segunda-feira, 30 de setembro de 2013

EMPATIZAR

 
“Empatizar é uma forma avant-garde de viajar, em que você se coloca no lugar de outra pessoa e vê o mundo através da perspectiva dela. É uma viagem de Aventura, muito mais desafiadora do que fazer um bungee jumping ou um trekking sozinho pelo deserto.”  


 O Sermão

Antigamente nós procurávamos a religião para buscar uma direção para as nossas vidas. Hoje em dia vamos atrás de jornais, navegamos na internet e não encontramos muitos bons conselhos.

A The School of Life tem uma curiosidade enorme sobre os valores pelos quais vivemos hoje. Para isso convidamos, sempre aos domingos, pensadores, artistas, ativistas, pioneiros nas suas áreas para nos contarem o que eles enxergam como virtudes, vícios e princípios importantes da vida para nos dar ideias práticas de como pensar e agir de maneira diferente.

Os sermões da The School of Life são uma alternativa secular a encontros religiosos. Você encontrará uma comunidade e participará de uma celebração com newsletter, hinos (músicas populares relacionadas ao tema do Sermão), sucos e docinhos.

 Roman Krznaric

Empatia é chave para unir trabalho e felicidade, diz filósofo Roman Krznaric

Roman Krznaric durante palestra em São Paulo: trabalho e felicidade podem andar juntos. 
Mas é preciso correr riscos
Você já se perguntou, no meio da sua jornada de trabalho, “o que eu estou fazendo aqui”? Bem, você não é único. Há uma epidemia de insatisfação com o trabalho se espalhando pelo mundo e ela já chegou ao Brasil. É o que afirma Roman Krznaric, filósofo australiano e um dos fundadores da School of Life, espaço dedicado a cursos focados em informação para qualidade de vida. Roman está no Brasil representando a escola em duas palestras. No último domingo, falou ao público que lotou o Teatro Augusta, em São Paulo. Amanhã estará no Rio, no Teatro Tom Jobim.

“As pessoas estão questionando qual o seu propósito de vida e, assim, repensando o significado do trabalho”, diz Roman, que também é autor de “Como Encontrar o Trabalho da sua Vida” (Editora Objetiva) e está no Brasil para lançar seu segundo título, “Sobre a Arte de Viver” (Editora Zahar).

O materialismo já não é mais suficiente. “É uma escada sem fim. Ganhamos dinheiro, compramos, a nossa felicidade cresce um pouco e rapidamente cai. Logo, esse ciclo se repete sistematicamente”.

Se nos últimos 20 anos a carga horária aumentou significativamente, o dia de alguém que está insatisfeito no emprego será tomado de frustrações. “O problema é que as pessoas têm uma ideia muito errada do que lhes traz felicidade no trabalho. Elas tendem a pensar que ganhar mais dinheiro e galgar posições mais altas fará com que sejam mais felizes”, Roman observa.

Mas o que realmente importa, explica o filósofo, é a qualidade das relações, autonomia, liberdade e respeito. “Essas coisas são essenciais no ambiente de trabalho. Você pode ganhar mais dinheiro, mas se sentir que ninguém lhe nota, se não tiver amigos no trabalho, você será infeliz.”

"Fluir" é a palavra-chave para se ter mais prazer na vida profissional. Ao estar presente, desfrutando os momentos, as horas passarão sem você perceber. Mas não é fácil atingir este estado. Muitas vezes, para chegar lá é preciso enfrentar desafios e sair da zona de conforto. “Temos que enlouquecer de vez em quando”, recomenda.

De joelhos na terra

Não existe emprego perfeito à sua espera lá fora. É tolice achar que acontecerá um milagre. Arriscar-se vale mais a pena, mas não é garantia de sucesso imediato. A história do australiano é prova disso.

Deixar a cadeira de professor universitário para se tornar jardineiro foi bastante libertador (ele também se aventurou como jornalista, carpinteiro e técnico de tênis). Enlouquecido com a burocracia da universidade, Roman pensou que o contato com a terra traria paz para sua vida. No entanto, as coisas não saíram como ele imaginava.

“Achava muito estranho que as pessoas passavam reto por mim quando me viam de joelhos mexendo na terra. Era como se eu fosse uma árvore ou uma pedra. Então percebi que precisava do respeito das pessoas ou me sentiria sem valor. Mas não sabia disso até passar pela experiência”, recorda.

Os pedestres que o ignoraram não souberam se colocar no lugar do jardineiro. Esse é o princípio básico da empatia, um dos conceitos que ele defende para atingir a felicidade no trabalho.

“Para ser um líder, tem que se colocar no lugar dos trabalhadores. Para ter um bom time, é preciso que um entenda o outro. Se não houver cooperação, não funciona. Competição não é suficiente. A cooperação não só faz as pessoas aprenderem a trabalhar juntas, mas também traz criatividade e inovação”, pontua.

Sair de si

No século 21, o individualismo ficou para trás. Roman propõe uma nova ordem mundial: a “outrospecção”, ou a capacidade de sairmos de nós mesmos, em oposição ao mergulho em si mêsmo definido pela introspecção. “Ficamos obcecados para olhar para dentro, para descobrir o que queremos de nossas vidas. Quando na verdade devemos descobrir quem somos a partir do contato com outras pessoas”, diz.

Não importa mais deixar uma marca na história, o que realmente faz a diferença é trabalhar por uma “causa que transcenda” o indivíduo para o coletivo. “Temos que trabalhar por algo maior, pois só para si mesmo não é suficiente. Tudo bem no curto prazo, mas em longo prazo não trará felicidade”.

Para ele, o mundo corporativo começa a entender a importância da cooperação. “O homem era visto como individualista em sua natureza. Sim, nós somos isso. Mas também somos criaturas empáticas, os neurocientistas já comprovaram isso”. 98% das pessoas têm habilidade para criar empatia e colocar-se no lugar de outra pessoa, a fim de entender os pensamentos, sentimentos e experiências do outro.

É a empatia que faz as relações darem certo em casa, no trabalho ou em qualquer lugar. O sentimento é tema do próximo livro do filósofo, com lançamento previsto para o início do ano que vem na Europa. “É a cola social que une tudo”, acredita Roman. Contudo, para o filósofo, vivemos em uma era de déficit de empatia. Um dos fatores para isso é a tecnologia, capaz de tornar as relações mais enfraquecidas e as amizades mais superficiais.

É por isso que Roman luta para a criação do Museu da Empatia, um lugar totalmente experimental para mudar esta cultura. Lá, as pessoas sairão de seus casulos para descobrir o outro e a si mesmos. Perguntado se tinha um conselho prático, Roman recomenda que as pessoas abandonem o “eu” e assumam o “nós”, tanto na vida pessoal quanto na profissional. “Converse com um estranho todos os dias pelo resto da sua vida. A curiosidade por alguém que não conhece é uma das formas mais poderosas de abrir a mente.”
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Por Renata Reif - iG São Paulo
Publicada em 28/09/2013 09:20:44

Foto: Reprodução/iG

‘A escola poderia ensinar a arte de viver’

O filósofo Roman Krznaric atrai públicos numerosos para suas palestras sobre amor, trabalho e vida. Mas, apesar da popularidade, ele dispensa formalidades. Senta-se no sofá do lobby de um elegante hotel na avenida Paulista, oferece um café e começa a falar com as pessoas que ele acabara de conhecer como se fossem velhos amigos. Fala sobre seus dias no Brasil, amigos em comum e já envereda para um de seus temas preferidos: o fato de os sistemas educacionais dos quais fez parte, como aluno ou como professor, não o terem preparado para a vida. “Vamos para a escola ou universidade e não aprendemos sobre as coisas que mais nos preocupam na vida, como a forma de construir relacionamentos, de lidar com problemas familiares ou de escolher a carreira”, diz o australiano que passou parte da vida em Hong Kong e atualmente está radicado em Londres.

É principalmente na capital inglesa que Krznaric tem posto em prática a resposta que ele e um grupo de outras pessoas deram para esse descompasso entre vida e escola. Ele começou na cozinha de casa, convidando amigos, depois amigos de amigos, depois amigos de amigos de amigos, para conversar sobre o amor. Daí, claro, a cozinha ficou pequena e os encontros passaram a ocorrer em locais públicos. Era o início da The School of Life, ou Escola da Vida, instituição que dá aulas, oficinas e cria materiais sobre temas relacionados a trabalho, amor, família, política e diversão e que agora chega ao Brasil para trazer para cá oportunidades de discutir os dilemas do cotidiano.
 
O próximo evento da The School of Life Brazil está marcado para domingo, no Rio de Janeiro, ocasião em que Krznaric vai falar sobre outro tema que lhe é muito caro, a empatia (as inscrições custam R$ 100 ). Ele é tão ligado ao tema que uma de suas maiores ambições na vida é criar o Museu da Empatia, espaço em que estranhos podem tentar se conhecer e estabelecer conexões, um pouco à luz de outra iniciativa que liderou, quando estava à frente da organização Oxfam Muse. Na época, ele promovia encontros um tanto inusitados: chamava grupos heterogêneos – 100 empresários e 100 moradores de rua, por exemplo – e promovia espaços em que representantes de cada um dos grupos pudesse ter conversas pessoais e profundas com desconhecidos sobre suas experiências com as diferentes formas de amor, com a morte ou algum outro tema existencial.

