sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

A luta de Ricardo Piglia para seguir com seu tratamento contra a ELA

Ricardo Piglia em uma imagem de 2014.  

Justiça argentina ordena ao plano de saúde que forneça as doses prescritas ao escritor

— Ele trabalha o tempo inteiro, e está sempre sorridente. É... olha... é um herói. É um herói. Porque essa doença é terrível.

A voz de Beba Eguía, a mulher do escritor argentino Ricardo Piglia, soa segura e taxativa por telefone, de um dos quartos da casa onde vive e que agora define, com certa amarga ironia, como uma “casa aberta”.

— Ricardo não para de trabalhar, de modo que sete pessoas vêm trabalhar com ele, para ajudá-lo. E estão também o enfermeiro, o kinesiólogo. Eu às vezes saio do meu quarto de manhã e o enfermeiro está ali sentado, e não sei quem é. Passa gente o tempo todo. Isso é uma casa aberta. Tipo comunidade — diz Beba e dá uma risada curta e seca.

No mês de setembro do ano de 2013, Ricardo Piglia — autor de um romance fundamental como Respiração Artificial (1982), e um dos mais prestigiosos escritores da língua espanhola — foi diagnosticado com Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), uma doença que, para simplificar, produz uma paralisia muscular progressiva, mas não afeta em absoluto as faculdades mentais. Desde então, seu estado de saúde se deteriorou, mas sua capacidade de produção fez um movimento inverso: depois de publicar o romance O Caminho de Ida, em 2013, deu aulas magistrais pela televisão — Borges por Piglia —, publicou Antologia Personal (uma seleção própria de sua obra de ficção e não ficção; 2014) e La Forma Inicial (conferências e conversas, 2015), e trabalhou na adaptação de Os Sete Loucos, de Roberto Arlt, para uma versão televisiva. Escreve agora uma série de relatos com o comissário Croce, o personagem de seu romance Alvo Noturno, e há poucas semanas seu livro Los Diários de Emilio Renzi foi eleito pelo Babelia, do EL PAÍS, como o melhor do ano. Isso, que poderia ser visto como a gigantesca vontade de um escritor em continuar vivendo em estado de escritura, está em risco. Há alguns meses, com o respaldo de seus médicos argentinos, Piglia iniciou o protocolo de um novo medicamento, chamado GM604, fabricado por um laboratório dos EUA, o Genervon, e que parece ser muito eficaz no tratamento de pessoas com ELA.

— Ele começou com o medicamento em setembro — diz Beba Eguía —, já recebeu duas doses e o resultado foi espantoso. Ganhou peso, pôde sustentar o torso, se movimentar um pouco. Com essa doença a pessoa começa a emagrecer e não há volta, e aqui a doença não avançou e existiram melhoras. Mas para que continue assim, não deve interromper o tratamento, e por isso precisamos obter as doses que faltam.

Há alguns meses, Piglia iniciou o protocolo 
de uma medicação nova de um 
laboratório norte-americano

É aí, entretanto, que os problemas começam. Porque a Medicus, o plano de saúde do qual Piglia é cliente há uma década, se negou, até agora, a pagar esse tratamento cujo total supera os 95.000 dólares (381.000 reais) e que Beba Eguía e Piglia pagaram com dinheiro próprio e a ajuda de amigos. Depois de um gigantesco périplo burocrático, em 15 de outubro de 2015 Beba decidiu entrar com um recurso de amparo no Tribunal Nacional no Civil e Comercial N°8, a cargo do Juiz Iván E. Garbarino, que menos de um mês mais tarde, em 9 de novembro, deu a sentença ordenando que a Medicus pague 100% dos custos da medicação, e deu um prazo de dois dias para fazê-lo. Mas, até agora, a empresa não cumpriu a sentença, alegando que se trata de um medicamento em fase experimental que ainda não tem a aprovação do Anmat (Administração Nacional de Medicamentos, Alimentos e Tecnologia Médica, o órgão responsável por autorizar os medicamentos e alimentos para consumo humano na Argentina). Além do fato de que a sentença da justiça está acima de qualquer regulamentação, a via legal existe e foi, efetivamente, utilizada por Bebo Eguía nas duas ocasiões nas quais importou as doses recebidas.

