Mostrando as entranhas e os locais de abate de animais mortos, "The
Jungle" ("A Selva"), livro de 1906 do americano Upton Sinclair, foi um
caso raro de romance que mudou a forma como o mundo via a indústria e o
comércio. Finalmente, tem-se um livro assim para a época atual - um
protesto vívido, eloquente, contra as empresas que vêm nos persuadindo a
despejar na internet cada um de nossos pensamentos e ações. "The
Circle" tem o potencial de mudar a forma como o mundo vê seu fascínio,
viciado e submisso, a todas as coisas digitais.
Nos EUA, os leitores têm que esperar até 8 de outubro para comprar o
livro, que no Brasil será lançado pela Companhia das Letras. A questão
mais relevante é saber por que foi preciso esperar tanto tempo por um
livro que desafia frontalmente as ortodoxias da era da informação. Não é
notável que, em menos de dez anos, tornou-se tabu não compartilhar a
vida pessoal on-line?
Nas mãos de Eggers, essas complexidades tomam a forma humana de Mae
Holland, jovem que começa em um emprego numa empresa do Vale do Silício,
chamada The Circle. Situada no futuro próximo, The Circle é a herdeira
espiritual e comercial de nossos tempos, uma mistura de Google,
Facebook, Twitter, Pinterest e PayPal.
A empresa é administrada por um grupo de executivos extremamente
dedicados e empreendedores, do tipo Sheryl Sandberg, atual diretora de
operações do Facebook, e fundada por futuristas soturnos, cuja visão do
compartilhamento dos conhecimentos de maneira completa e global acaba
trazendo consequências nefastas para a democracia, no final do livro.
Como qualquer boa história de horror, a entrada de Mae na empresa
parece ser um acontecimento abençoado. Ela se entusiasma com seu status
recém-conquistado e fica boquiaberta com a programação de palestras
acadêmicas da empresa.
É aí que ela começa a se perder na bocarra devoradora do mundo
digital. É solicitada a usar dispositivos que monitoram sua saúde e suas
emoções; é pressionada a atualizar constantemente seu status nas redes
sociais; e logo lhe pedem para documentar seus movimentos com uma câmera
pendurada no pescoço, o que acabará por ter efeitos desastrosos.
O comportamento de Mae se modifica por razões que parecem bem
conhecidas. Esses serviços todos - e a promessa de um mundo que gira em
torno dos dados digitais - oferecem um valor real. Mas a cultura
ficcional de Mae e nossa cultura real deixam pouco espaço para
contestação. Optar por não participar da rede é algo visto como uma
morte pessoal e profissional.
O Google e o Facebook não atenderam ao meu pedido de comentário.
Eggers, mais conhecido por seu livro de memórias "A Heartbreaking Work
of Staggering Genius" (em tradução livre, "A obra desoladora de um gênio
vacilante"), também declinou um pedido de entrevista.
As situações podem beirar a comédia pastelão, como nesta cena em que Mae pondera seu consumo de informações:
"Na sua segunda tela havia o número de mensagens enviadas por outros
funcionários naquele dia, 1.192, e o número dessas mensagens que ela já
havia lido, 239, e o número respondido por ela, em média, 220; e pelos
outros membros do grupo: 198".
Mas é a tolice do mundo de Mae que dá a "The Circle" seu valor. É um
mundo semelhante ao nosso, hoje, o bastante para nos ajudar a enxergar a
nós mesmos de uma nova maneira.
"The Circle" também traz outro alerta para o mundo dos negócios:
qualquer que seja a utilidade dos dados de hoje, haverá consequências
graves quando os dados são reunidos em um círculo completo, que conecta
cada centímetro de nossas vidas pessoais, públicas e cívicas.
A advertência aparece com uma cena arrepiante de vigilância on-line.
Parece fantasioso, até que nos lembramos do que aconteceu poucos meses
atrás, depois do atentado na maratona de Boston, quando algumas pessoas
foram falsamente acusadas por "cidadãos investigadores".
O autor não tem pudor de dizer, até de uma maneira escrachada, o que
ele julga que isso está fazendo com nossa personalidade e nossa
dignidade. Ele até inventa um personagem para dar sermões contra a
cultura de informação onipresente do Facebook e do Google: "As
ferramentas que vocês criam, rapazes, na verdade fabricam necessidades
sociais artificialmente extremas. Ninguém precisa desse nível de contato
que vocês estão oferecendo. Isso não melhora nada".
Isso prepara o ponto alto do livro: quando um dos fundadores da
empresa, Eamon Bailey, decide atacar as ideias de Mae, aparentemente
antiquadas, acerca da vida privada. Aqui Eggers escreve um diálogo de
tom orwelliano:
"Compreendo que somos obrigados, como seres humanos, a compartilhar o
que vemos e conhecemos. E que todo o conhecimento deve ser acessível
democraticamente" [disse Mae.]
"O estado natural da informação é ser livre'.
"Certo".
"Todos nós temos o direito de saber tudo o que pudermos saber. Todos
nós possuímos, coletivamente, todo o conhecimento acumulado do mundo".
"Certo", disse Mae. "Então, o que acontece se eu privar alguém, ou
todos, de alguma coisa que eu sei? Não estarei roubando do meu próximo,
dos outros seres humanos?"
"Sim", disse Bailey, com enfáticos movimentos de cabeça".(...)
"A privacidade é um roubo".
Como romance, "The Circle" não é grande literatura. Mas é uma ótima
advertência - e no futuro você ainda vai ouvir essa advertência muito
mais vezes. Nessa "Selva" de Eggers, somos nós, e não o gado, que somos
anestesiados e levados, sem perceber, para nossa morte.
"The Circle"
Dave Eggers. Editora: Knopf. 504 págs., US$ 16,77
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Fonte: Valor Econômico on line, 24/09/2013
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