“Primeiro, eu achava que só poderíamos mudar a sociedade por meio de partidos políticos. Mas então eu comecei a entender que a melhor forma de transformar a sociedade era mudando a maneira como as pessoas se relacionam”, disse Krznaric, que além de professor universitário de sociologia e política, já experimentou – e adorou – ser jardineiro, é apaixonado por tênis e gosta de fazer móveis. Dentre os livros que já escreveu, Sobre a Arte de Viver (Zahar) e Como Encontrar o Trabalho da Sua Vida (Objetiva) estão disponíveis em português. Além disso, mantém o blog Oustrospection, em que divide seus pensamentos sobre a empatia e a arte de viver.

Em conversa com o Porvir, Krznaric falou ainda sobre como ele imagina um modelo de escola tradicional que fosse capaz de abordar os assuntos “que realmente importam” e citou modelos bem sucedidos de trabalhos com empatia. Veja os principais destaques da conversa.

“Primeiro, eu achava que só poderíamos mudar a sociedade por meio de partidos políticos. Mas então eu comecei a entender que a melhor forma de transformar a sociedade era mudando a maneira como as pessoas se relacionam”
 
Como começou sua inquietação com os modelos tradicionais de ensino?

Quando eu olho para a minha própria educação – graduação, pós, doutorado – eu a considero um fracasso porque eu não aprendi nela habilidades para a vida. Nós vamos para a escola e não aprendemos sobre as coisas que mais nos preocupam na vida, como a forma de construir relacionamentos, de lidar com problemas familiares ou de escolher a carreira, como pensar sobre a criatividade e seu potencial. Nada disso se aprende nos nossos sistemas de educação. Sempre achei que tinha alguma coisa faltando na minha própria educação.

Na minha jornada pessoal, eu era um acadêmico tradicional, ensinava sociologia na universidade. Mas a burocracia estava me deixando louco. Eu achava que só poderíamos mudar a sociedade por meio de partidos políticos. Mas então eu comecei a entender que a forma de transformar a sociedade era mudando a maneira como as pessoas se relacionam. Na forma como eu e você aprendemos uns com os outros, como nos colocamos no lugar do outro, como agimos com empatia, como você se compreende enquanto pessoa.

Pode dar um exemplo?

Comecei a trabalhar com isso na Oxfam Muse. A ideia era criar momentos de conversa entre estranhos e cruzar limites sociais. Reuníamos 100 empresários com 100 moradores de rua. Os convidávamos para um jantar em qualquer lugar, num museu, num parque. Entregávamos menus. Não menus de comida, mas de conversa. Havia perguntas sobre aspectos humanos universais: o que você já aprendeu com as diferentes formas de amor na sua vida? De que forma você acha que pode ser mais corajoso? A ideia era criar conversas de 1 para 1, em que as pessoas podiam se conectar umas com as outras para ir além do papo superficial.

Fizemos esses encontros também em escolas entre estudantes de diferentes idades, entre professores e alunos… Quando você tem 14 ou 15 anos, você pensa sobre tudo isso. Pode ser que você não tenha a linguagem ou espaço para falar sobre esses assuntos, mas todo mundo é especialista em sua própria experiência.

Qual era o propósito dessas conversas?

Criar conexões. Quando você tem uma conversa legal com alguém, você sente que mudou um pouco, criou-se uma espécie de igualdade. Nas escolas, estamos sempre cercados de estranhos. O que as outras pessoas pensam são pontos obscuros para nós. Em empresas também. O diretor de uma empresa pode não saber que sua secretária é uma exímia cineasta. Existem muitas coisas que não sabemos sobre pessoas que estão próximas e assim se perde muito potencial. Conversas são importantes para abrir a cabeça das pessoas.

Isso foi o início da The School of Life?
Tive muitas conversas com pessoas sobre os diferentes aspectos da vida. Entendi que eu queria dar aulas sobre a arte de viver. Percebi que havia um tipo de educação que ainda não existia. E nós até sabemos muitas coisas sobre vida, amor e morte porque as pessoas estão pensando sobre isso há milhares de anos, mas sempre podemos aprender mais se entendermos o que as pessoas da Grécia Antiga pensavam sobre o amor, o que as pessoas do Renascimento pensavam sobre morte, como as pessoas no oeste africano pensam sobre relacionamentos, o que podemos aprender, que ideias podemos ‘roubar’.

Então você já tinha a ideia e era só começar?
Eu não tinha um lugar. Aí minha mulher sugeriu que usássemos nossa cozinha no sábado seguinte. Chamei uns amigos para discutir, de manhã, como encontrar um trabalho que nos satisfaça e, de tarde, para repensar as ideias sobre o amor. Fui fazendo isso mais vezes e precisei sair da cozinha. Fui para espaços públicos e comecei a desenvolver uma metodologia sobre o que funcionava, que fosse um aprendizado pessoal e significativo. Queria ensinar filosofia grega de um jeito que não fosse só teoria.

Educação para a arte de viver não existe 
para crianças e jovens na maior 
parte dos países.
 
E como foi isso?
Eu e outras pessoas desenvolvemos cursos em cinco grandes áreas da vida: trabalho, amor, família, diversão e política. Passamos um ano pesquisando, pensando, conversando com pessoas para definir essas cinco áreas. Passamos dois anos desenvolvendo materiais, como as aulas seriam – mais do que um professor ir à frente e falar –, como seria a participação das pessoas, os debates, o tamanho das turmas, o material visual. Começamos a The School of Life e foi um sucesso. Mais de 100 mil pessoas já vieram ouvir o que temos para falar. Fomos para outros países do mundo, agora estamos chegando no Brasil e na Austrália e vamos expandir para outros lugares.

Descobrimos uma espécie de ‘fome existencial’ e estamos agora em um momento de inflexão da história. Temos um nível recorde de insatisfação com a vida. As pessoas estão procurando por significado em suas vidas. É por isso que, mesmo que não saibam quem eu sou e o que eu faço, as pessoas comparecem para ver o que eu tenho a dizer sobre repensar o trabalho. Elas querem alguma coisa. A educação moderna está fracassando. Claro, existem muitas organizações como a The School of Life que estão preocupadas com um aprendizado mais significativo, mas ainda é muito pouco. Educação para a arte de viver não existe para crianças e jovens na maior parte dos países.

Como você imagina uma escola que tenha um programa para ensinar a arte de viver?
Imagine que, numa escola regular, uma tarde por semana seja dedicada para a aula de vida, com três componentes. Em um, é o aprendizado tradicional, na sala de aula e ensina, por exemplo, os seis tipos de amor da Grécia Antiga. O segundo seria de conversas. Os alunos sairiam às ruas para falar com estranhos, visitar casas de repouso para cegos. Essas conversas podem ser de muitas maneiras, inclusive on-line, em que se pode ter contato com crianças no Quênia. O ponto é ir além do papo superficial de duas linhas do Facebook. O terceiro componente seria destinado a experiências de diferentes tipos de vida. Poderia ser ajudar alguém a construir uma casa ou um voluntariado com pessoas muito diferentes de você. Eu adoraria ver as escolas oferecerem esse tipo de educação para a vida, mas também adoraria que as escolas ensinassem empatia.

Como funcionaria?
A boa notícia é que 98% das pessoas têm a capacidade de desenvolver empatia, de se colocar no lugar do outro, ver o mundo pelos olhos de outra pessoa. Mas nós nem sempre usamos isso. Os outros 2% são psicopatas, pessoas com alguns tipos de autismo. Alguns acontecimentos na nossa vida erodem nossa capacidade de ‘empatizar’. A outra boa notícia é que empatia é uma habilidade que se pode aprender e se ensinar. Existem diferentes modelos de ensinar empatia. O mais famoso deles é o Roots of Empathy. Para mim ele é o melhor porque ele tem aqueles três passos sobre aprender, conversar e experimentar. Você coloca um bebê no centro de uma roda e as crianças interagem e falam sobre o bebê. Eles têm feito muitos estudos que mostram mudanças no comportamento das crianças. O programa torna as crianças mais empáticas, preocupadas com o outro, colaborativas, mas também as faz melhorar seus resultados em outras áreas, como autoconfiança e resiliência emocional. Mas há outros modelos.
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Fonte:  http://porvir.org/
Foto: deviantART/Fotolia.com

UMBERTO VIAJA NA FICÇÃO E NA REALIDADE





 As muitas histórias e peripécias do funcionário que faz serviços de manutenção da FCM
 
Aliança de chiclete para os noivos, uma volta de três anos com o circo na adolescência, fantasma no hospital. Cordel, comédia, ou realidade? Descontínuo, Humberto Teixeira da Silva emenda suas peripécias cada vez que é chamado para realizar um serviço de manutenção na área de Relações Públicas da Faculdade de Ciências Médicas, segundo o jornalista Edimilson Montalti. Seus argumentos (texto pré-roteiro), pórem, deixam sempre com – como popularmente se diz – a pulga atrás da orelha. Verdade ou ficção? Da forma como se falavam no programa de TV na adolescência: senta que lá vem história.

– Aos 9 anos de idade, minha mãe queimou meus dedos. Porque tive um sarampo muito forte, e ela, achando que eu estivesse morrendo, acendeu vela em minha mão, mas eu via e escutava a conversa. Por outro lado, a gente passava fome e, vendo a preocupação de meus pais, passei a admirar mais o circo; talvez pela vontade de viver no mundo e aliviar a preocupação deles.

Foi então que pensou na possibilidade de um dia pegar carona na boleia do caminhão de uma trupe. Queria ser palhaço. 

Mas na boleia, aos 9 anos, seria difícil. Aos 11, tomou coragem.

– Você não pode ir com a gente, sem seus pais.

Já não sonhava em ser somente de seus pais. Queria ser do mundo. E para o mundo. Conseguiu rodar o Brasil. Sem bilhete, sem pedido, sem desculpa. Mas não na boleia, na carroceria, escondido. Sem medir consequências.

– Isso mesmo, quando tinha 11 anos, chegou um circo. Sei lá, deu vontade. Não foi um “não” para minha mãe. Foi um “sim” para o circo. Aproveitei a distração das pessoas, peguei poucas peças de roupa molhada do varal e coloquei numa sacolinha. Enquanto não me davam a oportunidade de me apresentar como palhaço, comecei a vender balinhas para o público. Foi quando comecei a me virar para viver.

Diz o contador de casos que, não vendo alternativa e nenhuma possibilidade de voltar a Belém, cidade da Paraíba, tão cedo, admitiu-o como assistente de palhaço. E já que queria brincar com a vida, sua e da família, foi fazer graça no picadeiro. 

No circo, aprendeu muito sobre a arte circense, a arte de encenar e tomou gosto por ouvir música clássica:

– Hoje que estou mais assentado, chego a minha casa e ouço música clássica. Também gosto de nostalgia e música romântica. Graças ao circo.

Mãe e pai ficaram sabendo de seu paradeiro somente depois de três anos, quando já tinha 15 anos, e ele bateu à porta com a maior cara lavada. 

– Voltei por impulso. O circo foi para uma divisa da Paraíba com Pernambuco, e eu peguei algumas caronas até chegar a minha casa. Para minha família, eu havia morrido. Fiquei três anos sem dar notícia. Minha mãe chorava e meu pai, ria. Ela não queria mais que eu voltasse, mas ele disse a ela que se eu já havia experimentado, tinha condições de viver sozinho.

Mais seis meses em Belém, para relembrar o que é viver em família, e pé na estrada novamente. Outro circo? Não, não. Dessa vez, tentou girar o Brasil nas cadeiras de uma roda gigante, comendo algodão-doce entre as luzes coloridas do chapéu mexicano e dos carrinhos que se batiam e ouvindo música romântica. Afinal, o que era um parquinho sem os hits românticos da época. 

Para não perder a graça da ficção, não conformado apenas com a assinatura de papéis em cartório, queria viver o ritual de um casamento religioso, com direito a aliança, padre, testemunhas. E filho?
– Sim. Tínhamos 20 anos, e nosso filho tinha três meses. As alianças foram compradas de um “doceiro”, daquelas que vinham grudadas num chiclete. 

Um dos padrinhos, conta Humberto, patrocinou o brinde com caldo de cana.

Coisa de palhaço, ou de contador de histórias? Humberto garante que não, assim como a tentativa de fugir do compromisso.

– Quando fiquei sabendo que ela estava grávida, lembrei que tinha pai e mãe esperando notícias minhas em Belém. Não pensei duas vezes. Mas, como minha irmã morava em Campinas, entrou em contato com meu pai para explicar o motivo de minha viagem. Exigente, ele me mandou de volta para Campinas na hora.

E veio. Sacramentar a união na Capela da Poeirinha, no bairro Rosolém, em Hortolândia, São Paulo. Veio para assumir a família. Trabalhar duro para não faltar nada, até hoje, aos filhos e à esposa, da qual acabou se separando. 

A história com a Unicamp também tem as voltas da boa conversa. Um vaivém que, de acordo com Humberto, terminará na Faculdade de Ciências Médicas, onde aplica tudo o que teve de aprender ao querer fazer carreira solo pelo mundo.

– Aprendi de tudo, principalmente na área de assistência e manutenção em hidráulica, elétrica. Por isso, sempre que um setor está em apuro, faço questão de acompanhar. Aprendi com a faculdade da vida. Como vivia no mundo, não cheguei a concluir o primeiro colegial (ensino médio), mas nunca fiquei sem emprego porque aprendi fazendo. Desde que o auditório da FCM foi inaugurado, faço plantão em eventos, caso ocorra um imprevisto. Seja durante o expediente, seja à noite ou fim de semana. Por isso me aproximei muito do pessoal da área de Relações Públicas. Tenho cursos na área de relações humanas, segurança do trabalho, básico em computação e em eletrotécnica, cabeamento em telecomunicações. Vários pela FCM e alguns antes de entrar na Unicamp.

Tentou fugir do circo, mas este veio atrás dele em Campinas.

– Certa vez, chegou um circo a Campinas, e eu fiz alguns trabalhos para eles. Quiseram me levar, mas minha irmã perguntou se não estava na hora de fixar endereço. Então, não fui.

A imaginação fértil do contador de história se estendia para as brincadeiras com amigos da Guarda Noturna de Campinas, em 1983, em sua primeira passagem pela Unicamp. Na época, a associação responsável pela segurança da Unicamp, e Humberto zelava pelo Instituto de Biologia (IB) no período noturno.

Como forma de conter o próprio medo, no deserto da quase-floresta que circundava o antigo prédio da Biologia, um dos primeiros do campus de Barão Geraldo, adquiriu o “mau” hábito de assustar os colegas. Quem já se perdeu no labirinto da Biologia, como a patrulheira mirim recém-chegada em 1984, ou a zeladora contratada em 1986, pode imaginar como seria circular por aqueles corredores confusos do primeiro instituto da Unicamp.

– Carregava um lençol branco. Naquela época, as pessoas ainda tinham medo de assombração. Mas há quem relate que já viu. Você já ouviu falar? Eu em sempre falei brincando, mas certo dia, uma diretora desceu desesperada do banheiro do auditório por ter visto algo lá.

A julgar pela peripécia, dá para imaginar quem fazia as pessoas acreditar. Até porque, abandonado de vez pelo circo, precisava se alimentar do bom humor enquanto trabalhava, mas sem prejudicar as pessoas. 

– Onde entro, brinco mesmo. E as pessoas aceitam porque só faço brincadeira sadia. Jamais faria algo que prejudicasse o próximo.

Mas enfatiza o gosto das pessoas pelo trágico. Principalmente quando esteve à beira da morte. 

A convivência alegre com os colegas da guarda foi interrompida pela quebra do contrato entre a Unicamp e a empresa de segurança. O rompimento fez com que retomasse o projeto de viajar, mas dessa vez com destino, na poltrona, confortavelmente, porém, sem a delícia de fugir na carroceria do caminhão de circo. O projeto de conhecer o mundo o levou ao Canadá. 

– Fui indicado para permanecer na Unicamp depois do vencimento do contrato com a Guarda, mas ainda tinha aquele gostinho de conhecer outros lugares. Trabalhei em várias empresas, viajei muito, cheguei a ir para o Canadá como pintor industrial de uma empresa de máquinas de celulose. Viajei o Brasil todo, mas no exterior “só” conheci o Canadá.  

Nem o vínculo com as multinacionais fez com que Humberto abrisse mão do bom humor diário. As diversas histórias, algumas até trágicas – como sofrer atentado –, faziam parte da rotina dos amigos, mas a brincadeira não era seu privilégio, pois encontrou mais dois contadores de causos engraçados. Como não podia deixar de ser, o lado empreendedor voltou a ser estimulado, e os três foram fazer free lance em festas e eventos institucionais.

– Ganhamos uma boa grana com isso. Deu para complementar a renda. 

A experiência com manutenção foi adquirida na estrada, ou no ar, e foi trazida para a Unicamp em sua volta, em 1995, como funcionário da FCM, mas prestando atividades no Escritório de Tecnologia (Estec). Em 2002, assumiu o setor de manutenção da faculdade sem dificuldades, garante, pela qualidade do trabalho dos colegas de equipe.

Hoje, para quem optou por viver só, Humberto vive rodeado de amigos, dentro e fora da Unicamp. Afinal, se seguisse, de fato, isolado, iria ter de falar sozinho. Até porque, pelo andar da entrevista, o silêncio não é o que mais o apetece. A não ser quando chega a sua casa, ao fim do dia, e dá voz à música clássica. 

– Agora que tenho 52 anos, estou mais sossegado. Porque nunca fui de parar em casa. Nunca consegui ficar parado. Escolhi me criar no “mundo”, e não me arrependo de nada. No mundo, passei algumas dificuldades, mas menores do que a que passávamos lá em Belém, na Paraíba. Em alguns momentos, me vi sem alguém para me apoiar, mas nunca fui de olhar para trás. Quando quero algo vou até o fim; não sou de ficar em cima do muro. Comecei a vender balas no circo e não precisava mais para viver. Nunca fui de comprar muita roupa. Aprendi muito. Cheguei onde queria. Nunca me envolvi com álcool, droga. Nunca deixei de trabalhar. Há quem duvide de minhas histórias, mas elas aconteceram. 

E então, quem arrisca: realidade ou ficção?
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Edição de Imagens: Diana Melo
Fonte:  http://www.unicamp.br/unicamp/

O SERMÃO DA ESTEPE

 Flávio Ricardo Vassoler*

 

"Gandhi, poderíamos lançar mão da não-agressão contra os nazistas?" - perguntou certa vez uma jornalista inglesa ao líder da independência da Índia. A História relega Gandhi como uma excrescência sempre que precisa lidar – e precisa lidar sempre – com o evangelho segundo Talião. Mas o Gandhi franzino e arqueado interpretado magistralmente por Ben Kingsley conseguiu, ao menos momentaneamente, que o Sermão da Montanha descesse até a estepe de nossa História. Gandhi e sua utopia insinuam que será possível viver para além do choro e do ranger dentes.