— Eu o comprei diretamente do laboratório. Pedi a permissão ao Anmat e a recebi, graças a algo que se chama “uso compassivo”. Enquanto eu não o importar para comercialização, não existe problema. Eu paguei, eles me enviaram um pacote via Fedex, e meu sobrinho foi buscá-lo na alfandega. E isso foi tudo. A Medicus poderia fazer o mesmo. Mas não o faz porque não quer fazer.

“Recebeu duas doses e foi assombroso”, 
disse sua esposa. “Para que continue assim, 
deve prosseguir com o tratamento”

Segundo Gilda Martínez, a advogada de Ricardo Piglia, a Medicus também exigiu, para cumprir a sentença, “uma liberação de responsabilidades pelo fornecimento de um medicamento que consideram ilegal, como se a própria sentença da Justiça não os eximisse de fato de qualquer tipo de responsabilidade”. Em um dos documentos apresentados depois da sentença do juiz, o plano de saúde alegou que o fato de precisar comprar o medicamento no exterior, e pagá-lo em moeda estrangeira — o documento foi feito quando o controle cambial ainda estava vigente no país — poderia fazê-lo “incorrer no crime de fuga de divisas”.

Em 4 de janeiro de 2016, o artista argentino Roberto Jacoby, amigo de Piglia, realizou um pedido através da plataforma Change.org para solicitar que o plano de saúde cumpra com a sentença e forneça os remédios de maneira gratuita. Em poucas horas, o pedido reuniu mais de 84.000 assinaturas, o assunto se tornou público e a empresa divulgou, através da consultoria Alurralde-Jasper, um comunicado que dizia que a “Medicus quer esclarecer que deu seu apoio e desde sempre fornece e cumpre com todas as particularidades que o tratamento necessita. O medicamento em questão se encontra em fase experimental nos Estados Unidos e não está disponível para venda na Argentina. (...) e não existe em nosso país um mecanismo de importação e compra verificado de acordo com os padrões nacionais. A Medicus ratifica sua total disposição e vontade de cumprir a solicitação do paciente, considerando as possibilidades técnicas, científicas e as normas de saúde vigentes em nosso país”. O advogado da Medicus foi consultado sem resposta para esse artigo sobre a ambiguidade do texto — que insiste na inexistência do fundamento legal para importar o medicamento, e não se compromete explicitamente em pagar por ele. Beba Eguía também não recebeu, até o momento, comunicação por parte da empresa, mas esta teria manifestado a Gilda Martínez, advogada de Piglia, a vontade de pagar.

O seguro se negou a custear a terapia, de mais 
de 381.000 reais. Ele a pagou com 
a ajuda de amigos

— Eu, até que o veja, não acredito — diz Beba — e minha advogada também não. Com eles tudo é conseguido através de um julgamento. São obrigados a pagar a internação domiciliar, mas Ricardo não recebeu uma cama ortopédica: preciso alugá-la e pagar de meu próprio bolso: 700 pesos (203 reais) por mês. Não me dão uma cadeira de rodas que lhe sirva. A que temos está atada com um cabo de vassoura. Não queriam pagar as vitaminas, alegando que isso não é coberto pelo plano de saúde, quando as vitaminas para uma pessoa como Ricardo são fundamentais, pois ele precisa de proteínas. Não é um capricho. Enviaram enfermeiros que não tinham ideia de como cuidar de uma pessoa em seu estado, que não tinham ideia de como funciona um aparelho respiratório. Ou seja, eles não só não pagam esse medicamento, como me negam até uma cama. Então eu, até que o veja, não acredito. De fato, não existe nada assinado onde se comprometem a pagar os medicamentos.

— E o Estado interveio de alguma forma nesse período, alguém de algum ministério te ligou?

— Ninguém. Ontem ligou alguém do ministério da Saúde, mas não voltaram a se comunicar.

Para pagar as doses já recebidas, Piglia e Beba se viram obrigados a vender alguns dias atrás o lendário estúdio em que ele trabalhava, no Bairro Norte, e onde escreveu boa parte de sua obra. Lá também se encontra sua biblioteca. Mais de 7.000 volumes — sua vida inteira como leitor — que precisará mudar de lugar em pouco tempo.
---------------
REPORTAGEM POR 
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário