralmente através do ânus, outros orifícios e, muitas vezes, partes do corpo onde a pele tenha sido rasgada. Às vezes, a pressão é tão grande que o abdómen explode.

O inchaço é frequentemente usado como um marcador da transição entre os estágios iniciais e posteriores da decomposição, sendo que um estudo recente revela que esta transição é caracterizada por uma viragem distinta na composição bacteriana do cadáver.

Bucheli e Lynne recolheram amostras bacterianas de várias partes dos corpos no início e no fim da fase de inchaço. Depois, extraíram ADN bacteriano das amostras e sequenciaram-no.

Enquanto entomologista, Bucheli interessa-se principalmente pelos insetos que colonizam os cadáveres. Ela olha para um cadáver como um habitat especializado de várias espécies de insetos necrófagos, alguns dos quais completam o seu ciclo de vida inteiro dentro, fora ou à volta de um corpo em decomposição.

Colonização

Quando um corpo em decomposição começa a libertar os gases e tecidos liquefeitos presos no seu interior, passa a estar totalmente exposto ao meio que o rodeia. Nesta fase, o ecossistema cadavérico torna-se realmente independente: um centro de atividade para micróbios, insetos e necrófagos.

Duas espécies intimamente ligadas à decomposição são a mosca varejeira e a mosca da carne (e as suas larvas). Os cadáveres libertam um odor nauseabundo, de uma doçura enjoativa, provocado por um cocktail de compostos voláteis que se vai alterando com o avanço da decomposição. As moscas varejeiras detetam esse cheiro, usando recetores especializados nas suas antenas; depois, pousam no cadáver e depositam os seus ovos nos orifícios e nas feridas abertas.

Cada mosca deposita cerca de 250 ovos que eclodem dentro de 24 horas, dando origem a pequenas larvas de primeira fase. Estas alimentam-se da carne putrefacta, transformando-se em larvas maiores, que se alimentam por mais algumas horas, antes de se metamorfosearem de novo. Depois de se terem alimentado durante mais algum tempo, estas larvas maiores, e agora mais gordas, afastam-se do corpo. Aí, passam a pupas e transformam-se em moscas adultas, repetindo o ciclo até não sobrar nada para se alimentarem.

Nas condições certas, um corpo ativamente em decomposição terá um grande número de larvas de terceira fase a alimentarem-se dele. Este monte de larvas gera muito calor, o que faz aumentar a temperatura interna em mais de 10 graus. Como os pinguins a acotovelarem-se no Polo Sul, as larvas individuais dentro do monte estão constantemente a mover-se. Mas enquanto os pinguins se juntam para gerar calor, as larvas movimentam-se para se refrescarem.

Uma compreensão mais aprofundada da composição destas comunidades bacterianas, das relações entre elas e de como elas se influenciam umas às outras, à medida que a decomposição avança, poderá um dia ajudar equipas forenses a perceber melhor onde, quando e como morreu uma pessoa. 
 
“É uma faca de dois gumes”, explica Bucheli, rodeada por grandes modelos de insetos e bonecas de coleção no seu gabinete da SHSU. “Se estiverem nas extremidades, podem ser comidas por um pássaro, mas no centro correm o risco de ficarem cozidas. Por isso estão constantemente a deslocar-se do centro para as pontas e vice-versa.”

A presença de moscas atrai predadores como besouros, ácaros, formigas, vespas e aranhas, que se alimentam e/ou parasitam dos ovos das moscas e das larvas. Abutres e outros necrófagos, bem como animais carnívoros de grande porte, podem também acercar-se do corpo.

Contudo, na ausência de animais necrófagos, as larvas são responsáveis pela remoção dos tecidos moles. Como notou Carl Linnaeus (que concebeu o sistema pelo qual os cientistas nomeiam as espécies) em 1767, “três moscas são capazes de consumir um cavalo tão rapidamente quanto um leão”.

As larvas de terceira fase afastam-se de um cadáver em quantidades maiores, seguindo muitas vezes o mesmo percurso. A sua atividade é tão rigorosa, que os traços migratórios que fazem são visíveis depois de a decomposição ter acabado, na forma de sulcos profundos na terra que emanam do cadáver.

Cada espécie que visita o cadáver tem um reportório único de micróbios intestinais e os solos diferentes albergam, quase sempre, comunidades bacterianas distintas, cuja composição é provavelmente determinada por fatores tais como a temperatura, a humidade, o tipo de solo e a sua textura.

Todos estes micróbios convivem e misturam-se dentro do ecossistema do cadáver. As moscas que pousam no corpo não só depositam os seus ovos na sua superfície, como recolhem algumas das bactérias que lá encontram e deixam outras que trazem consigo. E os tecidos liquefeitos que escorrem do corpo permitem a troca de bactérias entre o cadáver e o solo por baixo dele.

Quando recolhem amostras dos cadáveres, Bucheli e Lynne identificam as bactérias que têm origem na pele do corpo, as que as moscas e os outros animais necrófagos lá deixam e aquelas que provêm do solo. “Quando um corpo está no processo de purga, as bactérias intestinais começam a sair e podemos vê-las em maior quantidade fora do corpo”, diz Lynne.


Por este motivo, é provável que cada corpo tenha uma marca microbiológica única, que pode sofrer alterações com o tempo, de acordo com as condições específicas do local da morte. Uma compreensão mais aprofundada da composição destas comunidades bacterianas, das relações entre elas e de como elas se influenciam umas às outras, à medida que a decomposição avança, poderá um dia ajudar equipas forenses a perceber melhor onde, quando e como morreu uma pessoa.

Por exemplo, a deteção de sequências de ADN, num cadáver, que se sabe serem únicas de um determinado organismo ou tipo de solo, pode ajudar os investigadores criminais a estabelecer uma ligação entre o corpo de uma vítima de homicídio e uma localização geográfica particular, ou restringir mais as suas buscas de pistas, talvez a uma zona mais limitada.

“Tem havido vários casos de tribunal em que a entomologia forense se demarcou realmente e forneceu peças importantes para resolver o puzzle”, diz Bucheli, acrescentando que espera que as bactérias possam facultar informações adicionais, podendo vir a tornar-se mais uma ferramenta para refinar os cálculos que estimam o momento da morte. “Espero que daqui a cinco anos, mais ou menos, possamos começar a usar os dados bacterianos nos julgamentos”, comenta a cientista.

Para este efeito, os investigadores estão a catalogar as espécies bacterianas que se encontram dentro e à superfície do corpo humano e a estudar de que forma é que as populações de bactérias diferem entre indivíduos. “Gostava muito de ter um conjunto de dados desde a vida até à morte”, diz Bucheli. “Gostava de conhecer um dador que me deixasse recolher amostras bacterianas enquanto está vivo, durante o processo da sua morte e na fase da decomposição.”

Purga

“Estamos a olhar para o fluido de purga que sai dos corpos em decomposição”, diz Daniel Wescott, o diretor do Centro de Antropologia Forense da Universidade Estatal do Texas, em San Marcos.

Wescott, um antropologista especializado na estrutura craniana, está a usar um microtomógrafo para analisar a estrutura microscópica dos ossos que foram trazidos do parque. Ele colabora também com entomologistas e microbiólogos – incluindo Javan, que por sua vez esteve ocupada a analisar amostras de solos que estiverem em contacto com cadáveres recolhidos do centro de San Marcos –, bem como com engenheiros informáticos e um piloto, que opera um drone que tira fotografias aéreas do centro.

“Estava a ler um artigo sobre drones que sobrevoavam campos de cultivo para ver quais é que eram mais adequados para serem cultivados”, diz Wescott. “Estavam a observar quase nos infravermelhos, porque os solos organicamente mais ricos são mais escuros do que os outros. Pensei que, se eles conseguiam fazer isso, então talvez nós pudéssemos detetar estes pequenos círculos.”

Um corpo em decomposição muda, significativamente, a química do solo onde se encontra, provocando alterações que podem persistir ao longo de anos. 
 
Esses “pequenos círculos” são as ilhas de decomposição dos cadáveres. Um corpo em decomposição muda, significativamente, a química do solo onde se encontra, provocando alterações que podem persistir ao longo de anos. A purga, ou seja, o vazamento do que resta do corpo dos materiais decompostos, liberta nutrientes para o solo subjacente e a migração das larvas transfere muita da energia do corpo para um ambiente mais amplo. Eventualmente, este processo todo cria uma “ilha de decomposição do cadáver”, uma área com uma elevada concentração de solo organicamente rico. Para além de libertar nutrientes para um ecossistema mais amplo, esta ilha atrai outros materiais orgânicos, tais como insetos mortos e matéria fecal de animais de maior porte.

Segundo uma estimativa, o corpo humano consiste, em média, em 50 a 75 % de água e cada quilograma de massa corporal seca acaba por libertar para o solo 32 gramas de nitrogénio, 10 gramas de fósforo, 4 gramas de potássio e 1 grama de magnésio. No início, este processo mata alguma da vegetação por baixo e à volta do cadáver, possivelmente devido à toxicidade do nitrogénio ou por causa dos antibióticos presentes no corpo, que são segregados pelas larvas dos insetos quando estas se alimentam da carne. Mas, no fim de contas, a decomposição é benéfica para o ecossistema envolvente.

Futuras investigações sobre a forma como os corpos em decomposição alteram a ecologia do seu meio poderão fornecer uma nova forma de encontrar vítimas de homicídio cujos corpos tenham sido enterrados em covas pouco fundas. 
 
A biomassa microbial dentro da ilha de decomposição do cadáver é maior do que em outras áreas próximas. Os vermes nematoides, que estão associados à deterioração e são atraídos pelos nutrientes derramados, tornam-se mais abundantes e a vida vegetal mais diversificada. Futuras investigações sobre a forma como os corpos em decomposição alteram a ecologia do seu meio poderão fornecer uma nova forma de encontrar vítimas de homicídio cujos corpos tenham sido enterrados em covas pouco fundas.

A análise aos solos das campas pode ser outra forma de estimar o momento da morte. Um estudo de 2008, que aborda as alterações bioquímicas que ocorrem numa ilha de decomposição, mostrou que a concentração no solo de fósforo líquido derramado por um cadáver atinge o seu pico cerca de 40 dias após a morte, enquanto o valor máximo de nitrogénio e fósforo extraível acontece 72 e 100 dias depois, respetivamente. Um entendimento mais detalhado deste tipo de processos poderá fazer com que a análise da bioquímica de solos sepulcrais ajude, um dia, os investigadores forenses a estimar há quanto tempo um corpo foi colocado numa cova escondida.

Enterro

Um corpo deixado à mercê das forças da natureza, no calor seco e implacável do verão do Texas, em vez de se decompor totalmente, mumifica. A pele desidrata, rapidamente, ficando presa aos ossos, uma vez completado o processo.

A velocidade das reações químicas envolvidas duplica a cada aumento de 10 ºC na temperatura, o que significa que um cadáver atinge um estado avançado de decomposição após 16 dias, a uma temperatura média diária de 25 ºC. Por essa altura, a maior parte da carne foi removida do corpo, pelo que as larvas podem dar início à sua migração em massa para longe da carcaça.

Os egípcios antigos aprenderam inadvertidamente como é que as condições ambientais afetam a decomposição. No período pré-dinástico, antes de começarem a construir sarcófagos e túmulos elaborados, eles costumavam envolver os mortos em faixas de linho e enterrá-los diretamente na areia. O calor impedia a atividade dos agentes microbiais, enquanto o enterro prevenia que os insetos chegassem aos corpos, o que permitia uma excelente preservação. Mais tarde, começaram a construir os complexos túmulos para os seus mortos para garantir uma melhor vida depois da morte, mas isto tinha um efeito contrário ao esperado – na verdade, separar o corpo da areia acelera a decomposição. 

E por isso inventaram o embalsamamento e a mumificação.

O embalsamamento envolve tratar o corpo com químicos que abrandam o processo de decomposição. Os agentes funerários continuam a estudar até hoje o método egípcio de embalsamamento. 
 
O embalsamamento envolve tratar o corpo com químicos que abrandam o processo de decomposição. Os embalsamadores do Antigo Egito lavavam primeiro o corpo do falecido com vinho de palmeira e água do Nilo, retirando a maioria dos órgãos internos através de uma incisão feita abaixo da mão esquerda, preenchendo-a com natrão (uma mistura de sal que ocorre naturalmente no Vale do Nilo). Usando um gancho comprido, puxavam o cérebro pelas narinas e cobriam todo o corpo com natrão, deixando-o a secar durante 40 dias. Inicialmente, os órgãos secos eram colocados em vasos canópicos e enterrados juntamente com os corpos; mais tarde, eram envolvidos em linho e devolvidos aos corpos. Finalmente, o próprio corpo era envolto em múltiplas camadas de linho, como preparação para o enterro. Os agentes funerários continuam a estudar até hoje o método egípcio de embalsamamento.