Conheçam o soldado Smith, do 171º Destacamento de Contenção Colonial do Reino Unido (DCCRU).

− Soldado Smith, qual o dever do soldado?

Com a continência, a barba, a farda e o coturno devidamente aprumados, o soldado Smith articula ainda uma vez o discurso da servidão voluntária:

− Lutar, senhor, um soldado deve lutar, senhor!

Imaginemos que o 171º DCCRU seja enviado a Índia no imediato pós-Segunda Guerra para conter o exército atípico de Mohandas Karamchand, também conhecido como Mahatma Gandhi (1982), filme dirigido por Richard Attenborough. O soldado se vê em polvorosa, “minha primeira missão além-mar em nome da coroa, God save the Queen, Deus salve a Rainha!” O soldado Smith, engrenagem do algo combalido império colonial inglês – império ao longo de cujo horizonte o sol outrora não se punha, tamanha a quantidade de colônias de leste a oeste do planeta –, o soldado Smith não vê a hora de ensinar lições civilizatórias para “os súditos bronzeados da Grã-Bretanha”.

Olho por olho, dente por dente: um soldado deve lutar – e retaliar. O pelotão de Smith já deixou o encouraçado da Marinha Real e segue até a praia em lanchas amparadas pelos bombardeios dos caças da Royal Air Force, a Força Aérea de Sua Majestade. Cânticos de guerra são entoados, a coronha das metralhadoras colidem contra o chão, urros e mais urros, God save the Queen!, morte aos rebeldes, tiros para o alto, intimidação necessária, “eles estão em maior número, mas nós somos os ingleses, nós somos a civilização!”

Faca entre os dentes, todos temem que as bombas indianas levem o barco a pique, coletes, granadas, “a Índia é um continente, fanáticos em massa, há muitas buchas de canhão, precisamos ser duros, precisamos ser fortes, os soldados devemos lutar!” O soldado Smith e seu pelotão saltam da lancha em direção à praia. Ali, ali, logo ali eles veem os indianos perfilados, todos praticamente sem camisa, corpos bronzes em contraste com a areia bem branca, “eles estão escondendo algo, cuidado, soldados, atenção!” Tiros começam a ser disparados, tiros continuam a ser disparados, indianos tombam sem mais, logo novas fileiras de homens vão ocupando o lugar dos mortos, logo os soldados ingleses se dão conta de que não há retaliação, de que as balas partem apenas dos pescoços metálicos da Rainha, de que os indianos não vão reagir.

− Não, não é possível, mas o que é isso?! São todos mocinhas, onde está a resistência dos soldados, onde está a luta, onde está a guerra?!

O soldado Smith ouve de seu comandante que é preciso avançar ainda mais rapidamente, que é preciso tomar os pontos estratégicos, “logo ali há uma cabeça-de-ponte, é preciso tomar o forte, vamos!” Mas os canhões, outrora dedos em riste contra os invasores, agora estão silenciados. Os ingleses vão se aproximando, mas é preciso diminuir o passo, os indianos não se movem, é preciso diminuir o passo, do contrário o 171º DCCRU passaria por sobre o exército pacifista de Gandhi como um trator. No início do corpo-a-corpo ainda há muitas mortes, baionetas rasgam vísceras, tiros à queima-roupa, nenhum tiro de misericórdia, os ingleses veem os indianos estrebuchar, mas novos “soldados de bronze” tomam a dianteira e continuam a resistir sem lutar, como se a mera presença pacífica denunciasse aos ingleses que eles não estão em casa, que eles bem podem ser convidados, mas que não estão em casa, que, dessa maneira, não são bem-vindos, não são bons hóspedes e denigrem a civilização que dizem defender.

O soldado Smith mal pode acreditar no que vê. “Sempre fui educado para a guerra, ao tapa se responde com um soco, jamais com o perdão, jamais com a outra face!” O soldado Smith, marido de Karen, pai de Melanie e Julia, não pode acreditar em seus olhos, os punhos esfregam a visão para tentar corrigir a realidade, “não é possível, não é possível!” Pela primeira vez em sua vida taliônica, o soldado Smith, cristão anglicano, vê o Sermão da Montanha de Jesus Cristo ser encarnado por não-cristãos, por hindus, muçulmanos, sikhs, tâmeis, por aqueles que não se parecem com o Messias etnocêntrico do Ocidente, o loiro crucificado, e são os “bárbaros” de pele bronzeada que, pela primeira vez, ensinam ao soldado Smith o oferecimento da outra face.

Todos aqueles mortos voluntários – mortos em prol da independência, pacifistas que resistem – escancaram para os ingleses o sadismo do processo colonial. Quando um soco se contrapõe a um chute, agressor e agredido se fundem e se confundem. Mas Gandhi propõe a não-agressão como forma de mostrar ao dominador que a dominação é o grande ultraje, que o senhor está tão aguilhoado quanto o escravo. Não-agressão politicamente orientada. “Não reagiremos e também não trabalharemos. As tecelagens inglesas não podem fazer com que os artesãos indianos morram de fome. Se nossa costa é tão pródiga e vasta como duas arestas de um triângulo, por que a Índia precisa importar sal? É preciso romper o monopólio colonial, mas não pode haver agressões, não pode haver dissensões, não somos apenas hindus, muçulmanos, sikhs, tâmeis e cristãos, somos indianos, somos seres humanos.
Nossa divisão beneficia os dominadores – é preciso cindir para reinar –, permaneçamos unidos, que nossos gritos de dor denunciem aos carrascos e a seus comandantes que a paz consciente é a única (não-)arma contra a submissão”.

Mohandas Karamchand Gandhi, um anarquista.

− Anarquista?! – brada o soldado Smith já em meio a convulsões e síncopes por não saber a quem atingir, por não poder disparar, por não querer disparar, já profundamente atormentado pela dor dos indianos que golpeou, pelo rosto de súplica daqueles que prostrou. O soldado Smith aprendeu a compaixão ao descobrir que, sob a farda do soldado, se esgueira a pele do verdugo. A não-agressão mostra ao agressor o caráter relacional de sua desumanidade. Quando dois se aniquilam segundo as premissas de Talião, a agressão recíproca inviabiliza a consciência para além da vingança. Mas o dorso prostrado e o grito de súplica pedem ajudam, clamam por misericórdia, ensinam a compaixão. “Como é que eu vou beijar minhas filhas quando chegar em casa? Eu não vou mais conseguir fazer amor com a minha mulher!” (A sociopatologia civilizada bem sabe lançar mão de seu braço psiquiátrico para sedar as angústias do ex-soldado Smith, aquele que lidou, em alguns poucos momentos, com a possibilidade de um outro mundo.)

Mohandas Karamchand Gandhi, um anarquista. Que é o anarquismo senão a autoconsciência socialmente totalizada, de modo que o eu se saiba parte indissolúvel do todo sem que para isso precise ser subsumido pela massa que clama pelo Führer Júlio César? Que é o anarquismo senão a introjeção das estruturas de autolimite e reciprocidade para que a cooperação passe a ser base das relações? Gandhi bem sabia que a humanidade precisa caminhar muito para alcançar tal compreensão. Mas Gandhi, o anarquista espiritual, pavimenta a utopia sobre a pressuposição da eternidade. “Assim os homens e as mulheres podem evoluir. Assim poderemos ser outros. Assim poderemos ser nosotros”.

Mas o Sermão da Estepe que Gandhi traz à tona enfrenta todo o tipo de ceticismo e de impossibilidades históricas. Uma jornalista inglesa, admiradora declarada do líder que se apresenta como discípulo, precisa contrapor uma pergunta que a Europa recém-saída das garras de Adolf Hitler não pode silenciar:

− Gandhi, poderíamos lançar mão da não-agressão contra os nazistas?

Gandhi permanece em silêncio. Ele sabe que, após a independência da Índia, será difícil conter a guerra fratricida e religiosa entre hindus e muçulmanos – muçulmanos que ele trata como iguais, como irmãos. Mas a pergunta da jornalista inglesa ainda ressoa. Seria possível oferecer a outra face a Adolf Hitler? Seria possível perdoá-lo? Talvez a prédica de Gandhi insinue que, se Hitler saísse de seu bunker e deixasse de terceirizar a legião de asseclas e verdugos, seria possível sentir a dor conjunta, o pathos conjunto, a com-paixão. Nesse caso, o carrasco não teria que receber o perdão. Antes de mais nada, o carrasco teria a árdua tarefa de perdoar a si mesmo. A História relega Gandhi como uma excrescência sempre que precisa lidar – e precisa lidar sempre – com o evangelho segundo Talião. Mas o Gandhi franzino e arqueado interpretado magistralmente por Ben Kingsley conseguiu, ao menos momentaneamente, que o Sermão da Montanha descesse até a estepe de nossa História. Gandhi e sua utopia insinuam que será possível viver para além do choro e do ranger dentes quando o leitor e a leitora do fragmento abaixo sentirmos que há pureza e elevação na súplica do algoz para além da ironia cáustica. Senão, vejamos:

O condenado sobe ao cadafalso.

