Marcel Cintro*
O sangue derramado nas coxilhas do pampa nos
legou a bandeira, o hino e uma festa popular em que
o mito sobrepõe-se
aos fatos
Nas últimas semanas, a Capital testemunhou a construção de uma
cidadela às margens do Guaíba. Erigida com madeira e orgulho, com
visitantes mais numerosos a cada dia. A expressão “acampamento
farroupilha” ainda a designa, mas a ideia de um acantonamento de
barracas frágeis não mais faz jus ao que se vê e ao que se escuta desde
os últimos dias de agosto.
Analisando a extensão da área construída, o afluxo de público e o espaço que a data farroupilha ocupa em todas as mídias, vê-se que o 20 de Setembro faz bem para a alma gaúcha. Tornou-se, finalmente, popular. Na sua gênese, foi, entretanto, um movimento gestado pela elite agrária e teve um componente tributário de basilar importância: Uruguai e Argentina taxavam o sal com pesados impostos de exportação, o que tornava o charque da província do Rio Grande mais caro. Por outro lado, o charque platino chegava ao centro do país com preços bem camaradas, tornando-o mais competitivo do que o produzido aqui.
Iniciou-se uma revolta que, pouco a pouco, foi absorvendo um ideário tido por progressista. Lucas de Oliveira e Joaquim Pedro Soares valeram-se da euforia que envolveu os combatentes após a grande vitória em Seival – quando os farrapos comandados pelo General Netto investiram com espadas e lanças contra uma numerosa tropa legalista, infringindo-lhes 350 baixas – para promover a independência da província. Uma das iniciativas mais polêmicas da revolução, a separação foi seguida pela instituição da República Rio-Grandense, forma de governo tida desde então como a mais adequada para a liberdade e o progresso do espírito humano.
Proclamou-se a secessão em 11 de setembro de 1836 (ainda que o chefe da revolução, Bento Gonçalves, só tenha sido avisado posteriormente), ofertando-se igualdade e liberdade a todos, inclusive aos escravos negros. Em que pese todo o júbilo que se espalhou pela província, as cidades mais importantes do Interior – Pelotas e Rio Grande – permaneciam leais ao império brasileiro, e Porto Alegre continuava resistindo ao cerco farroupilha.
No caso específico da Capital, o domínio farroupilha foi breve. Do entrevero na Ponte da Azenha, na véspera do 20 de Setembro, até a fuga de Manuel Marques de Souza do barco-prisão Presiganga, em 15 de junho de 1836, não transcorreram nove meses de submissão à causa revolucionária. O plano de dominar a cidade, mal formulado, terminou em vexame: os legalistas se apossaram do quartel farroupilha, deram o toque de reunir em plena madrugada e, à medida em que os farrapos acorriam para atender o chamado, iam sendo presos, um a um. Revelou-se, assim, que a “leal e valorosa” cidade de Porto Alegre não possuía DNA rebelde.
Inconformados com a perda inesperada, os farroupilhas organizaram três sítios consecutivos, visando à retomada da cidade pela fome, pelas armas, ou pelas epidemias que grassavam entre a população. No primeiro (junho a setembro de 1836), Bento Gonçalves detinha grande superioridade numérica e controlava o acesso da ponta de Itapuã, mas hesitou em ordenar um ataque frontal, receoso de um banho de sangue e do destino dos numerosos companheiros presos na retomada. No terceiro, o polêmico Bento Manuel Ribeiro, outrora aliado do governo imperial, submeteu Porto Alegre a um cerco contínuo de dois anos e meio (junho de 1838 a dezembro de 1840).
Confinados entre dejetos e alagadiços, protegidos pelas trincheiras que rasgavam a pequena península rochosa e por aquele imenso rio amarronzado que, naquela época pré-aterros, parecia ainda mais largo, os porto-alegrenses não se entregavam. A cada carga de cavalaria os moradores reforçavam baluartes e barricadas e resistiam. Salvas de artilharia eram respondidas com projéteis da mesma potência e mesmo calibre, trazidos em barcaças provenientes de Rio Grande. E, de tempos em tempos, piquetes saiam de trás das linhas fortificadas para incursões em território inimigo, capturando o gado e os cavalos tão necessários à defesa da cidade.
O General Netto, comandante e mentor do segundo sítio (maio de 1837 a fevereiro de 1838), ordenou que uma bateria de canhões fosse posicionada no ponto mais alto da Estrada dos Moinhos – atual confluência da Avenida Independência com a Rua Ramiro Barcelos. Em 20 de junho de 1837, petardos sibilaram na noite escura, espalhando pânico e sangue. De acordo com o historiador Sérgio da Costa Franco, em seu livro Porto Alegre Sitiada (Editora da Cidade, 2011), o bombardeio daquela noite causou nove mortes e um número não contabilizado de feridos. Houve outros enfrentamentos, testando a temperança da população. Computadas as suas três fases, o cerco chegou a 1.283 dias.
Terminada a guerra, em 1845, a república foi desfeita. Parte dos escravos negros que combatiam pela causa foi massacrada em Porongos, num episódio que até hoje suscita controvérsia. O General Netto, desgostoso com o desfecho da jovem república, retirou-se para a sua estância no Uruguai, vindo a morrer em terra estrangeira durante a Guerra do Paraguai, duas décadas depois. Bento Gonçalves mostrou fôlego bem mais curto, encontrando seu destino apenas dois anos depois, em total ostracismo político. Os demais comandantes farroupilhas tiveram mais sorte: o charque platino, razão da guerra, sofreu um aumento de 25% nas suas alíquotas de importação.
Mas o ideário farroupilha era sedutor demais para ser esquecido. Já em meados da década de 1860, um racha no Partido Liberal levou à formação do Partido Liberal Histórico, que, levantando a “bandeira da descentralização administrativa e da representação das minorias”, propunha-se defender os mais legítimos anseios de 1835 – a “epopeia farroupilha” (conforme Sandra Jatahy Pesavento, em Historia do Rio Grande do Sul, 7ª edição, Mercado Aberto, 1994). Com a fundação do Partido Republicano Rio Grandense, em 1882, a causa revolucionária pouco a pouco foi sendo absorvida pelo discurso oficial. O Palácio do Governo virou Piratini, a maior área verde da capital recebeu o nome de Parque Farroupilha, os gauchos anônimos que acompanhavam os chefes nos entrechoques e entreveros daquela guerra sem fim – filhos de portugueses e espanhóis com as índias guaranis fugidas das Missões – acabaram nomeando chimangos e maragatos, colorados e gremistas. O rio-grandense tornou-se gaúcho.
O sangue derramado nas coxilhas do pampa nos legou a bandeira, o hino e uma festa popular em que o mito sobrepõe-se aos fatos. E os farrapos repelidos ao longo dos três cercos sobrevivem brejeiros nas tabuletas azuis que nomeiam praças e ruas, no imaginário dos moradores da Capital e nesta grande colmeia que viceja entre meados de agosto e o segundo decênio de setembro na estância da Harmonia. Realizados os festejos de 2013, seria profícuo que o comitê organizador da festa de 2014 começasse a discutir a inclusão de uma homenagem específica aos que combateram do lado de cá destas trincheiras.
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*Escritor, autor de Outonos de Fogo. Magistrado e diretor cultural da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (Ajufergs)
Analisando a extensão da área construída, o afluxo de público e o espaço que a data farroupilha ocupa em todas as mídias, vê-se que o 20 de Setembro faz bem para a alma gaúcha. Tornou-se, finalmente, popular. Na sua gênese, foi, entretanto, um movimento gestado pela elite agrária e teve um componente tributário de basilar importância: Uruguai e Argentina taxavam o sal com pesados impostos de exportação, o que tornava o charque da província do Rio Grande mais caro. Por outro lado, o charque platino chegava ao centro do país com preços bem camaradas, tornando-o mais competitivo do que o produzido aqui.
Iniciou-se uma revolta que, pouco a pouco, foi absorvendo um ideário tido por progressista. Lucas de Oliveira e Joaquim Pedro Soares valeram-se da euforia que envolveu os combatentes após a grande vitória em Seival – quando os farrapos comandados pelo General Netto investiram com espadas e lanças contra uma numerosa tropa legalista, infringindo-lhes 350 baixas – para promover a independência da província. Uma das iniciativas mais polêmicas da revolução, a separação foi seguida pela instituição da República Rio-Grandense, forma de governo tida desde então como a mais adequada para a liberdade e o progresso do espírito humano.
Proclamou-se a secessão em 11 de setembro de 1836 (ainda que o chefe da revolução, Bento Gonçalves, só tenha sido avisado posteriormente), ofertando-se igualdade e liberdade a todos, inclusive aos escravos negros. Em que pese todo o júbilo que se espalhou pela província, as cidades mais importantes do Interior – Pelotas e Rio Grande – permaneciam leais ao império brasileiro, e Porto Alegre continuava resistindo ao cerco farroupilha.
No caso específico da Capital, o domínio farroupilha foi breve. Do entrevero na Ponte da Azenha, na véspera do 20 de Setembro, até a fuga de Manuel Marques de Souza do barco-prisão Presiganga, em 15 de junho de 1836, não transcorreram nove meses de submissão à causa revolucionária. O plano de dominar a cidade, mal formulado, terminou em vexame: os legalistas se apossaram do quartel farroupilha, deram o toque de reunir em plena madrugada e, à medida em que os farrapos acorriam para atender o chamado, iam sendo presos, um a um. Revelou-se, assim, que a “leal e valorosa” cidade de Porto Alegre não possuía DNA rebelde.