Voltando à casa funerária, Holly Williams está a fazer algo de semelhante para que os familiares e amigos possam ver mais uma vez os seus entes queridos, no funeral, tal como eram, em vez de como estão agora. Para as vítimas de acidentes ou mortes violentas, isto pode envolver reconstrução facial extensiva.

Como vive numa terra pequena, Williams já teve de trabalhar com muitas pessoas que ela conhecia ou com quem cresceu – amigos que tiveram uma overdose, que cometeram suicídio ou que morreram atrás do volante. Quando a sua mãe morreu há quatro anos, Williams também tratou um pouco dela, acrescentando alguns toques finais de maquilhagem: “Sempre lhe penteei o cabelo e tratei da maquilhagem quando era viva, por isso sabia exatamente como fazê-lo”.


Ela transfere John para a mesa de metal, tira-lhe as suas roupas e coloca-o em posição. Depois, tira vários frascos pequenos de fluido de embalsamamento de um armário suspenso. O fluido contém uma mistura de formaldeído, metanol e outros solventes; preserva temporariamente os tecidos do corpo, ligando as proteínas celulares umas às outras, mantendo-as no mesmo sítio. O fluido mata as bactérias, prevenindo-as de atacarem as proteínas e usá-las como fonte de alimento.

Williams verte o conteúdo dos frascos para a máquina de embalsamamento. O fluido vem num leque de cores, cada uma correspondendo a uma tonalidade diferente da pele. Ela limpa o corpo de John com uma esponja molhada e faz uma incisão na diagonal precisamente acima da sua clavícula esquerda. Williams “levanta” a artéria carótida e a veia subclávia do pescoço, aperta-as com pedaços de fio, depois introduz uma cânula (tubo fino) na artéria e pequenas pinças na veia para abrir os vasos.
A seguir, ela liga a máquina, bombeando o fluido de embalsamamento para a artéria carótida e ao longo do corpo de John. À medida que o fluido entra, o sangue escorre para fora através da incisão, percorrendo os limites escavados da mesa inclinada de metal até um lavatório grande. Entretanto, Williams pega num dos membros de John e massaja-o com gentileza. “Leva cerca de uma hora a remover todo o sangue de uma pessoa de médias dimensões e substituí-lo com fluido de embalsamamento. Os coágulos sanguíneos podem atrasar o processo, massajar ajuda a quebrá-los e faz correr melhor o fluido.”

Os corpos são, no fim de contas, simplesmente formas de energia, presas por pedaços de matéria, à espera de serem libertadas para um universo mais amplo. 
 
Uma vez substituído todo o sangue, ela faz passar um aparelho aspirador pelo abdómen e suga os fluidos da cavidade corporal, juntamente com quaisquer restos de urina ou fezes que ainda possam restar. Finalmente, Williams cose as incisões, volta a passar uma esponja, ajusta os traços faciais e volta a vesti-lo. Agora, John está pronto para o seu funeral.

Os corpos embalsamados decompõem-se, eventualmente. Quando e quanto tempo demoram a fazê-lo depende, em grande medida, de como foi feito o embalsamamento, o tipo de caixão no qual o corpo foi colocado e como foi enterrado. Os corpos são, no fim de contas, simplesmente formas de energia, presas por pedaços de matéria, à espera de serem libertadas para um universo mais amplo.

Segundo as leis da termodinâmica, a energia não pode ser criada ou destruída, mas apenas convertida numa forma ou noutra. Por outras palavras, as coisas destroem-se, e durante esse processo, convertem a sua massa em energia. A decomposição é uma evocação final e mórbida de que toda a matéria no universo tem de seguir estas leis fundamentais. Somos destruídos, equilibrando a nossa matéria corporal com aquilo que nos rodeia e reciclando-a para o benefício de outros seres vivos.
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Texto de Mosaic Science. Texto: Moheb Costandi; Editor: Mun-Keat Looi; Fact checker: Francine Almash 
Fonte:  http://observador.pt/especiais/isto-acontece-morrermos/ 

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