Apupos da multidão sedenta.

Sob a máscara, o carrasco o espera.

O condenado deve ajoelhar-se.

O condenado deve acoplar o pescoço ao talhe de madeira.

Tão logo o condenado estique os braços trêmulos, o machado despencará.

Logo, já não haverá choro e ranger de dentes.

Antes de içar a lâmina, o algoz suplica ao condenado:

– Você me perdoa?
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(*) Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios). Todas as segundas-feiras, às 19h, apresenta, ao vivo, o Espaço Heráclito, um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses – para assistir ao programa, basta acessar a página da TV Geração Z: . Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.
Fonte: Carta Maior on line, 29/09/2013

domingo, 29 de setembro de 2013

Vattimo e a necessidade de nos libertamos da verdade como “última idolatria”.

  Entrevista especial com Thomas Guarino

Depois de Nietzsche e Heidegger, não podemos simplesmente “retornar” à fé religiosa, observa Thomas Guarino refletindo sobre a obra do filósofo turinense. É preciso surgir algo novo considerando a ênfase filosófica contemporânea na historicidade e provisoriedade

 “As pretensões de verdade absoluta devem ser enfraquecidas, de forma que se possa construir um etos contemporâneo baseado na caridade e na tolerância da pluralidade. Na verdade, Vattimo nos diz que devemos nos libertar de nossa última idolatria, a ‘adoração da verdade como nosso Deus’”. A afirmação é do teólogo norte-americano Thomas Guarino, na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line.

Por outro lado, o pensador turinense sustenta que “não podemos simplesmente ‘retornar’ à fé religiosa, como se nossos olhos não tivessem sido abertos por Heidegger e Nietzsche”.

Não há na obra vattimiana um interesse em “recuperar a fé religiosa ortodoxa. Na verdade, ele acredita que, se a fé religiosa insistir na ortodoxia tradicional, arriscar-se-á a afundar numa senescência cultural. Ele acha, pelo contrário, que algo novo deve surgir dada a ênfase filosófica contemporânea na historicidade e na provisoriedade”.

E completa: “Penso que a ênfase de Vattimo no pluralismo e na tolerância deveria ser aplaudida. Nesse sentido, pode-se de fato acolher a secularização. Entretanto, o perigo de sua posição é que ela, em última análise, degenera em niilismo, ou seja, a afirmação de que qualquer ênfase na verdade fixa, estável e objetiva é opressiva e restritiva, e, portanto, inimiga da liberdade humana. Para Vattimo, unicamente o niilismo — entendido como o fim de todas as estruturas fixas e verdades objetivas — é emancipação”.

Thomas Guarino é graduado em Teologia pela Seton Hall University, em New Jersey, Estados Unidos, mestre em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e doutor em Teologia Sistemática pela Catholic University of America. É professor de Teologia na Seton Hall University, em South Orange, New Jersey, nos Estados Unidos. Suas pesquisas se concentram na fronteira entre Teologia e Filosofia e é autor de, entre outros, Foundations of Systematic Theology (London: T & T Clark International, 2005) e Vincent of Lerins and the Development of Christian Doctrine (Grand Rapids: Baker Academic, 2013).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em que aspectos a obra de Gianni Vattimo estabelece nexos entre teologia e filosofia?
Thomas Guarino - Gianni Vattimo é um pensador criativo que, ao longo dos anos, tem dado maior atenção a questões teológicas. Esta atenção tem se dado de diferentes formas: 1) ele aplicou sua ideia característica, a do “pensamento fraco” (pensiero debole), a todas as ideologias, questionando, desse modo, o tipo de racionalismo agressivo que não encontra espaço para a religião na vida pública (isto é, o chamado “novo ateísmo” de Dawkins , Hitchens e outros); 2) reinterpretou a noção cristã clássica de kenosis (o esvaziamento de Deus na encarnação) para desenvolver a ideia de uma renúncia ao poder e à autoridade por parte de Deus; 3) entendeu o conceito tradicional de caritas (amor ou caridade) com o sentido primordial de tolerância para com toda posição intelectual e moral (excluindo as posições violentas); 4) usou a compreensão do “sagrado natural” (desenvolvida por René Girard ) para criticar a noção de direito natural tradicionalmente empregada no ensino moral católico; e 5) sustentou que a “secularização” é a consequência natural da caridade cristã.
Desse modo, Vattimo estabeleceu criativamente relações entre a filosofia contemporânea e a teologia. A meu ver, deve-se admirar este autor por buscar um caminho entre as opções do iluminismo típico da Aufklärung, por um lado, e do fundamentalismo religioso, por outro. Não obstante, permanecem questões significativas e ainda não resolvidas a respeito da adequação da filosofia de Vattimo para o cristianismo contemporâneo, questões que levanto em Vattimo and Theology (London: T & T Clark International, 2009).

IHU On-Line - Em que medida as ideias de Vattimo apresentam novos desafios para o pensamento cristão?
Thomas Guarino - A filosofia de Vattimo visa questionar o cristianismo e, na verdade, toda e qualquer forma de pensamento que sustente que certos princípios são verdadeiros. O que quero dizer com isso? Como já mencionei, uma das ideias características da filosofia de Vattimo é a do pensamento fraco ou pensiero debole. Por meio desse termo ele quer dizer que a razão deve ser reconstruída de uma forma pós-moderna, ou seja, precisamos evitar afirmações agressivas sobre o “certamente verdadeiro”, o “realmente real” e a “objetividade absoluta”.
Vattimo sustenta que “prova” e “garantia” não deixam de ser conceitos problemáticos e não estão prontamente disponíveis para resolver toda e qualquer questão. Pelo contrário, lembra-nos de que o mundo não é simplesmente “dado” a nós como um mundo puro, como uma realidade não interpretada. Em consequência, ele desafia a todos — teólogos cristãos, cientistas ou os novos ateus — a examinar suas pressuposições fundamentais: será que todo o mundo está tão certo assim da verdade de suas respectivas premissas? Ou será que a verdade somente é mediada através de uma variedade de pressuposições socioculturais e históricas? Em certo sentido, Vattimo busca nos alertar a respeito de concepções sustentadas dogmaticamente que podem beirar uma espécie de totalitarismo arrogante, de ausência de caridade para com outras pessoas.

IHU On-Line - Por que a análise de Vattimo sobre o niilismo nietzschiano possibilita um diálogo com a teologia contemporânea?
Thomas Guarino - Via de regra, Nietzsche não tem sido considerado um parceiro de diálogo valioso para a teologia, ou para o pensamento religioso em geral. Porém, creio que a devoção de Vattimo ao niilismo nietzschiano tem uma contribuição a dar à teologia cristã.
Em primeiro lugar, deveríamos lembrar que a teologia tem um longo histórico de diálogo com os mais diversos pontos de vista, mesmo com aqueles que se opõem especificamente à fé cristã. Por exemplo, Orígenes , um cristão de Alexandria que viveu no século III, disse o seguinte sobre o escritor antigo Celso, que era um inimigo resoluto da fé cristã: “Somos cuidadosos para não levantarmos objeções a quaisquer bons ensinamentos, mesmo que seus autores estejam situados fora da fé, nem para procurarmos ocasião para uma disputa com eles, tampouco para encontrarmos uma forma de derrubar afirmações que sejam sólidas” [Contra Celso, VII, 46]. Orígenes (e teólogos posteriores a ele) justifica esta assimilação cuidadosa de todos os pensadores ao se basear (simbolicamente) no relato bíblico que se encontra no livro do Êxodo: os filhos de Israel tomaram “despojos dos egípcios” (12,35-36). E usaram esses “despojos” para finalidades relacionadas ao serviço de Deus.
Em segundo lugar, a obra de Nietzsche (assim como a de Vattimo) nos lembra da complexidade da verdade. Como mencionei acima, Vattimo contesta pretensões fortes e agressivas em relação à objetividade, perguntando se a “verdade” e as garantias ou provas que a apoiam são conceitos não problemáticos. A internet oferece um exemplo atual daquilo a que tanto Nietzsche quanto Vattimo se referem. Podemos fazer uma série de perguntas à internet: O que é a vida boa? Qual é a natureza da humanidade? Existe um Deus? Sabemos alguma coisa sobre ele? A essas perguntas receberemos um número infinito de respostas, uma variedade extraordinária de interpretações. É precisamente isso que Nietzsche queria dizer quando disse: Não há fatos, somente interpretações!
O aspecto que quero destacar é o seguinte: o niilismo nietzschiano desafia a teologia — e, de fato, todas as formas de pensamento — a ser cuidadosa quanto à complexidade da verdade. A teologia não concorda, e não pode concordar, com a opinião de Nietzsche de que a verdade é que não há nenhuma verdade. Mas a teologia certamente pode ter respeito pela complexidade da verdade e pela importância de se evitar uma espécie de literalismo ou fundamentalismo.

IHU On-Line - Por outro lado, como as ideias do pensador italiano contribuem para pensarmos em uma cultura da tolerância no século XXI?
Thomas Guarino - Um dos pontos fortes da filosofia de Vattimo é seu desejo de desenvolver uma cultura de tolerância entre todos os povos. É claro que isso está diretamente relacionado com sua noção de pensiero debole ou pensamento fraco. As pretensões de verdade absoluta devem ser enfraquecidas, de forma que se possa construir um etos contemporâneo baseado na caridade e na tolerância da pluralidade. Na verdade, Vattimo nos diz que devemos nos libertar de nossa última idolatria, a “adoração da verdade como nosso Deus”. É por isso que ele gostaria de reverter o axioma tradicional: Amicus Plato sed magis amica veritas (Platão é amigo, mas a verdade é mais amiga). Na medida em que a verdade é efêmera e epifânica, dissolvida em interpretações policêntricas, é compreensível que Vattimo preferisse dizer: Amica veritas sed magis amicus Plato (A verdade é amiga, mas Platão é mais amigo).