Inconformados com a perda inesperada, os farroupilhas organizaram três sítios consecutivos, visando à retomada da cidade pela fome, pelas armas, ou pelas epidemias que grassavam entre a população. No primeiro (junho a setembro de 1836), Bento Gonçalves detinha grande superioridade numérica e controlava o acesso da ponta de Itapuã, mas hesitou em ordenar um ataque frontal, receoso de um banho de sangue e do destino dos numerosos companheiros presos na retomada. No terceiro, o polêmico Bento Manuel Ribeiro, outrora aliado do governo imperial, submeteu Porto Alegre a um cerco contínuo de dois anos e meio (junho de 1838 a dezembro de 1840).
Confinados entre dejetos e alagadiços, protegidos pelas trincheiras que rasgavam a pequena península rochosa e por aquele imenso rio amarronzado que, naquela época pré-aterros, parecia ainda mais largo, os porto-alegrenses não se entregavam. A cada carga de cavalaria os moradores reforçavam baluartes e barricadas e resistiam. Salvas de artilharia eram respondidas com projéteis da mesma potência e mesmo calibre, trazidos em barcaças provenientes de Rio Grande. E, de tempos em tempos, piquetes saiam de trás das linhas fortificadas para incursões em território inimigo, capturando o gado e os cavalos tão necessários à defesa da cidade.
O General Netto, comandante e mentor do segundo sítio (maio de 1837 a fevereiro de 1838), ordenou que uma bateria de canhões fosse posicionada no ponto mais alto da Estrada dos Moinhos – atual confluência da Avenida Independência com a Rua Ramiro Barcelos. Em 20 de junho de 1837, petardos sibilaram na noite escura, espalhando pânico e sangue. De acordo com o historiador Sérgio da Costa Franco, em seu livro Porto Alegre Sitiada (Editora da Cidade, 2011), o bombardeio daquela noite causou nove mortes e um número não contabilizado de feridos. Houve outros enfrentamentos, testando a temperança da população. Computadas as suas três fases, o cerco chegou a 1.283 dias.
Terminada a guerra, em 1845, a república foi desfeita. Parte dos escravos negros que combatiam pela causa foi massacrada em Porongos, num episódio que até hoje suscita controvérsia. O General Netto, desgostoso com o desfecho da jovem república, retirou-se para a sua estância no Uruguai, vindo a morrer em terra estrangeira durante a Guerra do Paraguai, duas décadas depois. Bento Gonçalves mostrou fôlego bem mais curto, encontrando seu destino apenas dois anos depois, em total ostracismo político. Os demais comandantes farroupilhas tiveram mais sorte: o charque platino, razão da guerra, sofreu um aumento de 25% nas suas alíquotas de importação.
Mas o ideário farroupilha era sedutor demais para ser esquecido. Já em meados da década de 1860, um racha no Partido Liberal levou à formação do Partido Liberal Histórico, que, levantando a “bandeira da descentralização administrativa e da representação das minorias”, propunha-se defender os mais legítimos anseios de 1835 – a “epopeia farroupilha” (conforme Sandra Jatahy Pesavento, em Historia do Rio Grande do Sul, 7ª edição, Mercado Aberto, 1994). Com a fundação do Partido Republicano Rio Grandense, em 1882, a causa revolucionária pouco a pouco foi sendo absorvida pelo discurso oficial. O Palácio do Governo virou Piratini, a maior área verde da capital recebeu o nome de Parque Farroupilha, os gauchos anônimos que acompanhavam os chefes nos entrechoques e entreveros daquela guerra sem fim – filhos de portugueses e espanhóis com as índias guaranis fugidas das Missões – acabaram nomeando chimangos e maragatos, colorados e gremistas. O rio-grandense tornou-se gaúcho.
O sangue derramado nas coxilhas do pampa nos legou a bandeira, o hino e uma festa popular em que o mito sobrepõe-se aos fatos. E os farrapos repelidos ao longo dos três cercos sobrevivem brejeiros nas tabuletas azuis que nomeiam praças e ruas, no imaginário dos moradores da Capital e nesta grande colmeia que viceja entre meados de agosto e o segundo decênio de setembro na estância da Harmonia. Realizados os festejos de 2013, seria profícuo que o comitê organizador da festa de 2014 começasse a discutir a inclusão de uma homenagem específica aos que combateram do lado de cá destas trincheiras.
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*Escritor, autor de Outonos de Fogo. Magistrado e diretor cultural da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (Ajufergs)
Fonte: ZH on line, 21/09/2013
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