Como um exemplo da ênfase atual na caridade (em lugar da verdade), Vattimo cita as visitas dos papas a diferentes cidades ao redor do mundo. Por exemplo, os meios de comunicação relataram que o Papa Francisco concluiu sua recente visita ao Rio de Janeiro com uma missa onde estiveram presentes um número enorme de fiéis, talvez 3 milhões de pessoas. Vattimo diz que não deveríamos nos enganar com essas grandes multidões. Ninguém acredita que todos os integrantes da multidão de pessoas de boa vontade concordem com o pontífice a respeito de questões morais e doutrinais. As multidões estão lá para, primordialmente, aplaudir a conclamação do Papa à amizade universal, a um entendimento comum entre os povos e à caridade para com todos os homens e mulheres. De novo, o mais importante é a caritas, e não a veritas.

Imagem e semelhança
Em termos de suas contribuições, Vattimo destaca com razão que o homem e a mulher contemporâneos estão cansados dos paroxismos de violência decorrentes de identidades étnicas e religiosas agressivas. A humanidade busca criar sociedades onde a paixão pela verdade não produza intolerância, e sim onde reine um profundo respeito pela dignidade e pela liberdade humana. É claro que a questão duradoura é esta: como garantimos o desejo contemporâneo de dignidade e liberdade humana? É pelo pensiero debole? Ou seria aderindo, de maneira cada vez mais vigorosa, à crença de que todas as pessoas são criadas, como ensina o livro de Gênesis, à imagem e semelhança de Deus?

IHU On-Line - Qual é a contribuição da análise de Vattimo para compreendermos o niilismo e os desafios e oportunidades que são colocados à religião na pós-modernidade?
Thomas Guarino - Inicialmente, devo dizer que Vattimo não se sente inteiramente à vontade com o termo “pós-moderno”, pois este pode dar a impressão de que ele — e a filosofia contemporânea de modo geral — não reconhece as conquistas da modernidade. Vattimo insiste que não podemos simplesmente superar (Überwindung) a época moderna que nos precedeu. Ele prefere o termo Verwindung, uma palavra que tem suas raízes no pensamento de Martin Heidegger e indica uma cura que é, ao mesmo tempo, uma torção e uma alteração. O aspecto central é o seguinte: não podemos simplesmente rejeitar qualquer época que tenha nos precedido; precisamos “recebê-la” e repensá-la em nossos próprios termos.
Lembrando-nos desse esclarecimento, podemos falar de Vattimo como filósofo pós-moderno. E, de fato, a pós-modernidade oferece oportunidades para o pensamento religioso. Como isso pode ser verdade? Um dos pontos fracos da modernidade foi sua tendência ao racionalismo agressivo, a tentativa do iluminismo de limitar a racionalidade aos cânones do empirismo e do positivismo, reduzindo, assim, a verdade à metodologia associada com a investigação científica. A religião foi afastada da vida pública sob a alegação de que ela fomenta necessariamente o dogmatismo e a intolerância.

Racionalidade iluminista
Entretanto, Vattimo e a pós-modernidade sustentam que essa atitude imperiosa do pensamento moderno foi entrementes desmascarada como sendo profundamente deficiente. A própria modernidade tem, às vezes, fornecido um pensamento forte e intolerante, que desvaloriza a verdade mediada pelas artes, pela tradição e cultura, assim como pela religião. Essas deficiências da racionalidade iluminista têm sido fortemente criticadas em nossa era contemporânea, abrindo, com isso, a porta para se reconhecer o valor legítimo da teologia e da crença religiosa. A religião, na medida em que é uma interpretação entre outras do mundo, não tem menos valor do que a interpretação do mundo feita pela ciência. As duas tentam compreender e dar sentido à vida.

IHU On-Line - A partir dessa análise, o que poderíamos compreender por fé pós-moderna?
Thomas Guarino - Ah, esta é a pergunta essencial: que tipo de fé religiosa é permitido na visão de Vattimo a respeito da pós-modernidade? Se a modernidade racionalista não pode mais ser autoconfiante em suas pretensões para com a verdade, então, diz Vattimo, tampouco o pode a religião. Exatamente aqui é onde devemos lembrar a ênfase do pensador turinense no pensamento fraco.
Vattimo sustenta que não podemos simplesmente “retornar” à fé religiosa, como se nossos olhos não tivessem sido abertos por Heidegger e Nietzsche. Esses dois filósofos nos mostraram que a “verdade” está profundamente emaranhada dentro da história. Portanto, a verdade não pode ser entendida como sólida e imutável, mas sim como epifânica — intrinsecamente ligada à temporalidade. Em consequência, qualquer redescoberta contemporânea da fé religiosa não pode acarretar a doutrina e moralidade tradicional. Pelo contrário, as afirmações religiosas dogmáticas, com sua insistência na “certeza” e “caráter definitivo”, são, de modo preeminente, representativas do pensamento forte, agressivo. Tais afirmações não conseguem compreender o caráter provisório e contingente que envolve e satura todos os aspectos da vida humana.
É óbvio, portanto, que Vattimo não está interessado em recuperar a fé religiosa ortodoxa. Na verdade, ele acredita que, se a fé religiosa insistir na ortodoxia tradicional, arriscar-se-á a afundar numa senescência cultural. Ele acha, pelo contrário, que algo novo deve surgir dada a ênfase filosófica contemporânea na historicidade e na provisoriedade. Essa é uma razão por que Joaquim de Fiore, um pensador profético e esotérico do século XII, ocupa uma posição proeminente no pensamento religioso de Vattimo.

IHU On-Line - Qual é a pertinência do pensamento fraco ante essa fé pós-moderna?
Thomas Guarino - Do ponto de vista de Vattimo, a fé religiosa pós-moderna deve reconhecer que suas pretensões para com a verdade são “fracas”, isto é, deveria propor a si mesma como simplesmente uma interpretação do mundo entre outras, não como a interpretação última ou “objetiva”.
De novo, precisamos nos lembrar de que a fé pós-moderna não é uma recuperação da crença tradicional. Embora a pós-modernidade sancione o discurso religioso, este mesmo discurso é, agora, profundamente reinterpretado. Por exemplo, a palavra caritas, no discurso cristão tradicional, designa o amor sobrenatural derramado por Deus nos corações dos crentes. Entretanto, para Vattimo a “caridade” é melhor compreendia como tolerância de um vasto pluralismo, do “pensamento fraco” aplicado a todo e qualquer ponto de vista. É a tolerância o que constitui a nova mensagem religiosa, e não qualquer pretensão de se ter a verdade objetiva a respeito de Deus.
Outro exemplo: para os cristãos, kenosis se refere à encarnação, em que o Filho de Deus eterno se torna homem em prol da salvação humana. Para Vattimo, no entanto, o evento da kenosis é simplesmente uma parábola que se refere à dissolução da transcendência divina. O fim da autoridade divina (e das normas morais e doutrinais divinamente sancionadas) está unido à renúncia a pretensões de verdade e objetividade por parte da filosofia contemporânea.
Em última análise, os cristãos irão provavelmente rejeitar várias das concepções de Vattimo, uma vez que ele parece reduzir o cristianismo a uma mera fábula sobre a “fraqueza” de Deus, sem qualquer percepção dos acontecimentos históricos concretos da história da salvação que se desdobraram no antigo de Israel e em Jesus de Nazaré.

IHU On-Line - Quais são os perigos que você detecta em “Vattimo and theology” sobre o caminho que leva além do secularismo?
Thomas Guarino - Vattimo pensa que as pessoas religiosas não deveriam se opor à secularização, mas reconhecê-la como o triunfo da fé cristã. Por quê? De acordo com o pensador de Turim, a secularização é o desdobramento, na história, da noção cristã de caritas. Quer dizer, a caridade (entendida aqui como tolerância) significa que há espaço para todos na praça pública, não importando sua crença (ou a falta de crença). Assim, a secularização é a consequência dinâmica da caridade ou do amor cristão para com as outras pessoas, sendo que a sociedade agora se abre virtualmente a todos os pontos de vista. Há uma renúncia à objetividade e à certeza em favor de um vasto e abrangente pluralismo.
Penso que a ênfase de Vattimo no pluralismo e na tolerância deveria ser aplaudida. Nesse sentido, pode-se de fato acolher a secularização. Entretanto, o perigo de sua posição é que ela, em última análise, degenera em niilismo, ou seja, a afirmação de que qualquer ênfase na verdade fixa, estável e objetiva é opressiva e restritiva, e, portanto, inimiga da liberdade humana. Para Vattimo, unicamente o niilismo — entendido como o fim de todas as estruturas fixas e verdades objetivas — é emancipação. Portanto, uma insistência em qualquer tipo de doutrina religiosa ou verdade moral se torna o oponente irremediável e ameaçador da liberdade humana prometeica. É por isso que Vattimo gosta de citar a afirmação de Nietzsche, em Vontade de potência (Rio de Janeiro: Contraponto, 2008), de que a humanidade está inteiramente desenraizada, “rolando do centro em direção a X”.

IHU On-Line - Em que sentido se pode falar num retorno da religião na Europa e que tensionamentos surgem daí frente ao fundamentalismo ateísta de Dawkins, Dennet, Hitchens e Onfray?
Thomas Guarino - Eu diria que a Europa, junto com o resto do mundo, descobriu os limites do racionalismo científico. A modernidade tem muitas realizações, porém a tentativa de impor o positivismo em todos os quadrantes da experiência humana foi um fracasso horroroso. Há uma profunda dimensão religiosa na vida humana que é universal e inegável. O Papa Bento XVI , na conhecida alocução que proferiu em Regensburg, em 2006, indicou com razão que a religião não pode proceder sem a razão, mas a razão tampouco pode proceder sem considerar a fé. Na ausência da conjunção da razão e da religião, as patologias da sociedade se multiplicam.
A obra de Vattimo é útil porque oferece uma crítica sólida da modernidade ingenuamente racionalista do iluminismo que, em nome da “razão”, tirou a religião do espaço público, tentando desesperadamente reduzir a mais abrangente e fundamental realidade a uma questão privada e cognitivamente vazia. O pensamento do turinense deveria ser valorizado por desmascarar a colonização da vida por parte de uma razão secular imperiosa em nome de uma suposta racionalidade esclarecida. Os autores que você menciona mostram claramente que alguns ainda esperam por um recrudescimento da modernidade que exclua a religião de todos os aspectos da vida pública.

Atração pela transcendência
O pensamento de Vattimo é altamente criativo e merece um estudo continuado. Trata-se de um filósofo contemporâneo significativo que está buscando legitimamente alguma via media (meio termo) humanitária entre um objetivismo rígido e uma anarquia caótica.
Não obstante, eu advertiria quanto ao fato de ele se basear profundamente nas filosofias de Nietzsche e Heidegger. Para Vattimo, assim como para Heidegger, a verdade é epifânica e evanescente, e não constante e durável. Estamos “presos”, por assim dizer, no fluxo radical da historicidade. Por conseguinte, a noção do cristianismo de Vattimo é altamente não ortodoxa (como ele admite abertamente). Em última análise, ele dilui e dissolve os acontecimentos reais da história da salvação em meras parábolas sem solidez histórica. Isso não é outra coisa do que a clássica suprassunção (Aufhebung) hegeliana da religião pela filosofia, através da qual as dimensões concretas da fé religiosa são anuladas e apagadas por uma consciência filosófica mais elevada. Nesse sentido, Vattimo é muito mais “moderno” do que ele mesmo admite.
A despeito destas importantes restrições em relação à filosofia de Vattimo, quiçá possamos concluir nossas reflexões observando que, em seu pensamento, há uma profunda atração pela mensagem bíblica de um Deus vulnerável e amoroso que se revela na história da encarnação — mesmo que o turinense não se permita qualquer compromisso “forte” com a existência real de um Criador. Em última análise, creio que percebemos na obra de Vattimo algo do famoso comentário de Santo Agostinho nas Confissões, “fecisti nos ad te et inquietum est cor nostrum donec requiescat in te” (tu nos fizeste para ti e nosso coração permanecerá inquieto até que repouse em ti). Como reconheceu Agostinho, os seres humanos têm corações e mentes que permanecem incessantemente atraídos pela transcendência.
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Fonte: IHU on line, 29/09/2013
Foto: http://bit.ly/19MqXc8

A INVEJA

Rubem Alves*
Jonatas era um menino esperto. Ele percebeu que nas estórias do Mestre Benjamin estava faltando uma explicação. Se Deus fez um mundo tão bonito, jardim, paraíso, que aconteceu para que ele tivesse ficado como estava, cheio de sofrimento? O que foi que estragou a obra do Criador? E foi com a pergunta de um menino que se iniciou a sessão de estórias do dia seguinte. São sempre as crianças que fazem as melhores perguntas. Mestre Benjamin fechou os olhos, pensou longamente e começou:

“No meio do Jardim, entre todas as árvores frutíferas, havia uma árvore da qual pendia um fruto azul. ‘Todas as árvores do Paraíso são para o seu prazer’, disse Deus. ‘Delas poderão comer livremente.

Mas cuidado com o fruto azul... Dentro dele mora um verme. O verme é venenoso. Se morderem o fruto azul o verme os picará. Os olhos daqueles que são picados pelo verme fazem apodrecer tudo aquilo em que eles tocam. Os olhos são a lâmpada do corpo. Se os olhos forem bons, o mundo será belo. Se os olhos forem maus, o mundo será sinistro. O Paraíso mora dentro dos olhos. Estava certo o místico Ângelus Silésius quando disse que ‘quem não tem o Paraíso dentro jamais o encontrará fora’. O Paraíso não deixará de existir. Mas os olhos não mais o verão. E então, ao invés do Paraíso, os olhos verão um mundo mau. E não o amarão. E não o protegerão. E não encontrarão nele paz de espírito. Bem disse o nosso poeta Walt Whitman que ‘a terra continua partida e podre só para aquele ou aquela que está partido e podre.’”

Mas o fruto azul era mais belo e mais sedutor que todos os outros. O seu nome é “Inveja”.
E a curiosidade foi mais forte que o medo.
E comeram do fruto azul.
E o verme da Inveja os picou.
E seus olhos se abriram para um outro mundo que não deveriam ver.
E olhando para si mesmos perceberam que já não eram mais crianças. Haviam se transformado em adultos.
E viram que estavam nus.
E tiveram vergonha um dos olhos do outro.
E cobriram-se então com aventais de folhas de figueira para que sua nudez não fosse vista.
E o Paraíso se transformou num cemitério e vive agora no coração dos homens apenas como uma nostalgia indefinível por uma felicidade perdida...

Vejam a tristeza que existe nas palavras de William Blake, um poeta que tinha o Paraíso no seu coração:

“Fui andar pelo Jardim do Amor,
e o que vi não era o que eu esperava:
Vi uma Capela erguida no lugar
Onde antes, no gramado, as crianças brincavam.
Seu portão fechado estava
E nele, escrito: Interditado.
Para o Jardim do Amor corri então
Onde antes tantas flores se abriam.
Mas encontrei, ao invés das flores, sepulturas,
E lápides frias espalhadas.
Sacerdotes em vestes negras vigiavam
E com espinhos os risos e alegrias proibiam.”

O Paraíso continua a existir como esperança, nas palavras dos poetas. O corpo come pão para poder andar. Mas, para poder voar, é preciso ter asas... A poesia são as asas da alma. “ A poesia, a mais humilde, é serva da esperança”... (Adélia Prado).

Vagarosamente todos saíram da tenda repetindo as palavras e esforçando-se por não esquecer: “A poesia é serva da esperança, a poesia é serva da esperança, a poesia é serva da esperança”. E foi repetindo esse mantra que adormeceram sonhando com o futuro.
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* Educador. Escritor. Teólogo.
Fonte: Correio Popular on line, 29/09/2013
Imagem da Internet


"Eu não sou um daqueles esquerdistas loucos"

Entrevista - Slavoj Zizek
 

O filósofo contra o relativismo cultural 
RESUMO Autor de novo livro sobre o totalitarismo, o esloveno relativiza a sua crítica à democracia liberal, dizendo que ainda é melhor ser controlado nos EUA do que na China. Dizendo-se excluído da grande mídia por ser taxado de radical, afirma que não se pode comparar a União Soviética de Josef Stálin à Alemanha de Adolf Hitler. 

RICARDO MIOTO
 
O FILÓSOFO ESLOVENO Slavoj Zizek, 64, conhecido tanto pelo jeito informal quanto pelo elogio à violência como forma de ação política, diz ser mal interpretado quando tomado como um defensor do terrorismo ou crítico ferrenho à social-democracia. 

Em entrevista à Folha, ele critica a opressão nos países ocidentais, demonstrada pelas revelações sobre espionagem, mas também o relativismo cultural da esquerda. 

Lançando agora "Alguém Disse Totalitarismo? Cinco Intervenções no (Mau) Uso de uma Noção" [trad. Rogério Bettoni, Boitempo, R$ 39, 184 págs.], Zizek defende ainda a dissociação entre a violência na Alemanha nazista e na União Soviética sob Stálin. Para o filósofo, o caso soviético foi um desdobramento trágico de um propósito original nobre, enquanto os nazistas sempre desejaram aquilo que colheram. Leia a seguir trechos da entrevista.
-
Folha - O senhor faz uma crítica muito forte à democracia liberal. Diz, no novo livro, que os partidos de esquerda erraram ao aceitá-la e que não tem medo de ser visto como antidemocrático ou totalitário.
Slavoj Zizek - Veja bem, não estou dizendo que a democracia liberal seja algo ruim. Claro que eu prefiro isso a uma ditadura aberta. Mas a democracia liberal tem as suas limitações.
Em primeiro lugar, seus mecanismos tradicionais não são fortes o suficiente para controlar problemas ecológicos e econômicos.
Em segundo, veja o que as revelações recentes sobre espionagem nos dizem. É fácil ver o jeito como somos oprimidos e controlados em um Estado abertamente autoritário, como a Rússia ou a China. Se alguém diz "na China, nossa liberdade é limitada", meu Deus, você está falando o óbvio!
Mas o fato é que, na democracia liberal, também somos muito controlados e oprimidos, embora a maioria das pessoas tenha a sensação de que suas vidas são livres.
Isso não quer dizer que todo controle seja igual. Claro que, nesse sentido, prefiro os EUA à China. O que teria acontecido com Bradley Manning [soldado do Exército americano condenado por vazar documentos ao Wikileaks] se ele fosse chinês ou russo? Na China, teriam prendido até a sua família. 

Qual seria a alternativa às democracias liberais?
Bom, não é um problema simples. Não concordo com quem diz que bastaria que um Hugo Chávez assumisse o comando e tudo se resolveria... Não é só uma questão de imperialismo americano ou algo assim, é toda nossa organização social, tecnológica.
Você vai se surpreender, mas sou contra ficar esperando uma revolução. O Brasil, apesar de todas as limitações, mostra que é possível melhorar as coisas. Se os pobres estão melhor, se a classe média se fortaleceu, é cínico dizer: "Ah, mas são as mesmas velhas relações capitalistas".
Eu discordo daquela esquerda que nega isso, para quem a social-democracia é um compromisso com a burguesia que só atrapalha a revolução autêntica. Mas isso não significa que não exista uma problemática tendência neutralizante da democracia liberal. 

Mas o sr., como intelectual e escritor, não utiliza justamente a liberdade da democracia para expor suas ideias e convencer as pessoas?
Veja, não sou daqueles que dizem "nossa liberdade é ilusão, vamos jogá-la fora". A liberdade é muito preciosa.
Mas você pergunta sobre a minha condição pessoal. Não é que eu possa publicar tudo que eu queira. Recentemente recebi muitos ataques. Na "New Republic", no "New York Times". O "The Telegraph", na Inglaterra, disse que eu era um fascista de esquerda. Fui acusado até de defender um novo holocausto. E o espaço para responder, quando existe, é mínimo. 

A liberdade deles de criticar não é a mesma que o sr. tem para opinar?
Mas há a proporção, é diferente. Publicar na mídia marginal, em pequenas editoras, é fácil, mas a grande mídia é muito fechada.
Não sou só eu. Veja Noam Chomsky. É um intelectual extremamente conhecido, mas você nunca o viu na grande mídia americana. E não estou falando da Fox News. Você nunca viu Chomsky ser convidado a falar na CNN, mesmo no "New York Times" ele é boicotado. Claro que você pode falar que Chomsky é livre para fazer o que quiser, mas há essa exclusão do espaço público. 

Vejo seu nome na grande mídia.
Sim e não. Há três ou quatro anos, publicaram aqui e ali sobre mim no "New York Times". Agora não mais. Na França, há dois ou três anos, escrevia regularmente para o "Le Monde". Agora estou fora, fui considerado radical demais. Na Alemanha foi parecido.
Não é paranoia minha. Não estou dizendo que haja conspiração, mas que, se você passa de determinado um ponto, decidem que isso é demais. Eu fico me perguntando que limite é esse. Sempre fui muito crítico à esquerda, escrevo muitas críticas a Stálin. 

Sobre Stálin, o senhor defende que não há como comparar a União Soviética de Stálin com a Alemanha nazista de Hitler.
Veja, a União Soviética stalinista foi horrível. A quantidade de assassinatos, o sofrimento.
O que eu digo é que Stálin e Hitler não foram iguais. A prova, para mim, é a existência de dissidentes. Stálin teve a todo tempo de lutar contra quem o questionava. Muita gente dizia que Stálin tinha traído o comunismo autêntico, Trótski é um exemplo. Desculpe, mas não havia ninguém assim no nazismo, nenhum grupo questionando Hitler, dizendo que ele era um traidor do nazismo autêntico.
Na União Soviética, algo que originalmente era para dar na libertação do povo --a Revolução de Outubro-- terminou em um pesadelo. Mas o objetivo inicial era outro. O nazismo era diferente. Os nazistas conseguiram exatamente o que eles queriam. 

Mas o sr. escreve que não vê contradição entre violência e política.
Esse é um ponto importante a esclarecer. Há uma violência no mundo para permitir que as coisas continuem como são. Violência para mim não envolve só armas, polícia, gangues.
Há, por exemplo, a violência social, a violência econômica --uma crise financeira brutal que acaba com empregos e economias de milhões não é uma violência?
Para entender o terrorismo, por exemplo, você tem de entender esse tipo de violência. Não estou dizendo que uma coisa justifica a outra. Mas a violência econômica ou social tem consequências. 

Que relação há entre essa forma de ver a violência e a crítica que o sr. faz à noção de direitos humanos?
Eu não sou um daqueles esquerdistas loucos, que acham que os direitos humanos são apenas uma ideologia do imperialismo. Eu concordo que, em algumas situações, direitos humanos podem ser importantes.
Eu não compro o relativismo de esquerda que diz que nós não deveríamos impor uma noção ocidental de direitos humanos. Isso justifica qualquer coisa. Se estão arrancando os clitóris das mulheres, dizem "é a cultura deles, não deveríamos intervir". É nesse sentido que critico a tolerância.
O que me incomoda é que as decisões de intervenção em nome dos direitos humanos são arbitrárias. Agora se fala muito na Síria. Mas, se você quiser ver sofrimento de verdade, vá ao Congo.
Em dez anos, morreram 4 milhões de pessoas. O Estado não funciona, os poderosos aterrorizam a população enquanto vendem minerais preciosos a empresas ocidentais. Esse é o pesadelo verdadeiro sobre direitos humanos. Mas ninguém se importa. Os países estão fazendo negócios lá --e não só os EUA mas também a China, vários outros--, então ninguém dá bola.
Eu fui a Ramallah, na Palestina, e falei: "Vocês sofrem com Israel, mas, para as pessoas do Congo, mudar para cá seria um sonho".
Decide-se fazer intervenções por motivações geopolíticas e econômicas. Aí, de repente, surgem milhões de imagens terríveis do lugar. Agora lemos todos esses artigos sobre como o Irã é opressivo para as mulheres. Mas o Irã é um paraíso feminista perto da Arábia Saudita, e não se fala sobre isso. 

O sr. diz que o totalitarismo é mal compreendido. Em que sentido?
Eu não gosto do termo totalitarismo. Ele tem sido usado de maneira muito genérica. Do mesmo jeito que, nos anos 1960, manifestantes de esquerda diziam que os Estados Unidos eram fascistas.
Meu medo é que o mesmo aconteça com o termo "totalitário" e ele acabe sem sentido, banalizado. Veja como Hannah Arendt usava o termo. Ela é muito específica: apenas nazistas e soviéticos --e estes somente por alguns anos-- foram totalitários.
O que muda agora dizer que Assad é totalitário? Claro que ele é um cara mau. Mas totalitário? Ao falar isso, uma análise real de como funciona o regime, das suas particularidades, se torna difícil. 

O sr. defende muito a ordem, acha que o mundo é melhor quando tudo está organizado. Seria, nesse sentido, um totalitário?
Nesse sentido, sim. Esse é, aliás, o meu problema com o Brasil. Rio, Carnaval, Bahia, eles dançam muito, se divertem muito, por mim iriam a um gulag [risos].
A sério: eu não acho que desordem, Carnaval, seja libertação. O problema das nossas sociedades é que elas são muito caóticas.
É isso que os americanos não entendem: se você quiser ser um ser humano verdadeiramente livre --ir aonde você quiser, encontrar quem você quiser--, você precisa de uma estrutura muito rígida de ordem pública, de boas maneiras. Sem isso, nossa liberdade é sem sentido. Liberdade e ordem andam juntas. Veja a economia soviética. Não é que ela fosse superorganizada. É o contrário. Por baixo da superfície planejada, nada funcionava, um grande improviso. A União Soviética era autoritária, mas ela não era organizada. O que ela precisava não era de mais caos, mas de mais ordem.
Para isso, acho que precisamos de mais Estado, de poderes internacionais. Os problemas que confrontamos não serão resolvidos nesse nível estúpido de comunidades locais, democracia local. 

No livro, o sr. conta a história de um amigo americano que foi à Romênia após a democratização, nos anos 1990, quando a polícia secreta local decidiu ser mais amigável. No hotel, ele ligou para a esposa e disse que o país era pobre, mas as pessoas muito agradáveis. Ao desligar, o telefone toca: um oficial da polícia secreta que ligava para agradecer as palavras gentis. O sr. dedica o livro a esse policial.
Essas histórias sempre me fascinaram, histórias de como, na passagem de um sistema para o outro, a linguagem e algumas regras de comportamento se conservam e criam confusão.
O sujeito da polícia é um caso. Na época da queda do comunismo na Iugoslávia, havia uma rádio independente, de estudantes. Eles convidaram um antigo comunista, um "real" burocrata, para falar.
Perguntaram a ele sobre sexo, e ele queria agradar os jovens, mostrar que aceitava os novos tempos. Então ele disse: "Eu concordo com vocês, sexo é um instrumento muito importante na construção do progresso social e político da nação". Todos ficaram sem reação [risos]. Eu amo esses momentos. 

É fácil ver como somos oprimidos em um Estado autoritário. Mas na democracia liberal também somos muito controlados, embora as pessoas tenham a sensação de ser livres
 
Desordem, Carnaval não são libertação. O problema das nossas sociedades é que elas são muito caóticas. Se você quiser ser livre, precisa de uma estrutura muito rígida
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Fonte: Folha on line, 29/09/2013
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